Djalma Limongi lega “Bocage, o Triunfo do Amor” ao mundo da língua portuguesa
Foto: Djalma Limongi no filme “Rita Cadillac, a Lady do Povo”, de Toni Venturi
Por Maria do Rosário Caetano
O cineasta e diretor de teatro Djalma Limongi Batista, nascido em Manaus, morreu na última terça-feira, 14 de fevereiro, aos 75 anos. Depois de dirigir dois curtas, um média, apenas três longas-metragens (“Asa Branca”, “Brasa Adormecida” e “Bocage”), um documentário (“Autovideografia”, sobre Walmor Chagas) e alguns espetáculos cênicos (entre eles, “Calígula”), o artista partiu em silêncio. Estava afastado dos meios culturais há um bom tempo. A causa de sua morte não foi revelada.
Além de dedicar-se ao cinema e ao teatro, Djalma foi professor na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) e formou muitos profissionais do audiovisual. Ex-alunos lamentaram sua perda nas redes sociais.
O diretor Toni Venturi fez questão de lembrar a importância de Djalma para o documentário “Rita Cadillac, a Lady do Povo”. Como o amazonense dirigira a chacrete em “Asa Branca, um Sonho Brasileiro”, Toni o procurou para que ele falasse dela em seu longa documental.
“O depoimento dele foi tão instigante, que me ofereceu o nome do filme. Para Djalma, Rita era “a Lady do Povo”. Não tive dúvida, ele me dava de presente o nome definitivo do meu documentário”.
Djalma Limongi Batista herdou o nome do pai, médico e intelectual manauara. Na juventude foi estudar na UnB (Universidade de Brasília) e, em seguida, na ECA-USP, onde formou-se numa das primeiras turmas do curso de cinema. Seu curta-metragem de estreia, que ele mesmo qualificava de “experimental” – “Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora”, de 1968 — trazia temática homoafetiva, algo muito avançado para a época. Seguiu-se outro experimento, “Hang Five” (1970), e um média-metragem a cores, “Porta do Céu” (1975).
Em depoimento ao pesquisador Luiz Felipe Miranda (“Dicionário do Cinema Brasileiro”, Art Editora/Embrafilme, 1990), Djalma repetiu procedimento da escritora Lygia Fagundes Telles e da cineasta Suzana Amaral (ambas enxugaram cinco anos em suas datas natalícias). O cineasta enxugou três (garantiu ter nascido em 1950).
A estreia de Djalma no longa-metragem só aconteceria em 1981, ano em que participou de festivais (Brasília e Gramado). Sua primeira ficção – “Asa Branca, um Sonho Brasileiro”, protagonizada por Edson Celulari, coadjuvado por Walmor Chagas, Eva Wilma, Geraldo Del Rey, Rita Cadillac e, numa figuração, Mané Garrincha, causou a maior polêmica no festival candango. O jornalista (e então editor do Correio Braziliense) Evandro de Oliveira Bastos integrava o júri. Ele chegou à redação (eu era editora de Cultura) e comentou: “Hoje assisti a um filme que Médici encomendou e chegou tarde” (o júri assistia aos filmes em sessões reservadas, antes do público). Vivíamos os anos derradeiros do regime militar. O paraense Oliveira Bastos, amigo de Ferreira Gullar, Lygia Pape, Lygia Clark e Reynaldo Jardim, era um dos signatários do Manifesto Neo-Concreto.
A frase por ele proferida foi parar nas páginas do caderno cultural do Correio Braziliense do dia seguinte. Qual não foi minha surpresa. Fui chamada à sala de Bastos para ouvir Djalma Limongi. Ele estava arrasado. Ver “Asa Branca” definido como um filme que Emílio Garrastazu Médici, o presidente mais obscurantista do ciclo militar, “encomendara e chegara tarde” o deixara em estado de profunda angústia.
Djalma defendeu seu filme, relembrou que era um simpatizante da esquerda e que “Asa Branca” se propunha a ser uma fantasia sobre jogador de futebol que saía do interior e chegava, triunfante, à Copa do Mundo de 1970.
Anos mais tarde, ele diria ao crítico Luiz Zanin Oricchio (em seu livro “Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil”, Imprensa Oficial de SP, 2006), que “tinha horror a futebol”, simpatia zero, “visão bastante antipática”, pois perdera o encantamento que supunha existir naquele esporte tão popular. “Acho que é uma sublimação a mais na cultura machista do mundo, cultivada por isso mesmo, num mundo de machões e belicistas, animalesco mesmo”. E mais: “é o ópio do povo, como o fundamentalismo das religiões no mundo do século 21”.
“Asa Branca, um Sonho Brasileiro” saiu de Brasília com o prêmio de melhor direção, ator (Edson Celulari) e coadjuvante (Walmor Chagas). O vencedor foi “O Homem do Pau Brasil”, de Joaquim Pedro de Andrade. No ano seguinte, 1982, exibido em Gramado, “Asa Branca” conquistou dois prêmios (direção e ator para Walmor Chagas). O filme ganhou ainda o Prêmio Air France. Mas, seguindo a maldição que parece pesar, no Brasil, sobre “filmes boleiros”, não fez sucesso comercial. Ficou dele, na memória de quem o viu, a imagem do jogador Asa Branca com imensas e alvas asas, como se fosse um Apolo descido do Olimpo grego.
O longa seguinte só ficaria pronto seis anos depois: “Brasa Adormecida”, uma recriação de “Braza Dormida” (Humberto Mauro, Cataguases, 1928). No filme mauriano, um jovem, Luiz, filho de industrial, vai estudar na cidade grande, porta-se como um estroina e regressa ao interior. Emprega-se como gerente de uma usina e apaixona-se pela filha do rico proprietário. Este não aprova o casamento, e resolve mandar a moça para longe. Numa festa, porém, os jovens se encontram e reavivam o amor proibido. Uma carta anônima (escrita pelo ex-gerente da usina) conta ao usineiro o que está acontecendo entre os pombinhos. O malvado ex-gerente joga uma bomba na usina. Luiz, o apaixonado, enfrenta o malvado no muque. Este cai em caldeira de melado de cana fervente. Morre, claro. O usineiro vê, então, as boas intenções do pretendente à mão de sua filha, o perdoa e autoriza o matrimônio.
Djalma retirou a história do interior de Minas e a levou para uma fazenda paulista. E construiu uma comédia leve, que de Mauro só herdou o título e um certo bucolismo. Uma linda moça, Bebel (Maitê Proença), é o foco da paixão de dois parentes, um roceiro, Ticão (Edson Celulari), e outro mais urbano, Toni (Paulo César Grande). Em papeis coadjuvantes ou secundários, um time de causar inveja (Anselmo Duarte, Grande Otelo, Miriam Pires, Ilka Soares, Sérgio Mamberti, Marcélia Cartaxo e Patrício Bisso, também autor dos figurinos mais fashion do mundo!).
Gramado e Brasília não se interessaram pelo filme. Ele foi parar no RioCine, um festival carioca, que tentava se firmar com filmes rejeitados pelos gaúchos e candangos. Mas não triunfou nem no “festival B”. A referência mauriana pesava demais e o filme parecia fútil aos olhos de um Brasil que se entusiasmava com “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, “Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos”, “Jango”, de Silvio Tendler, “A Hora da Estrela”, de Suzana Amaral, e “A Cor do seu Destino”, de Jorge Durán.
Dez anos depois, em 1997, Djalma realizaria seu filme mais ambicioso e bem-sucedido, “Bocage, o Triunfo do Amor”, coprodução luso-brasileira, comandada pelo influente António da Cunha Telles. Um filme que trazia a etiqueta da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), então vivendo seu auge, com apoio de José Aparecido de Oliveira, ex-ministro da Cultura.
Para seu terceiro longa, o cineasta abriu mão de elencos estelares e apostou num belo mancebo, o ator gaúcho Victor Wagner, que fizera relativo sucesso na pele do contratador João Fernandes (Walmor Chagas no filme de Cacá Diegues) na novela “Xica da Silva” (TV Manchete, 1996). E como rodaria o país (Amazônia, Ceará, Rio Grande Norte, Paraíba, Paraná) e Portugal, o realizador foi arregimentando profissionais nordestinos (Majô de Castro e o estilista Lino Villaventura, autor de figurinos arrebatadores) e, claro, lusitanos (a cantriz Eugenia Melo e Castro, entre outros).
O filme nada tem a ver com uma cinebiografia convencional. Manuel Maria Barbosa Du Bocage (1765-1805), o poeta que ficou no imaginário popular de outrora como um fescenino (ou licencioso), aparece como um cultor da língua portuguesa. O longa-metragem soma o poético e o delirante à exuberância das paisagens, compondo ensaio fílmico fragmentado, que enche, sensorialmente, nossos olhos. Depois de um prólogo, veremos a história da cortesã Manteigui, que se apaixona pelo poeta. Depois, duas amigas enganadas por um mesmo homem. E, por fim, a morte de Josino, amigo de Bocage.
Banha o filme um erotismo que nos faz lembrar da Trilogia da Vida, de Pasolini (em especial do “Decameron”), e a exuberância onírica do cinema de Federico Fellini. Pena que o filme não tenha conquistado o público que merecia. Depois dele, Djalma Limongi só realizaria um documentário sobre o ator e amigo Walmor Chagas (“Autovideografia”), também pouco visto.
Quem quiser conhecer, em detalhes, a trajetória do cineasta amazonense-paulista, deve ler “Livre Pensador”, longo depoimento que ele prestou a Marcel Nadale, para a Coleção Aplauso, editada por Rubens Ewald Filho (Imprensa Oficial de São Paulo, 2005).
FILMOGRAFIA
Djalma Limongi Batista (Manaus, 09/10/1947 – São Paulo, 14/02/2023)
1968 – “Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora” (curta-metragem)
1970 – “Hang Five” (curta)
1975 – “Porta do Céu” (média-metragem)
1981 – “Asa Branca, um Sonho Brasileiro” (longa)
1987 – “Brasa Adormecida” (longa)
1997 – “Bocage, o Triunfo do Amor” (longa)
2003 – “Autovideografia”, documentário sobre Walmor Chagas
Participação:
2007 – “Rita Cadillac, a Lady do Povo”, documentário de Toni Venturi
No teatro:
1991 – “Calígula” (com Edson Celulari)
Livros:
. “Djalma Limongi Batista; Livre Pensador”, por Marcel Nadale (Coleção Aplauso, 2005)
. “Ensaio Aberto para um Homem Indignado”, por Djalma Limongi Batista, para a Coleção Aplauso (2008)
Muito boa matéria sobre Djalma.