A importância do personagem dramático na comédia

Os desafios da criação do personagem na “dramédia”, gênero do cinema e televisão mais perseguido no Brasil, que acerta na comédia, mas erra no drama

Por Hermes Leal

A diferença entre a comédia e o drama pode estar apenas na forma como eu vejo o drama do personagem. Imagine se colocássemos o personagem Ted Lasso (Jason Sudeikis), “a melhor pessoa do mundo” na série de comédia “Ted Lasso” (foto acima), na mesma história e narrativa de Phoebe (Waller-Bridge), a “pior pessoa do mundo”, a desconcertante personagem principal de “Fleabag”? Dá para imaginar essa troca? Mas daria certo. Porque estes personagens, como todos que dão certo na dramédia, têm base, estrutura, densidade, alma, e lidam com suas verdades, defeitos e problemas emocionais com a “verdade”, e não com a “cura” ou a negação da imperfeição do ser humano.

A pedra filosofal da dramédia, que deu o Oscar de melhor filme a “Parasita”, o primeiro não americano na história a ganhar a estatueta, está na originalidade do personagem, como ele trata a “verdade” e os “valores”, perante seus danos existenciais e emocionais. E essa é a diferença entre a dramédia feita no Brasil e a do resto do mundo. A comédia vem ser o único gênero popular no Brasil, enquanto o drama tem a pior aceitação pública e de crítica, comprometendo muitas vezes os projetos em fazer a dramédia dar certo com uma fórmula “criada por nós” que não a feita em outros países como a Coreia do Sul.

Este artigo vai demonstrar como é construído esse personagem dramático, e como a comédia funciona sem transformá-lo em um “fake” dramático para que ele seja “do bem”, como costumamos fazer. Esses dois exemplos de personagens superpremiados, um do bem e outro do mal, são extremamente autênticos e bons para fazer o público se divertir. A intensão é colaborar com nossos criadores, para que não se entenda mal o gênero “feel good”, em que os personagens fazem os espectadores se sentirem bem. Mas, nem por isso, o personagem precisa ser “do bem”. Isso porque vamos falar de Ted Lasso, que serviu de exemplo para o diretor da Globoplay, Erick Brêtas (na coluna da Cristina Padiglione), afirmar que a principal empresa brasileira de realização de séries de ficção irá apostar neste formato. Bem aonde a gente falha.

É que no Brasil temos uma noção diferente do “feel good”. Que é achar que as novelas, séries e filmes servem para “curar”. Já fiz outros artigos sobre esse assunto, inclusive como o brasileiro troca a verdade pela magia, contrariando os valores universais da verdade.

O diretor da Globoplay afirma que esse é o gênero que irão investir, porque tem uma temática de “fazer o bem, com conteúdo que joga pra cima, que tem mensagem positiva. É assim Ted Lasso”. Só que o drama no Brasil falha ao tratar o sofrimento do personagem como uma busca de “cura”, como vamos ver a seguir, e não como uma jornada em busca da verdade, como ocorre em todo o mundo. O personagem tem esse sofrimento por causa de um dano na alma, e que não pode ser negado. É esse valor da verdade que faz a personagem “ruim” Phoebe – e mesmo Ted sendo “bonzinho” – funcionar como “feel good”. Pois toda boa comédia é para cima, não os personagens. Eles precisam ser autênticos e sensibilizar o espectador com aquilo que todos escondemos de nós mesmos, e que nestes personagens são mostrados, e não ocultados em nome de uma cura que não tem cura.

Fleabag

Os arcos dramáticos dos personagens na comédia

Todo bom personagem, aquele que cativa e engaja o público, tem um bom arco de sua jornada, tanto afetiva quanto da ação. E garante sempre uma surpresa no final desse arco, para impactar o espectador. Chamamos de arco porque ele tem um gatilho inicial, como a morte da sócia de Phoebe, que a obriga a iniciar sua jornada com o peso da culpa, lhe deixando inquieta e infeliz, até que a verdade aparece no final da temporada. E o arco de vingança da dona do clube de futebol, em “Ted Lasso”, que contrata o “inabalável” Ted para arruinar o clube, e ocorre uma virada de imprevisto para fechar o arco. Mas tem também o arco interno do personagem, e nele se estrutura o sentido de ser dele.

Esse arco interno, que gera todo bom personagem, é baseado no “sofrimento” que ele sente, que lhe afeta o corpo, a alma e o pensamento, e tudo que fizer estará relacionado a esse aspecto interno, e que é indispensável para qualquer personagem, seja na comédia ou no drama, como venho demonstrando em outros artigos sobre a “teoria semiótica da paixão na narrativa”. Podemos trabalhar essa densidade através das afecções que os personagens sentem através de suas “paixões”.

O sinônimo para paixão é sofrimento. E sofrimento é aquilo que perturba, que age na alma do personagem para fazer o que ele faz. Ou seja, o sentir rege o agir. E sofrimento passional é o mais profundo, é o que dá densidade a qualquer personagem, seja ele afetado por “raiva”, “medo”, “ódio”, “vingança” ou pela “melancolia”, tipo de paixão mais usada nos bons personagens de ficção. Não há personagem bom, no drama ou na comédia, sem mostrar ao espectador como funciona essas afecções de forma, muitas vezes, até invisíveis. São aspectos que não se escreve no roteiro em si.

Na teoria semiótica da narrativa, que trata das paixões, levamos em conta que esse sofrimento causa um “dano” no personagem, e ele pode ter origem tanto nas paixões, como também em questões endógenas, físicas ou cerebrais, como a questão da cognição e do reconhecimento dos objetos, do outro e do mundo que o cerca. No caso de Phoebe sua afecção principal é a paixão da “melancolia”, que se juntou à paixão da “culpa”, e uma das características dos efeitos da paixão da melancolia nos personagens é ser “ruim”. Já escrevi artigo sobre isso mostrando esse personagem melancólico nos filmes “A Pior Pessoa do Mundo”, “A Filha Perdida”, e em filmes clássicos, como “Morangos Silvestres”, de Ingmar Bergman.

Já o dano na alma de Ted Lasso é um tipo de melancolia em que o sujeito é anestesiado, como já frisou Freud em seu artigo “Luto e Melancolia”, que não sente o outro, mas com uma forma de dano relacionado a cognição, em que Ted não reconhece a agressão do outro, não sente ódio, raiva, desprezo, tudo de ruim contra ele não causa efeito, como não causava a personagem Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), de “O Gambito da Rainha”, e de George Burbank (Jesse Plemons), o gigante do bem de “Ataque dos Cães”, todos eles com um dano relacionado ao universo do “reconhecimento”. Em “Parasita”, o que move toda a história é o personagem jovem, filho do senhor Kim, que tem uma cognição baixa, acha que uma pedra o persegue, não consegue entrar na universidade, após mais de quatro tentativas, mas tem inteligência para lidar com uma garota.

Pesquiso e me especializei em uma área da narrativa semiótica, criada por A. J. Greimas, que trata de forma inovadora, até como uma nova ciência do pensamento, como funciona a cognição de forma cultural, do reconhecimento do sentido contido, por exemplo, nos palavrões e xingamentos ouvidos por Ted, como péssimo e incapaz treinador que é.

Parasita

Os efeitos do sofrimento nos personagens

A paixão da “melancolia”, que agora tem uma ciência própria para estuda-la, quando bem utilizada nos personagens (no Brasil toda paixão é tratada como loucura), garante à obra a dimensão desejada. Especialmente porque, para o mundo fora da cultura brasileira, o melancólico não é louco, como o tratamos por aqui, e é exatamente este aspecto do bom tratamento do personagem melancólico que tem rendido as maiores obras do cinema e da literatura de todos os tempos, de Proust e Shakespeare a Fellini.

Os efeitos da melancolia nos personagens são imensos, tem uma lista enorme, e se difere dos efeitos da raiva, do ódio e da culpa, e estão todos em Phoebe. Inclusive em seu “arco” da verdade, que esconde sua paixão da culpa pela morte da sócia e amiga, como no arco da ação, em que acha que “sabe tudo” e acaba descobrindo que não sabia de nada. Esses arcos são formados pela densidade da personagem.

As ações vindas do íntimo de Phoebe se transforma em comédia, quando se ela comporta querendo ajudar os outros (como Ted Lasso), mas não consegue, porque é afetada terrivelmente pelos efeitos da paixão da melancolia, que a deixa sem chão, vazia de sentido, com uma compulsão terrível por sexo, uma das principais características dos afetados por essa paixão, como já frisava Aristóteles, quando fez seu tratado sobre esse tipo de “doença da alma”.

Aristóteles comparava o melancólico com o bêbado, que só faz besteira, e que pode fazer coisas inesperadas, sendo uma pessoa de “gênio”, ou seja, difícil de lidar. No que ele falava sobre a compulsão terrível pelo sexo, descobri, através da Semiótica das Paixões, que esse tipo de sexualidade é uma busca natural do melancólico por potência. Sendo que a melancolia não é depressão, nem todo melancólico é depressivo, mas todo depressivo é melancólico, segundo Freud, e uma das características da Phoebe é chorar sempre, e ter um desejo estarrecedor de se aproximar da morte. Choro e compulsão por sexo tornam o personagem imperfeito, e, por isso, autêntico com a “verdade” de seu sofrimento. Por isso o sexo vem ser uma busca de potência de “vida”, no combate contra essa compulsão pela morte. Já falei sobre isso também, no mesmo artigo citado anteriormente, sobre o filme “Jules e Jim”, de François Truffaut, em que uma mulher melancólica fica dividida entre dois homens, Jules, representando a vida, e Jim, a morte.

Gerar personagens com esse sofrimento pesado, como Ted também sente, mas com efeito contrário ao de Phoebe, não é fazer uma jornada de “cura”, como vemos o “feel good” no Brasil, gerando personagens bonzinhos apenas no querer do roteirista e não na verdade do “personagem”. Isso porque, no Brasil, existe uma cultura estrutural voltada para a mágica da cura, pelo valor da fé, do querer em contraponto ao valor do saber e ao poder, de não levar em conta suas paixões e a competência de um personagem para se realizar. E, principalmente, porque não sabemos separar as paixões nos personagens, não sabemos distinguir como ele deve se sentir na paixão do “luto”, do “medo”, da “vingança” ou da “melancolia”.

Achamos que, negando ou escondendo o sofrimento dos nossos personagens, estamos aliviando a dor do espectador. Erramos ao interpretar o que é ser “do bem” neste mundo da dramaturgia. Só falhamos nisso, no drama, no personagem. Nossa comédia é ótima. Especialmente porque ainda fazemos a mesma chanchada de décadas atrás, que criamos com nossa cultura, que, como disse Chico Anysio, nunca deixamos de fazê-la até hoje. E é nossa e é boa.

 

Hermes Leal é jornalista, escritor, roteirista e documentarista. É mestre em Cinema, com especialização em roteiro, pela ECA/USP e doutor em Linguística e Semiótica pela FFLCH/USP, com a tese “As Paixões na Narrativa” (2017), na coleção Estudos da Editora Perspectiva.

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