Carlos Boyero, o crítico mais odiado da Espanha, tem sua trajetória contada em filme exibido pela HBO Max

Por Maria do Rosário Caetano

“El Crítico” é o discreto título de um longa documental espanhol, dirigido pela dupla Javier Morales Perez e Juan Zavalas, que tem um dos mais influentes críticos europeus – Carlos Boyero, do El País de Madri – como personagem central.

Quem quiser conhecer mais da trajetória do “crítico mais odiado da Espanha”, o maior desafeto de Pedro Almodóvar, deve acessar a HBO Max, que mantém o filme em sua grade.

Boyero é um jornalista de 69 anos, amigo do cineasta Fernando Trueba, de 70. A amizade nasceu – conta o diretor de “Belle Époque”, Oscar de melhor filme estrangeiro em 1993 – quando “descobri que havia alguém mais feio do que eu”.

Irrequieto, beberrão, dono de raro senso de humor e texto brilhante – além de disposto a experimentar todas (em bares, prostíbulos e antros de boemia) –, Boyero foi tornando-se uma lenda entre os amigos (e inimigos). Entre seus experimentos (de destilados à cocaína), comprou brigas, fez seu nome no jornal El Mundo até ter seu passe comprado pelo influente El País. Ajudaram a transformá-lo num astro da crítica, com suas aparições em polêmicos programas de TV dedicados ao debate cinematográfico.

Dois festivais o colocaram no centro das atenções cinéfilas – o de Cannes, na França, e o de San Sebastián, no País Basco, em sua Espanha natal. Dos dois mandou suas críticas atrevidas, muito pessoais, feitas para expor seu gosto e causar polêmica. Detestou boa parte dos filmes de Almodóvar (no documentário desce o malho em “Julieta”, mas deixa claro que gostou muito de “Volver”).

A rixa entre os dois é tão definitiva que o diretor do belíssimo “Tudo sobre minha Mãe” se negou a dar depoimento ao longa espanhol. Nem Pedro, nem o irmão, o produtor Agustín Almodóvar, da El Deseo, quis, por mínimo que fosse, contato com “El Crítico”. Tal informação é fornecida ao espectador por econômica cartela.

Sem o charme da palavra dos Almodóvar, pouco saberemos dos detalhes da contenda. Mas ouviremos Carlos Boyega dizer que não quer conversa com Almodóvar, porque o cineasta “pediu sua cabeça” ao comando do El País. Ou seja, quis desempregá-lo.

Essa briga está, sim, no filme. Quando “Shirin” (Abbas Kiarostami, 2008) foi exibido num festival, Boyero abandonou a sessão. E depois tachou o experimento kiarostamiano de “chato”. Seus desafetos não fizeram por menos: redigiram carta ao El País solicitando a demissão do crítico. Segundo o meio cinematográfico e jornalístico de Madri, todos sabiam que Almodóvar era o principal artífice da ideia.

Vale aqui um longo parêntese para lembrar o que o crítico estadunidense Alexander Walker (do Evening Standard) disse a Maria de Medeiros (no filme “Bem me Quer… Mal me Quer, 2004), sobre abandono de filmes antes do término da sessão: “Como uma prostituta, nunca recuso um cliente” (isto depois de firmar pacto de nunca mais sair da sala de cinema antes da hora devida, e de levar uns tabefes do cineasta Kem Russel).

Maria de Medeiros destacou, em entrevista ao site português “À Pala de Walsh”, fala controvertida de outro crítico, o francês Gérard Lefort (na época, articulista do Libération). A atriz-cineasta qualificou Lefort como “uma pessoa extremamente inteligente (…) que diz a coisas mais violentas” contra os… críticos.

Prossegue Medeiros: “É ele quem fala dos artistas frustrados. Chega a dizer que a maioria dos críticos é gay. E são muito solitários” (atenção para as aspas). A diretora de “Capitães de Abril” relembra história narrada por Lefort, depois de defini-la como “formidável e um paradigma sobre nossa relação com a arte”.

“Ele (Lefort) fala do cansaço das pessoas em Cannes. Não dormem, vêem 5 ou 6 filmes por dia, têm que escrever, vão às festas, etc. Primeiro, ele critica todos os colegas que adormeciam nas projeções. Conta que ele próprio adormeceu durante a projeção de um filme de Tarkovsky. Escreveu todo um texto sobre uma cena que o maravilhou no filme. No limite de o publicar, os colegas avisaram: ‘desculpa, mas essa cena não existe no filme’. Era uma cena com a qual ele tinha sonhado! Acho isso lindíssimo”.

Fechemos o parêntese e retornemos ao filme de Boyero: a narrativa começa no Festival Internacional de San Sebastián, um dos territórios da glória do crítico do El País. Até a pandemia (o filme foi rodado em 2021), ele se reunia com os amigos para noitadas de conversa depois do filme, jantares de excelente cardápio e muitos vinhos. Com o Coronavírus, tudo mudou. Mudou também a sistemática de funcionamento dos festivais: tudo digitalizado.

Boyero é avesso a celulares, à frieza das maquininhas. Se desentende com as mocinhas-recepcionistas (novatas), que exigem dele fina sintonia digital. Ele pergunta pela programação impressa. Ela não existe mais. Ele se sente em um mundo hostil. Já pensava em abandonar os festivais. San Sebastián e Cannes seriam suas últimas viagens cinematográficas. Continuaria firme em seu ofício como crítico, mas sem as estressantes maratonas cinéfilas de outrora.

Numa mesa, com um amigo de aventuras cinematográficas, troca ideias sobre filmes, suas loucas aventuras de outrora, ele que foi “ator” em filmes de curta-metragem do amigo Trueba e viveu a vida sem economizar emoções e ousadias. Mas acredita que já deu! (Será que debelada a pandemia, ele cumprirá sua palavra? O filme não chega a tal conjectura). Ou será que a dupla de diretores, como o quase septuagenário Boyero, acredita que a “profissão de crítico caiu em desgraça definitiva”?

Polêmico, controvertido, odiado!  Boyero convive com estes adjetivos e vai levando a vida. Sabe que tem fãs apaixonados. Uma moça o cerca na rua e pede que autografe uma de suas críticas impressas no jornal. Ela quer levá-la para o pai, leitor fiel de seus textos. Sabia que el padre iria ficar felicíssimo.

Odiado, sim, por alguns, ou por muitos, mas autêntico, corajoso, capaz de dizer tudo que pensa (e o que é melhor, cacifado pelo comando do El País, que lhe dá carta branca para escrever o que desejar). Daí vem seu reconhecimento, mesmo que críticos mais jovens, ouvidos pelo filme, o tachem de praticante de certo “achismo”. Ele acha isso ou aquilo, não se aprofunda na construção da narrativa fílmica, etc., etc. Reclamam até das regalias por ele conquistadas: frequentar festivais classe A, hospedar-se nos melhores hotéis, enquanto os jovens críticos se amontoam (quatro ou cinco deles) em uma kitinete.

O que ninguém nega é sua cultura. Seu atrevimento. Impossível não sentir sua melancolia frente a uma imprensa que vai se desmilinguindo. Jornalistas regiamente pagos como ele para escrever o que quiser (e como quiser), vão tornando-se dinossauros. Os que chegam encontram empregos ou subempregos (ou atuam mesmo desempregados) em veículos que não bancam viagens internacionais (ou nacionais), nem diárias que fizeram deliciosas as maratonas gastronômico-etílicas do “mais odiado” crítico de toda a Espanha.

 

El Crítico
Espanha, 85 minutos, 2022
Direção: Javier Morales Perez e Juan Zavala
Elenco: Iciar Bolaín, Fernando Trueba, Blanca Portillo, Luis Tosar, Alex de la Iglesia, Antonio de la Torre, Carles Francino, Nacho Vigalondo, María Guerra, Enrique González Macho, Elio Castro, Domingo Corral, Pepa Blanes, e claro, de Carlos Boyero
Produção: TCM Espanha
Exibição no Brasil: HBO Max, com legendas

 

OUTROS FILMES SOBRE A CRÍTICA E CRÍTICOS

2004 – “Bem me Quer… Mal me Quer” (Je t’Aime Moi Non Plus) – A atriz e diretora Maria de Medeiros realizou, quase 20 anos atrás, um documentário sobre a crítica cinematográfica. Seu propósito era investigar a relação de amor e ódio entre artistas do cinema e os críticos. No entendimento da cineasta, uma crítica negativa poderia condenar uma carreira, enquanto uma boa crítica seria capaz de levar um nome à glória e dar a ele a sensação de que fora compreendido em suas intenções. Divido em capítulos (Encontro, Desejo, Sedução, Espera, Desilusão, etc), o longa promove debate de ideias vindas de realizadores e de profissionais da crítica (as entrevistas foram realizadas no Festival de Cannes de 2002). Entre os primeiros estão Ken Loach, Pedro Almodóvar, Wim Wenders, Hany Abu-Assad, Elia Suleiman, Davis Tanovic, Atom Egoyan, David Cronenberg, Vicente Aranda, Abderrahmane Sissako, Mika Kaurismaki e o brasileiro Caetano Veloso. Entre os críticos, Michel Ciment, Jean-Michel Frodon, entre outros. Produção francesa exibida na vigésima-sétima Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Duração: 82 minutos.

2008 – “Crítico” (Um Filme sobre o Ver e o Fazer Filmes) – Primeiro longa-metragem de Kleber Mendonça, crítico atuante que passou à condição de realizador (dedicado, depois, do longa de estreia, à ficção com “Som ao Redor”, Aquarius” e “Bacurau”, este em parceria com Juliano Dornelles). O cineasta recifense ouve realizadores (e também atores) e críticos, colocando no centro do debate o conflito entre o artista e aquele que analisa o trabalho de criadores artísticos. Entre os cineastas estão Eduardo Coutinho, Carlos Saura, Aki Kaurismaki, Gus Van Sant, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Reichenbach, Fernanda Torres, Kátia Lund, Catherine Hardwicke, Costa-Gavras, Tom Tykwer, Curtis Hanson, Jafar Panahi, Fernando Meirelles, Rodrigo Santoro, Walter e João Moreira Salles, Cláudio Assis e, entre os críticos, o francês Michel Ciment. Disponível na MuBi. Duração: 82 minutos.

2012 – “La Vida Útil – Un Cuento de Cine”, de Frederico Veiroj – Este longa ficcional uruguaio foi exibido (e recebeu prêmios) na Mostra Latina do Festival de Gramado. Protagonizado pelo crítico (na vida real) Jorge Jellinek, morto em 2018, “A Vida Útil” mostra um quarentão, de nome Jorge, que ainda vive na casa dos pais. Ele trabalha na Cinemateca de Montevidéu como programador de filmes e vive de e para o cinema. A instituição entra em crise financeira e, frente aos graves problemas, se vê obrigada a dispensar seu curador-crítico. Aos 45 anos, ele terá que se adaptar a um novo mundo e começar do zero. No elenco, destacam-se, ainda, Felipe Arocena, Paola Venditto, Victoria Novic e, principalmente, Manuel Martinez Carril (1938-2014), crítico, pesquisador e presidente por muitos anos da Cinemateca Uruguaya, que foi uma das mais dinâmicas da América Latina e chegou a reunir 15 mil associados (num país de 3 milhões de habitantes). Duração: 67 minutos.

2014 – “A Vida de Roger Ebert” (“Life Itself”) – Este longa documental de Steve James é uma adptação do livro “Life Itself: A Memoir”, de Ebert (1942-2013). O realizador mostra a trajetória do crítico estudunidense, a partir de sua atuação no Chicago Sun-Tribune, que lhe rendeu um Prêmio Pulitzer, até tornar-se um dos críticos mais influentes dos EUA. Ao lado de Ebert, que padeceu de um terrível câncer na região bucal, aparecem alguns de seus amigos, entre ele Martin Scorsese e Werner Herzog. Participam do filme Ava DuVernay, A.O. Scott, Errol Morris, Ramin Bahrein, entre outros. Duração: 120 minutos.

2018 – “El Crítico”, longa ficcional argentino, dirigido por Hernán Guerschury. Trata-se de uma comédia romântica protagonizada por Victor Tellez (Rafael Spregelburd), um prestigiado crítico de cinema, amargo e mal-humorado, que odeia comédias românticas. Mas tudo mudará quando ele conhecer a bela Sofia (Dolores Fonzi), que transformará sua vida em uma… doce comédia (romântica) recheada pelos clichês que ele tanto combatia. O astro argentino Leonardo Sbaraglia interpreta ele mesmo. Também atuam no filme Ana Katz, Blanca Lewin, Ignácio Rogers, Luciano Rosso, Marcelo Subiotto e Daniel Kargieman. Exibido na Mostra Latina do Festival de Gramado. Duração: 98 minutos.

2018 – “O que Ela Disse – As Críticas de Pauline Kael” – Neste longa documental dedicado à trajetória da mais influente crítica norte-americana, o cineasta-roteirista-montador Rob Garver entrevistou mais de 40 fontes. Entre os nomes mais destacados estão Francis Ford Coppola, Woddy Allen, Quentin Tarantino, Camile Paglia, Paul Schrader, John Boorman, Peter Bogdanovich, Alec Baldwin, entre outros. Os textos de Pauline Kael (1919 -2001), considerada nome importante na fixação do prestígio da chamada “Geração da Nova Hollywood”, são lidos pela atriz Sarah Jessica Parker. Claro que o filme não se esquece de destacar a polêmica que ela travou com Orson Welles (1915-1985), já que a crítica da New Yorker dava importância imensa ao roteiro de “Cidadão Kane”, que teria sido estruturado e escrito por Herman J. Mankiewicz. Welles, que transformou palavras em imagens, teria (na controversa opinião dela) obscurecido o papel de seu principal colaborador. Exibido no Festival do Rio 2018. Duração: 95 minutos.

1992 – “Serge Daney, Itinerário de um Cinéfilo” (“Serge Daney – Itineraire d’un Ciné-fils”), de Pierre-André Boutang e Dominique Rabourdin. Um os críticos mais influentes da França, Daney (1944- 1992) chegou a ter sua importância comparada à de André Bazin (1918-1958) e Georges Sadoul (1904-1967). Em 1964, ele criou a revista “Visages du Cinéma”. Depois, tornou-se colaborador da Cahiers du Cinéma, bíblia da cinefilia. Em 1973, depois da fase maoísta e engajadíssima da revista parisiense, Daney tornou-se seu diretor, ao lado de Serge Toubiana (até 1979). Na década de 1980, passou a colaborar com o Libération, jornal criado por Jean-Paul Sartre e equipe. Um ano antes de morrer, vítima de AIDS, Serge Daney criou, com amigos, a revista Trafic. Duração: 58 minutos

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