Goya consagra “As Bestas” e homenageia Saura com “Porque te Vas” na voz de Juliette Binoche

Por Maria do Rosário Caetano

A cerimônia dos Prêmios Goya, o “Oscar espanhol”, realizada na noite desse sábado, 11 de fevereiro, em Sevilla, consagrou o filme “As Bestas”, de Rodrigo Sorogoyen (foto), e transformou-se em tribuna de homenagens ao cineasta Carlos Saura, morto na noite anterior. O diretor de “A Caça” e “Ana e os Lobos” receberia um Goya de Honor, na presença de Pedro Sánchez, presidente del Gobierno, mas não pôde comparecer por causa da indesejada das gentes.

Sua missiva derradeira, encaminhada à Academia de Cinema da Espanha e lida por sua viúva, a atriz Eulália Ramon, começou arrancando lágrimas (e aplausos) da plateia lotada e estelar: “Lamento no poder estar com vosotros”.

No telão do teatro, que ambientou a cerimônia, foi projetada imagem de Saura segurando uma câmara (além de diretor de cinema, teatro e ópera, ele foi um fotógrafo apaixonado e incansável). Eulália prosseguiu lendo as últimas palavras da sintética carta de Saura, enquanto dois dos sete filhos do artista (fruto de quatro casamentos, um deles com Geraldine Chaplin) seguravam o “cabeçon de honor” (apelido do Goya):

“Me sentirei satisfeito se tudo que fiz tenha servido em alguma medida para inspirar a brilhante geração de cineastas atuais. Tenho sido muito afortunado, realizei mais de 50 filmes, tive seis filhos e uma filha, uma dezena de netos, uma bisneta”. Para concluir: “a imaginação é mais rápida que a velocidade da luz”.

O emocionante tributo a Carlos Saura (1932-2023) prosseguiu com  a atriz francesa Juliette Binoche, que receberia um “cabeçudo de honor”, como Saura (se ele não tivesse partido na véspera). Ao empalmar seu Goya, a atriz fez caloroso agrado à memória do cineasta aragonês (como Buñuel): “Gostaria de render minha homenagem a um diretor que comoveu minha mirada desde pequenina e evocar essa música que me acompanha desde então”.

A estrela parisiense cantou, a capela, o estribilho e alguns versos de “Porque te Vas”, sucesso da britânico-espanhola Jeanette, grude-chiclete da trilha de “Cria Cuervos”, para muitos, a obra máxima de Saura: “Hoy em mi ventana brilla el sol/ Y el corazón/ Se pone triste contemplando la ciudad/ Porque te vas”? // Como cada noche desperté/ Pensando em ti/ Y em mi reloj todas las horas vi pasar/ Porque te vas” (…)

A memória de Saura pairou pela noite adentro. Ele voltou em declarações ou agradecimentos de muitos dos laureados. A trigésima-sétima edição dos Goya consagrou o drama social “As Bestas”, que concorria em 17 categorias, vencendo em nove, incluindo melhor filme, diretor e ator, o francês Denis Ménochet (o gordo protagonista de “Peter von Kant”, de François Ozon).

A surpresa da noite foi a ausência de prêmios para o notável “Alcarràs”, de Carla Simón. Decerto os integrantes da Academia (perto de dois mil) entenderam que, por ter ganho o Urso de Ouro em Berlim, o longa da jovem diretora já estava devidamente reconhecido. Injustiça brutal. Embora “Las Bestias” – registre-se – paixão arrebatadora até de Catherine Deneuve, seja um filmaço digno de todo reconhecimento.

Depois dele, a produção mais laureada foi “Modelo 77”, de Alberto Rodriguez, com cinco prêmios, mas todos técnicos e distantes dos cinco mais cobiçados (filme, diretor, atores, roteiro e fotografia). Destaque também recebeu o fascinante “5 Lobitos” (“Canção de Ninar”), feminino até a medula e protagonizado por atriz inesquecível (e premiada com o “cabeçudo”, Laia Costa).

No campo do documentário, uma injustiça: foi preterido o apaixonante “Sientiéndolo Mucho”, de Fernando León de Aranoa, que filmou, ao longo de doze anos, as “giras” de Joaquín Sabina, o “Bob Dylan espanhol” ou o “Belchior andaluz” (com direito a toureiro ferido na arena de Linares, onde se deu a morte do genial Manolete, em 1947).

Os acadêmicos preferiram o convencional “Labordeta, un Hombre Sin Más”, de Paula Labordeta e Gaiska Urresti. Um personagem realmente cativante (o ‘cantautor’, escritor, poeta e político socialista José Antonio Labordeta), mas algo laudatório e sem profundidade. O charme do personagem venceu a parada, em filme de pegada familiar (Paula Labordeta é filha do retratado).

No terreno do longa-metragem ibero-americano, deu o esperado. Santiago Mitre e seu cívico e apaixonante “Argentina 1985” conquistaram o Goya. O filme sobre o juiz Julio Strassera – responsável pelo encarceramento do alto comando das Forças Armadas argentinas, protagonista do golpe militar de 1976 e pelo desaparecimento de 30 mil cidadãos – segue em sua trajetória triunfante rumo ao Oscar.

O melhor filme europeu foi o norueguês “A Pior Pessoa do Mundo”, de Joachim Trier. A França não triunfou com o balzaquiano “Ilusões Perdidas”, de Xavier Giannoli, mas destacou-se como parceira ilustre da Noite dos Goya. Além da vitória acachapante de “As Bestas”, protagonizado por dois franceses, Denis Ménochet e Marina Foïs, e coadjuvado pela jovem Marie Colomb, viu Juliette Binoche brilhar como um farol e uma coprodução com a Espanha, “Unicorn Wars”, de Alberto Vásquez, ser eleita na categoria melhor longa de animação. O cineasta Vásquez define seu filme como “uma fábula anti-guerra, que se aprofunda na origem absurda de todas as guerras. Uma história épica desenhada como um conto universal”.

Um registro que não pode passar em branco. Gregorio Belinchon, do jornal madrilenho El País, jornalista especializado em cinema, notou a sororidade entre as atrizes e diretoras jovens, que se abraçavam quando uma ganhava prêmio também disputado pela outra. Sensível aos novos tempos, Ménochet definiu com rara acuidade, o arrebatador “Las Bestias”: “um filme que fala do amor das mulheres frente à loucura dos homens”.

Um veredito, convenhamos, digno de cirugião de alta precisão. O que é “As Bestas” senão um filme sobre duas mulheres (mãe e filha) que tentam colocar um pouco de razão e sentimento num mundo (a zona rural da Galícia espanhola) dominado pela violência de machos brutos (e tóxicos), que matam “intrusos” por não rezarem por suas cartilhas.

Ménochet é o terceiro estrangeiro a vencer o Goya de melhor ator (antes dele, só o latino-estadunidense Benício del Toro e o argentino Ricardo Darín).

Será que “Las Bestias”, o grande vencedor do Goya, passará em branco por nosso circuito exibidor, assim como o notável “O Bom Patrão”, filmaço da dupla Aranoa-Bardem, vencedor do ano passado? Eis aí uma pergunta que não quer calar.

Quem acompanha os filmes espanhóis sabe que o país vive revigorada primavera cinematográfica, como há décadas não vivia. Filmes como “O Bom Patrão”, “As Bestas”, “Alcarràs” e “Cinco Lobitos” não brotam em vão na terra de Buñuel, Victor Érice, Saura e Almodóvar.

Ciente da grandeza de sua história, a Academia Espanhola convocou as quatro hermanas de “Sedução” (“Belle Époque”, de Fernando Trueba) – Maribel Verdu, Penélope Cruz, Ariadna Gil e Miriam Díaz Aroca – para entregar o “cabeçudo” de melhor filme a “Las Bestias”. O longa de Trueba conquistou, há exatas três décadas, o Oscar de melhor produção internacional.

Confira os premiados:

. “As Bestas”, melhor filme, melhor diretor (Rodrigo Sorogoyen), ator (Denis Ménochet), ator coadjuvante (Luis Zahera), roteiro (Rodrigo Sorogoyen e Isabel Peña), fotografia (Alejandro de Pablo), música (Olivier Orson), montagem (Alberto del Campo) e som (Berenguer, Ordoyo e Yasmin).

. “Cinco Lobitos” (“Canção de Ninar”)- melhor diretora estreante (Alauda Ruiz de Azua), melhor atriz (Laia Costa), atriz coadjuvante (Susi Sánchez)

. “Modelo 77”, de Alberto Rodríguez – direção de produção (Manuela Ocón), maquiagem e cabelos (Yolanda Piña e Félix Terra), efeitos especiais (Ana Rubio e Esther Ballesta) , direção de arte (Pepe Domínguez) e figurino (Fernando García).

. “Cerdita” (“Porquinha”) – atriz revelação para Carlota Pereda

. “La Consagración de la Primavera” – melhor ator revelação para Telmo Ureta

. “Un Año, Una Noche” – melhor roteiro adaptado (Fran Araújo, Isa Campos e Isaki Lakuseta)

. “Argentina 1985”, de Santiago Mitre (Argentina): melhor filme ibero-americano

. “A Pior Pessoa do Mundo”, de Joachim Trier (Noruega): melhor filme europeu

. “Labordeta, un Hombre Sin Más”, de Paula Labordeta e Gaiska Urresti – melhor documentário. “Sientiendolo Mucho”, de Fernando León de Aranoa – melhor canção (“Sientiendolo Mucho”, de Joaquín Sabina)

. “Unicorn Wars”, de Alberto Vásquez (Espanha-França): melhor longa de animação

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