“O Tablado e Maria Clara Machado” mostra a magia de “Pluft” e do “Cavalinho Azul”
Por Maria do Rosário Caetano
“O Tablado e Maria Clara Machado”, longa documental de Creuza Gravina, chega aos cinemas cariocas nessa quinta-feira, oito de dezembro. O documentário, realizado ao longo de cinco anos, poderia ter resultado em cansativo ‘talking head’, tantos são os que dão seu testemunho à câmara.
Por sorte, e pela paixão dos envolvidos, o filme acaba indo além do meramente declaratório, marca essencial dos recorrentes “cabeças-falantes”, esses filhos cinematográficos (e bastardos) da televisão. Graças a depoimentos apaixonados como o dos atores Ernesto Piccolo e Cacá Mourthé e, surpreendentes, como o da veterana Lupe Gigliotti, “O Tablado de Maria Clara Machado” acaba prendendo a atenção do espectador.
O filme não inova, pois contenta-se em ser fruto da soma de testemunhos de ex-alunos, muitos deles astros globais que passaram pelo teatro-escola da dramaturga e filha do escritor Aníbal Machado (1894-1964), aquele de contos inesquecíveis como “A Morte da Porta-Estandarte”, “Viagem aos Seios de Duília” e “O Iniciado do Vento” (os três transformados em longas-metragens).
Entre os atores globais que reafirmam a importância de Maria Clara e sua escola em suas vidas estão Marieta Severo e Andrea Beltrão (hoje almas do Teatro Poeira), Malu Mader, Claudia Abreu, Marcos Palmeira, Felipe Camargo, Heloisa Perrissé, Leandro Hassum, Lúcio Mauro Filho e Marcelo Serrado.
Andrea Beltrão, com seu bom humor característico, diz que aprendeu tudo no Tablado clareano, até a varrer chão. Hoje, “sou uma grande varredora de teatro” (nada mal para uma atriz e produtora que gere um teatro chamado Poeira).
Heloísa Perrissé, outra dona de veia cômica privilegiada, também tem palavras felizes para definir sua escola teatral. O tablado é espaço de formação que reuniu (e reúne) “um monte de gente feliz, que gosta de falar”.
Há saboroso testemunho da crítica (agora aposentada) Bárbara Heliodora, outrora o terror das estreias teatrais cariocas. Ela, afinal, interpretou uma Bruxa, a mais velha e má de todas, em “A Bruxinha que Era Boa”. Gilberto Braga, teledramaturgo, autor de sucessos como “Escrava Isaura”, “Vale Tudo” e “Paraíso Tropical”, também relembra a importância do Tablado e de sua mentora.
As atrizes Louise Cardoso, Sura Berditchevsky, a figurinista Kalma Murtinho, a artista plástica Ana Letycia, o cantor (e ator) Claudio Lins, o diretor teatral Hamilton “Asdrúbal” Vaz Pereira, o iluminador Jorginho de Carvalho, os atores Ricardo Kosowsky, Luiz Carlos Tourinho e João Brandão registram, também com muita alegria, seus testemunhos sobre a mulher que foi tão importante em suas vidas. E aparecem atuando em fragmentos das montagens que ela comandou no Tablado. O número de vozes é aterrador (62 no total), mas não cansa o espectador, pois o filme dura sintéticos 74 minutos.
Todos os artífices do Tablado se colocaram à disposição da diretora estreante Creuza Gravina, aluna, por nove anos, da Escola criada por Maria Clara. Por ter vivenciado o “faz tudo” de cada dia no teatro do Jardim Botânico carioca (e coletivo de teatro amador), ela sentiu-se na agradável obrigação de realizar um longa documental que registrasse os 70 anos da maior paixão da dramaturga mineiro-carioca. O fez ao longo de 60 meses, sem nenhum tipo de patrocínio (só na etapa derradeira conseguiu apoio da Lei Aldir Blanc para finalização).
“O Tablado de Maria Clara Machado” é, portanto, um filme construído na “brodagem”, com a cumplicidade de todos que, de uma forma ou outra, tiveram seus destinos ligados à criadora de “Pluft, o Fantasminha”, de “Clarinha”, da Bruxinha Boa, de Maria Minhoca, da Coruja Sofia, do Cavalinho Azul, do Dragão Verde, de “Tribobobó City”, etc., etc. Ela escreveu, ao longo de seus bem-vividos 80 anos, 25 peças.
A história do Teatro Tablado começou em 1951. Sua fundadora Maria Clara Machado (nascida em Belo Horizonte, em 1921, fazendo sua passagem no Rio, em 2001) chegava aos 30 anos. Vivera cercada do carinho do pai, das irmãs e dos amigos do pai, escritor respeitado. Desfrutando, pois, da rica convivência artístico-intelectual paterna, um “simpatizante comunista”. Aníbal Machado vivia cercado por Carlos Drummond de Andrade, Portinari, Di Cavalcanti, Goeldi, Guignard, Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga e a bela Tônia Carrero. A casa da família Machado foi visitada por Pablo Neruda, Alberto Camus e pela pintora portuguesa Vieira da Silva.
A mineira Maria Clara Machado chegou ao Rio de Janeiro com poucos anos de idade. Perdeu a mãe antes de completar nove. Durante a adolescência, integrou um grupo de bandeirantes (escoteiros de saia). Nessa fase chegou a realizar atividades de recreação com crianças usando fantoches como instrumento. Ali brotaria o desejo de criar um teatro feito por adultos para o público infanto-juvenil.
O Tablado se transformaria numa instituição brasileira e suas peças no biscoito fino da dramaturgia voltada à infância e adolescência. No documentário, quando seu Cavalinho Azul (recriado no cinema por Eduardo Escorel, 1984) surge, estruturado ludicamente com os corpos de homens-atores recobertos de tecidos e banhados em luz azulada, a magia se impõe.
Como bem registrou o jornalista, dramaturgo e estudioso do teatro infantil, Dib Carneiro Neto (Estadão, 18/07/2022), ninguém, no Brasil, escreveu com tanta poesia e magia para crianças.
Vale transcrever o parágrafo que ele dedicou à peça “Pluft, o Fantasminha” (1955, transformada em filme recente de Rosane Svartman): “Só por essa ideia de criar uma fábula de um fantasma às avessas, ou seja, que tem medo de gente, Maria Clara não precisaria, a meu ver, ter escrito mais nada na vida. É sua obra-prima e já lhe valeria um lugar no panteão dos grandes”. Para, em seguida, pinçar frase do Fantasminha camarada: “Mamãe, acode aqui, a menina está derramando o mar todo pelos olhos!”.
Dib Carneiro, então, conclui: “Pluft falando metáfora. Poesia, Lirismo brincalhão na voz de um personagem criança. Sim, Maria Clara cuidava dos diálogos com esmero de poeta. Isso faz a diferença entre os dramaturgos”.
Ano passado, quando foi comemorado o centenário da dramaturga, Creuza Gravina organizou uma série de lives com participação de diversos profissionais de teatro, todos presentes em seu longa documental. Todas as “lives” continuam à disposição do espectador no Youtube. E, desde o dia exato do centenário da dramaturga (três de abril de 2021), foi ao ar o novo site de “O Tablado de Maria Clara” (portal www.
O Tablado e Maria Clara Machado
Brasil, 2022, 74 minutos
Direção, roteiro e produção: Creuza Gravina
Montagem: Creuza Gravina e Roberto Thomé
Direção de fotografia: Tito Nogueira
Produção e distribuição: Gravinart Produções Artísticas
Depoimentos: mais de 60 atores, diretores, dramaturgos, professores, técnicos teatrais e funcionários do Tablado (Johayne Hildefonso, José Severino da Silva, Sílvia Fucs, Lincoln Vargas, Bernardo Jablonsky, entre outros)