“A Descoberta do Mundo” pela misteriosa Clarice Lispector chega aos cinemas

Por Maria do Rosário Caetano

“Clarice Lispector: A Descoberta do Mundo”, longa documental de Taciana Oliveira, chega aos cinemas nessa quinta-feira, oito de dezembro. O documentário, realizado por mais de dez anos, percorre a trajetória da criança ucranina, que chegou ao Brasil, primeiro a Maceió, depois ao Recife, como a caçula de uma família judia.

O cinema brasileiro mantém com a autora de “Perto do Coração Selvagem” uma relação de amor e proximidade. Muitos filmes, a maioria ficcionais, foram feitos a partir de seus romances, contos e crônicas. O mais famoso deles – “A Hora da Estrela”, de Suzana Amaral — rendeu o Urso de Prata à atriz Marcélia Cartaxo. Mas nenhum documentário de longa-metragem se dedicara a percorrer sua trajetória, desde 1920, quando ela nasceu em pequena cidade da emergente e convulsionada URSS, até sua morte, no Rio de Janeiro, um dia antes de seu aniversário (ela completaria 57 anos).

O documentário de Taciana Oliveira mergulha na intimidade da escritora abordando aspectos pouco explorados de suas personalidade e história. Dois suportes servem de matriz ao filme: longo depoimento que Clarice prestou ao MIS-Rio (tendo João Salgueiro e o casal Marina Colasanti e Affonso Romano Sant’Anna como entrevistadores) e conversa televisiva com Arakén Távora, no programa “Os Mágicos” (TV Educativa, 1976).

A cineasta pernambucana colheu dezenas e dezenas de depoimentos, mas conseguiu evitar o cansaço dos “cabeça-falantes movies”. E o fez com inserção de imagens da natureza (em especial do mar) e leituras de trechos de romances, contos ou crônicas (feitas por atores como Cristina Pereira, Elias Andreato e Eucir Souza).

Decifrar Clarice, mesmo sendo ela autora das mais estudadas e biografadas, não parece fácil. Ela mesma — com sua voz característica (“não é sotaque, é língua presa”) — enuncia : “Com todo perdão da palavra eu sou um mistério para mim”. Taciana contou com a colaboração decisiva de Tânia Montero, biógrafa brasileira da escritora. O roteiro, escrito pelas duas, resultou instigante e atraente.

Curioso notar que muitos dos entrevistados do filme (Ledo Ivo, Marina Colasanti, Ferreira Gullar) destacarão a beleza da escritora, tão vaidosa, que mentia a idade e não permitiu que sua data de nascimento fosse impressa em seu túmulo.

Sara Escorel (1921-2018), esposa de diplomata, como Clarice, dirá ao documentário que a beleza da judia-ucraniano-brasileira “deixava os homens abobalhados”. Maria Bonomi, outra amiga, será mais contida – “ela tinha uma beleza misteriosa”. Mas, depois de assistirmos ao filme, ficaremos com a impressão de que Clarice era tão bela quanto as duas musas de sua geração (as escritoras Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst).

Tanto era sim (segundo a narrativa fílmica) que Jânio Quadros tentou agarrá-la à força, sendo por ela repelido.

A própria escritora — depreendemos do filme — também se julgava bela. Tanto que sugeriu à amiga Lygia Fagundes Telles (essa, sim, uma Ava Gardner paulistana) que não sorrissem para fotos. Se o fizessem,  a literatura produzida por elas não seria levada a sério. Seria suplantada por seus belos e cativantes sorrisos.

A tão decantada beleza de Clarice Lispector sofreu grave trauma em 1967. Acostumada a tomar barbitúricos que lhe garantissem noites de sono, ela dormiu com cigarro aceso na mão. O fogo se espalhou e ela sofreu queimaduras gravíssimas numa das mãos e na perna. Passou mais de dois meses no hospital e teve que submeter-se a cirurgias reparadoras. Para agravar os conflitos íntimos da escritora, um de seus filhos tinha problemas psíquicos (tema de sua conversa jornalística com Ferreira Gullar, quando ele voltou do exílio, também com problema semelhante em casa). E, tormento dos tormentos, ela perdeu emprego que amava, no Jornal do Brasil. E, para colocar termo em sua vida, acabou consumida por câncer que a matou aos 56 anos.

O filme permite ao espectador iniciar-se por frestas da personalidade dessa escritora enigmática, que elaborou temas complexos. Mas — há quem reforce ao longo da narrativa —“ela nunca foi hermética”. Os que evocam hermetismo em sua literatura, na verdade não conhecem seus escritos. Prova disso é o sucesso póstumo de seus livros, sendo Clarice a escritora de língua portuguesa mais traduzida no mundo. Só perde para três homens (José Saramago, Jorge Amado e Fernando Pessoa).

“A Descoberta do Mundo” revelará, também, a participação da escritora na vida política brasileira. Ela será vista na Passeata do 100 Mil (1968), lutando por democracia e liberdade de expressão.

Fichas da jornalista e escritora Clarice Lispector registradas pela Polícia Política (entre 1950 e 1973) foram consultadas pelas roteiristas (Teresa Montero e Taciana) em instituições herdeiras dos arquivos da repressão (caso do APERJ e no Arquivo Nacional).

 

Clarice Lispector: A Descoberta do Mundo
Brasil, 2022, 1h42′
Direção e montagem: Taciana Oliveira
Roteiro: Teresa Montero e Taciana Oliveira
Produtora: ZestArtes e Comunicação, com co-produção da Cabelo
Depoimentos: Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti (escritores e amigos de Clarice), Lêdo Ivo (amigo e escritor), Alberto Dines (jornalista e amigo), as sobrinha Marcia Algranti, a sobrinha-neta Nicole Algranti, Paulo Gurgel Valente (filho), Maria Bonomi (amiga e artista plástica), Luiz Carlos Lacerda (amigo e cineasta), Paulo Rocco (Editora Rocco), Bertha Cohen (prima de Clarice), Sara Escorel (amiga), Augusto Ferraz (amigo e escritor ), Ferreira Gullar (poeta), Rosa Cass (jornalista e amiga), Álvaro Pacheco (Editora Arte Nova) Maria Alice Barroso (escritora e amiga do escritor Lúcio Cardoso) e Nélida Piñon (amiga e escritora). Com intervenções ficcionais de Andrea Veruska, Cristina Pereira, Elias Andreato, Eucir de Souza, Isabela Piquet, Jorge de Paula, Juliana de Almeida, Sofia Montero, Stella Maris Saldanha, Nídia Ferreira Priscilla Melo e Quiercles Santana. Apresentando Geórgia Alves, Vera Barroso e Cecília Bueno.
Direção de fotografia: Taciana Oliveira, Maria Pessoa e Marcelo Lira
Som direto: Danilo Gonçalves, Lucas Hero e Willian Fernandes
Direção de arte: Thiago Amaral
Figurino: Thiago Amaral
Distribuidora: Anagrama Filmes

 

CLARICE NO CINEMA

1982 – “Perto de Clarice”, de João Carlos Horta (doc, 12 min)
1982 – “Tentação”, de Teresa Andrea e Edison Vidal (curta-metragem ficcional baseado no conto de mesmo nome)
1985 – “A Hora da Estrela”, de Suzana Amaral (ficção baseada em livro do mesmo nome – longa-metragem)
1986 – “Brasiliários”, de Zuleica Porto e Sérgio Bazi (filmensaio, 11 min, baseado nas crônicas “Brasília: Esplendor” e “Nos Primeiros Tempos de Brasília”)
1989 – “A Estrela Nua”, de Ícaro Martins e José Antônio Garcia (ficção em longa-metragem) 1991
1989 – “O Corpo”, de Ícaro Martins e José Antônio Garcia (ficção de longa-metragem baseado no conto “A Via Crucis do Corpo”)
1996 – “Ruído de Passos”, de Denise Gonçalves (curta-metragem ficcional baseado no conto de mesmo nome)
1998 – “Clandestina Felicidade”, de Beto Normal e Marcelo Gomes (ficção, 15 min)
2003 – “O Ovo”, de Nicole Algranti (com roteiro de Luiz Carlos Lacerda e Clarice Lispector) – Curta-metragem, 11 min.
2018 – “Hiatus”, de Vivian Ostrovsky (curta-metragem experimental)
2022 – “O Livro dos Prazeres”, de Marcela Lordy (ficção adaptada do romance “Uma Aprendizagem” ou “O Livros dos Prazeres”)
2022 – “Clarice Lispector – A Descoberta do Mundo, de Taciana Oliveira (documentário, 103 min.)
2023 – “Vaga” (ou Lispectoriana), de Renata Pinheiro – Longa-metragem ficcional, em finalização. O filme inspira-se livremente no universo de Clarice e tem Marcélia Cartaxo no elenco
2023 – “A Paixão Segundo GH”, de Luiz Fernando Carvalho. Em finalização

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