“Coleção Antirracista” discute racismo estrutural com humor, contundência e tom politizado

Por Maria do Rosário Caetano

Quem comparecer, na noite dessa terça-feira, 29 de novembro, ao Espaço Itaú, na Rua Augusta paulistana, assistirá aos oito episódios da série “Coleção Antirracista”, de Val Gomes, produzida por Toni Venturi. A mesma dupla que assinou, dois anos atrás, o torpedo anti-racismo estrutural “Dentro da minha Pele”. Depois da exibição, haverá debate da equipe da série com Ednéia Gonçalves e Rosane Borges.

Quem não conseguir ingresso para a pré-estreia, que será encerrada com coquetel festivo, deve ficar tranquilo. Os oito episódios – curtos, coloridos, divertidos, politizados, didáticos no melhor sentido da palavra – serão disponibilizados gratuitamente no streaming da Spcine a partir do dia cinco de dezembro.

Val Gomes é socióloga, afro-brasileira e mulher politizada. Ao juntar-se, profissionalmente, ao ítalo-brasileiro Toni Venturi, formado no Canadá (“O Velho”, “Cabra Cega” e “Dia de Festa”), os dois resolveram transformar-se em cruzados da produção de imagens capazes de refletir sobre as condicionantes do racismo. Como ele se perpetua como trágica marca no Brasil, país de 215 milhões de habitantes, mais da metade deles pretos ou pardos.

“Coleção Antirracista” não chega, na soma de seus episódios,  a duas horas. Seus capítulos duram de 11 a 15 minutos e são dinâmicos, transbordantes em cores, com ótimas animações comandadas por estúdio descolado. E, o que é melhor, com testemunhos de quem tem muito o que dizer (e sabe dizê-lo com síntese).

E quem são as vozes que se fazem ouvir em “Coleção Antirracista”?

As principais são a filósofa Sueli Carneiro, a psicóloga Cida Bento, o historiador e músico Salloma Salomão, a escritora Cidinha da Silva, a artista visual Rosana Paulino, a ativista Joice Berth, entre outros afro-brasileiros. E há espaço para brancos como o professor da UFBa João José Reis e o estudioso de corporações policiais Adilson Paes Souza.

Em imagens de arquivo, ouviremos (ou veremos) militantes da causa negra da grandeza de Lélia Gonzales (1935-1994), Beatriz Nascimento (1942-1995) e Marielle Franco (1979-2018).

O cinema brasileiro fornece imagens valiosas aos episódios da narrativa de Val Gomes. De “Descobrimento do Brasil”, de Humberto Mauro, a “Cabeça de Nego”, de Déo Cardoso, de “Sinhá Moça” a “Desmundo”, de “Ganga Zumba” a “Sem Pena”, de “A Idade da Terra” a “Besouro”, de “Braços Cruzados, Máquinas Paradas” a “Linha de Montagem”, do curta “Kbela”, de Yasmin Tayná, a “Nada”, de Gabriel Martins, de “Carlota Joaquina” a “Notícia de uma Guerra Particular”, de “Chico Rey” a “Abolição” (este de Zózimo Bulbul), etc., etc. São dezenas e dezenas de curtas, médias, longas, ficcionais ou documentais, que emprestam fotogramas à densa (mas nunca cansativa) narrativa de Val Gomes.

A documentarista, com consultoria artística de Toni Venturi, deu títulos provocantes a cada episódio; “O Mito da Democracia Racial” (1), “Da Escravidão à Abolição” (2), “Cota Não é Esmola” (3), “Raça, Trabalho e Direitos” (4), “Urbanização como Apartheid” (5), “Mulheres Negras” (6), “Racismo Estrutural” (7) e, por fim, “Branquitude versus Antirracismo” (8).

A diretora nos revela nomes de mulheres que, nos últimos três ou quatro séculos, lutaram por conquistas para a população afro-brasileira (que após a abolição, “trocaria” as senzalas pelas favelas). Conheceremos (ou relembraremos) Zacimba Gaba (força vital no século XVII); Tereza de Benguela, do Quilombo do Piolho; Tia Ciata, que fez de sua casa o berço do samba carioca; Laudelina de Campos Melo, da cidade de Santos, que fundou pioneira associação de empregadas domésticas; a deputada estadual catarinense (ironia do destino!) Antonieta Barros, primeira preta eleita para o Legislativo.

Os homens também são lembrados: os rebelados muçulmanos da Revolta dos Malês, na Bahia, Luiz Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, João Candido, o mestre sala dos mares, que comandou a Revolta da Chibata, os criadores de movimentos negros organizados, Abdias Nascimento e, também, os criadores do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade). E, claro, o luminoso martinicano-argelino Frantz Fanon (1925-1961).

Um dos melhores capítulos da série (“Cota Não é Esmola”) chega para somar-se a dois filmes – o híbrido “Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo, que evoca a luta da UnB, primeira universidade federal a instituir cotas para afro-brasileiros (em 2004), e “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte (que recria ficcionalmente manifestação pública, na mesma Universidade de Brasília, em defesa de vagas para estudantes negros e indígenas).

Os mais cri-cris poderão argumentar que a série “Coleção Antirracista” é engajada demais, decidida demais, até catequista. Que argumentem. O que não se pode negar é que os oito episódios constituem tecido vivo, pleno de energia e cor, paixão e fúria.

Num mundo inundado por tsunamis de sons e imagens, apostar na contenção educada é chover no molhado. “Coleção Antirracista” veio, com síntese e potência, destoar o coro dos contentes. Colocar nitroglicerina na fogueira. Que a vejamos no telão do Espaço Itaú Augusta ou na telinha da Spcine Play.

Indiferente ao instigante material sonoro e visual da série de Val Gomes, ninguém ficará.

 

Coleção Antirracista
Série documental de Val Gomes
Em oito episódios (de 11 a 15 minutos cada)
Produção: Toni Venturi
Com testemunhos e consultoria de Cida Bento, Sueli Carneiro, Salloma Salomão, Cidinha Silva, Joice Berth, José Fernando Azevedo, Lia Vainer Schucman, entre outros.
Animação: Muviu Estúdio Criativo
Pré-estreia: Espaço Augusta de Cinema, 29/11, às 18h30
Estreia: Spcine Play, CultNeTV – Cultura Negra e Observatório de Educação, Ensino Médio e Gestão do Instituto Unibanco (gratuito)

One thought on ““Coleção Antirracista” discute racismo estrutural com humor, contundência e tom politizado

  • 2 de dezembro de 2022 em 20:03
    Permalink

    Começando pelo fim, sai da sala 02 do cine Itaú, assim que começaram as palmas e risos de satisfação do público majoritariamente branco, constatei o fracasso da série.
    Quando se pretende mexer nas feridas sociais e o grupo privilegiado por esses machucados aplaudem a mensagem, é porque não tocou, não afetou.
    Detalhes: colocaram o Lacerda (apoiador do enfraquecimento, na conferência de raças de 1911) com voz de “monstro” como se racistas e eugenistas não fossem pessoas comuns, sociáveis e fofas do cotidiano.
    O relato escolhido de mulher negra advinda da universidade pública, foi sobre realização pessoal e que “subiu na vida”. Ignoraram jovens atuais que estão na universidade contribuindo agora com as ciências.
    Não cortaram a fala do Saloma Salomão com a frase infeliz “amor forçado”, que depois ele se toca e usa estupro.
    Abrandaram a questão da Marielle, da branquitude.
    Colocaram Mr Bean sobre a questão de beleza branca, recusando trazer à reflexão que essa beleza branca da Gisele Bündchen, por exemplo, é produzida, não é natural que ela seja modelo, mas por uma ideologia construída.
    Enfim ficou: branquitude é uma doença e que precisa ser superada. Talkei?
    Só faltou pedir “por favor, cara gente branca” não sejam perversas pq é feio.
    Concluo observando que a escolha por colocarem humor enquanto crianças morrem à bala não foi empático e de longe antirracista.

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.