Fest Brasília apresenta “Espumas ao Vento” e superlota Cine Brasília com filmes do “Candangão”

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

O segundo dia da mostra competitiva da quinquagésima-quinta edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro tinha tudo para transcorrer na maior tranquilidade, não fosse a chuva torrencial que caiu sobre a cidade (e atrapalhou até a concentração de bolsonaristas frente ao QG do Exército). Chuva que provocou atrasos em cadeia no Cine Brasília.

Como o niemárico cinema, palco nobre do festival, tem sessões seguidas das duas da tarde à meia-noite, tudo começa com a Mostra Jorge Bodanszky, que exibe filmes do homenageado. Depois chega a hora e vez da mostra Reexistência, voltada “a filmes que exploram narrativas do presente e do passado”. O primeiro escalado foi o “O Cangaceiro da Moviola”, de Luis Rocha Melo, sobre Severino Dadá, parceiro de Nelson Pereira dos Santos, Rosemberg Cariry e Otávio Bezerra em dezenas de filmes.

Nelson até colocou Dadá como “ator” no filme “Tenda dos Milagres”, no qual ele interpreta a si mesmo e contracena com cineasta vivido por Hugo Carvana. A exibição do longa documental começou com certo atraso. Chovia muito e — vale repetir — não há mês pior para realização do mais tradicional e longevo festival do país. Além de haver escassez de filmes 100% inéditos, uma vez que os mais importantes já foram mostrados em Gramado, Festival do Rio e Mostra SP, as águas nunca dão trégua. O evento começou molhado e a previsão prevê nuvens escuras e chuvarada até domingo. Por isso os criadores originais do festival o conceberam como atração da primavera candanga, em setembro, com muitos ipês amarelo enfeitando a capital do Cerrado (e do país).

Atraso, mas atraso mesmo!, aconteceu antes da primeira sessão da Mostra Brasília, fruto de parceria da Secretaria de Cultura e Assembleia Legislativa do DF. O evento, criado há 27 anos, alcança sucesso arrasador. Tem as maiores lotações do festival. E produz a maior vibração. O “Candangão” (criado nos moldes do “Gauchão” gramadense) abarrota cadeiras (606 pessoas sentadas), corredores e fundão do belo cinema desenhado por Oscar Niemeyer. Uma verdadeira loucura.

No final de tarde do feriado de 15 de novembro (Proclamação da República) não cabia uma mosca no cinema da 106 Sul. Equipes enormes (afinal, todos residem no Distrito Federal) subiram ao palco para apresentar os curtas “Desamor”, tragicomédia feminista com requintes “noir” de Herlon Oliveira (protagonizado por Isaamar Mergerdit e Raí Melodia) e “Super-Heróis”, comédia infanto-juvenil edificante de Rafael de Andrade. Para completar, foi exibido um longa com super-heróis de poderes limitados (e terceiro-mundistas): “Capitão Astúcia”, de Filipe Gontijo.

Subiram ao palco, com o diretor brasiliense, 35 integrantes da equipe (atores, técnicos e assistentes). Só faltou o protagonista, o paraibano Fernando Teixeira, que está na Ásia, participando de outro festival de cinema. O público vibrou com os filmes e os aplausos foram arrasadores. Claro que havia muitos integrantes das fichas técnicas dos três concorrentes (e por isso são altamente suspeitos). Mas os aplausos brotavam de todos os quadrantes do cinema.

O “Candangão” e o “Gauchão” transformaram-se, com o passar dos anos, em reservas de alegria, vibração e participação de brasilienses e rio-grandenses do sul, orgulhosos de sua produção. E este ano, vale relembrar, Brasília tem dois longas na competição oficial, quatro na Mostra Brasília, dois em exibições especiais (“Utopia e Distopia” e um documentário, de nome olvidável, sobre os irmãos Vladimir e Walter Carvalho). Alem de mais nove curtas (um na competição nacional e oito no Candangão).

A segunda noite da competição oficial — composta com o longa pernambucano “Espumas ao Vento”, de Taciano Valério, e os curtas “Nossos Passos Seguirão os seus…”, do fluminense Uilton Oliveira, e “Anticena”, dos brasilienses Tom Motta e Marisa Arraes — mobilizou bom público, mas em nada parecido com o do Candangão.

“Espumas ao Vento” é o quarto longa-metragem do paraibano Taciano Valério, radicado há 15 anos na pernambucana Caruaru. Depois dele, o realizador — que faz questão de definir-se como um homem apaixonado pelo interior — vai lançar o documentário “Jamais Esquecer”, sobre a pandemia (pela Embaúba Filmes), e o ficcional (com inserções documentais), “Bia”, protagonizado por Verônica Cavalcante.

Taciano contou que o novíssimo filme, soma de esforços paraibanos-pernambucanos, será lançado no Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro (de primeiro a sete de dezembro), em João Pessoa. Este longa inédito tem no elenco, além de Verônica, os paraibanos Zezita Mattos, Fernando Teixeira e assentados do Acampamento Normandia, do MST (Movimento dos Sem-Terra).

No debate de “Espumas ao Vento”, Taciano se fez acompanhar dos atores Rita Carelli e Odécio Antonio, da produtora Carla Francine e do montador César Caos. O cineasta lembrou que, pela segunda vez, participa da competição do Festival de Brasilia (a primeira foi com “Pingo d’Água”, protagonizado por Jean-Claude Bernardet e Everaldo Pontes).

O filme que concorre ao Troféu Candango foi rodado sob o impacto da pandemia. Uma trupe de artistas populares (palhaços, mamulengueiros, tocadores de pif, ou pífano) sofre abalo de um mal inesperado (o coronavírus?). Duas irmãs, Manu (Rita Carelli) e Ana (Patricia Niedermeier), redefinem suas vidas. No pano de fundo, um pastor (Tavinho Teixeira) não mede esforços para expandir o tamanho, o alcance e os lucros de sua igreja, de denominação pentecostal.

Rita Carelli, de 38 anos, filha do cineasta Vincent Carelli, com quem ela codirigiu o curta-metragem “Yaõkwa – Imagem e Memória”, vencedor do Festival É Tudo Verdade 2020, vem desenvolvendo carreira muito especial. Como atriz, atuou nos filmes “Permanência” (Leonardo Lacca, 2015), “Abaixo à Gravidade” (Edgard Navarro, 2017) e “A Morte Habita a Noite” (Eduardo Morotó, 2021). Sua estreia na ficção literária — com o romance “Terrapreta” — acaba de lhe render o Prêmio São Paulo, um dos mais disputados do país. A atriz, diretora e romancista nasceu em São Paulo, foi criada no Mato Grosso e vive há 15 anos em Recife-Olinda (sedes do coletivo Vídeo nas Aldeias, criado por Vincent Carelli).

Odécio Antonio é paulista, mas vive há 13 anos em João Pessoa, na Paraíba. Palhaço, ator, preparador de elenco e mestre em Cinema (título obtido com dissertação de mestrado sobre a obra de Taciano Valério, intitulada “Trilogia Cinza”), o artista ficou impressionado com o potencial de produção do cineasta radicado em Caruaru.

“Ao estudar o cinema contemporâneo realizado na Paraíba” — relembrou durante o debate — “constatei que Taciano Valério, que havia dirigido vários curtas, realizara três longas-metragens no curto prazo de dois anos (“Pingo d’Água”, “Ferrolho” e “Onde Borges Tudo Vê”).

Para melhor fundamentar o estudo dos procedimentos que permitiam ao realizador dirigir três filmes no prazo de 24 meses, Odécio pediu para acompanhar as filmagens do próximo longa de Taciano. A resposta veio na lata: “ao invés de acompanhar as filmagens, você vai integrar o elenco de ‘Espumas ao Vento’ (cujo título inicial era “Depois da Farsa”) e vai cuidar da preparação de atores (coach)”. Coube a Odécio o papel do palhaço João.

Rita Carelli e o colega Odécio lideram elenco que reuniu o ator-fetiche do cineasta (o craque Everaldo Pontes), Tavinho Teixeira, Patricia Niedermeier, Mestre Sebá, entre outros. Os atores lembraram que Taciano é um diretor que ouve seus atores, gosta de improvisar e, por isso, nunca se apega a roteiro de ferro. E asseguraram (junto com a produtora Carla Francine) que o coronavírus provocou reviravoltas nas filmagens.

Como o ator paraibano Everaldo Pontes testou positivo, seu personagem, importantíssimo na trama, foi obrigado a desaparecer (“o jeito foi matá-lo”, confessou Taciano). Assim, o roteiro foi modificado do dia para a noite, e cresceu a participação de Ana, a irmã de Manu.

Odécio contou que submeteu-se a onze testes para saber se contraíra o coronavírus. Por sorte, todos deram negativo e ele pôde desenvolver seu personagem sem dificuldades. Taciano levou a epidemia tão a sério, que atendeu à provocação do jurista Pedro Serrano.

No debate, ele relembrou: “Serrano instigou a todos os cineastas a registrarem o que se passava, em suas regiões, com pacientes entubados por causa do coronavírus. Aceitei o desafio e gravei com pacientes que viram a morte de perto”. O resultado está impresso em “Jamais Esquecer”.

Uilton Oliveira, diretor de “Nossos Passos Seguirão os seus…”, é historiador, cineclubista e curador da Mostra do Filme Marginal. Em seu primeiro curta-solo, ele resgata parte da história do movimento operário brasileiro e personagem especial, apagado pela historiografia oficial: o militante anarquista negro Domingos Passos.

Operário da construção civil, Domingos comandou greve geral, no começo da década de 20 do século passado. Greve bem-sucedida (em defesa de outro trabalhador, o carpinteiro Antonio Silva). Ele seguiu sua militância no anarco-sindicalismo, “foi deportado para Cleveland, projeto desenvolvido no extremo-norte do Brasil, no Oiapoque, até regressar, ser preso outras vezes e, por fim, abandonado em mata erma, entre São Paulo e Paraná”.

O cineasta-historiador define seu filme como “um ensaio poético-sensorial”, construído com registros do patrimônio edificado pelos vencedores (a “arquitetura do poder”, na sua definição) e com uso de parcos registros da trajetória do operário que tornou-se conhecido, em circulo restrito, como “o Bakunin brasileiro”.                   Uilton Oliveira está trabalhando em seu primeiro longa-metragem, o documentário “Bahêa da Guanabara – Patrimônio Cultura da Cidade Maravilhosa”. Tata-se de registro da vida de torcedores do Bahia, chamado carinhosamente pelos torcedores de “Bahêa”, que moram no Rio de Janeiro. Eles se aglutinam para torcer pelo maior (e mais querido) clube futebolístico baiano e matar saudades da terra natal.

Marisa Arraes, diretora (com Tom Motta) de “Anticena”, debateu seu curta-metragem na companhia da diretora de arte Rosa Morbach. O filme, uma narrativa metalinguística, une três personagens — a documentarista Clarice, o entregador de aplicativo Jonathan e o cozinheiro Wesley. Jonathan faz, também, seus registros audiovisuais durante sua jornada de trabalho. Wesley, cozinheiro que acaba de ser demitido, pois seu patrão o trocou por um chef-de-cuisine, pode ser definido como “um desempregado apaixonado pelas imagens, portanto, um cinéfilo improvável”.

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