“Os Olhos de Orson Welles” vistos com originalidade e afeto por Mark Cousin
Por Maria do Rosário Caetano
O prolífico Mark Cousins tem mais um de seus excelentes documentários postos à disposição do público brasileiro. Desta vez, trata-se de “Os Olhos de Orson Welles”, instigante e original visita ao universo do genial criador de “Cidadão Kane” e “A Marca da Maldade”. E de “It’s All True”, obra documental inacabada, que trouxe o jovem prodígio ao Brasil, para documentar a saga de jangadeiros cearenses e o Carnaval carioca.
O filme wellesiano do prolífico cineasta irlandês-escocês Mark Cousins encontra-se disponível no streaming, gratuitamente e para todo o país, no Cinema em Casa, projeto do Sesc São Paulo.
Ao longo de 115 minutos, acompanhamos a vida do inquieto cineasta, ator e desenhista estadunidense, que, ao morrer aos 70 anos, em outubro de 1985, figurava, ao lado de Chaplin, Eisenstein, Mizoguchi, Ozu, Bergman, Buñuel e Fellini na lista dos maiores nomes da história do cinema.
O que Mark Cousins teria a acrescentar em mais um filme sobre Orson Welles?
Depois de assistirmos ao documentário, veremos que o cineasta não abraçou “Os Olhos de Orson Welles” para fazer chover no molhado. Com produção do Michael “Tiros em Columbine” Moore e com ajuda providencial de Beatrice Welles, herdeira do intérprete e criador de “Cidadão Kane”, mais uma vez Cousins prova que tinha muito a dizer. E que o faria no formato que o consagrou: um filme de arquivo, com imagens raras e narração cinéfilo-afetiva.
Para alguns, o documentarista irlandês-escocês, de 57 anos, fala demais. O que não constitui problema, pois quem tem o que dizer deve fazê-lo. Se ele despeja informação em demasia em seus longas-metragens e suas imensas séries, o remédio está na bula. Ou seja, ao alcance de todos. Basta ver, rever e trever suas criações cinematográficas. Aí a fruição será plena e fertilizadora.
“Os Olhos de Orson Welles” saiu de Cannes 2018 com o prêmio Olho de Ouro, atribuído ao melhor documentário de longa-metragem exibido nos múltiplos segmentos do festival. Chegou ao Brasil em festivais como o do Rio. Workaholic total, Cousins já comandou muitos outros filmes depois da obra dedicada a Welles.
Só na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ano passado, ele exibiu três filmes: “Marcha sobre Roma” (Itália, 98′), “Meu Nome é Alfred Hitchcok” (120′) e “As Tempestades de Jeremy Thomas” (94′), ambos produções britânicas. A pandemia, ao invés de detê-lo, atiçou nele o ímpeto da criação.
Para realizar um filme sobre o genial Orson Welles, com Michael Moore na retaguarda, Cousins recorreu à imprescindível ajuda da filha do cineasta, Beatrice, em sua ampla casa plantada próximo ao mítico Monte Rushmore. Ela o recebeu, conversou com ele e liberou mala repleta de desenhos do pai, esboços por ele produzidos desde a adolescência e pela vida inteira. E como desenhava bem (e rápido) o prodígio de Kenosha-Wisconsin.
A partir de cada desenho (Cousin manuseou e filmou os originais), o documentarista foi ampliando sua carta, plena de afeto e deliciosas sacadas, ao diretor de filmes inacabados como “Dom Quixote” e “The Other Side of the Wind”.
Já no início do documentário-missiva, vemos Mark Cousins tomando um táxi, com a mala repleta de desenhos. Em seguida, ele apresenta a Orson Welles (1915-1985) o mundo contemporâneo, no qual a internet, “com palavras e muitas imagens”, assumiu imensa centralidade. Evoca os tempos terríveis (de “fascismos e fake-news”), que estamos vivendo e mostra uma das torres nova-iorquinas de TRUMP (o nome do ex-presidente dos EUA nos chega em vistosas maiúsculas coladas à imensa fachada da edificação imobiliária).
Cada desenho do ator de tantos filmes – incluindo o belíssimo “O Terceiro Homem” (Carol Reed, 1949), no qual ouvimos a sacada de Graham Greene: “Sob os Bórgia, em 30 anos de guerras e terror, a Itália nos deu Michelangelo, Da Vinci e o Renascimento, já a Suíça, em 500 anos de democracia, nos legou o relógio Cuco” – vamos reencontrando momentos pouco explorados da trajetória wellesiana. O mais inesperado evoca “passagem esquerdista” na mocidade do atrevido prodígio. Que sempre nos foi apresentado apenas como um liberal progressista.
Tudo começou em 1935, quando o presidente Franklin Delano Roosevelt (gestão 1933-1945), impregnado pelas diretrizes do New Deal, estimulou a criação de frentes de trabalho em todos os setores da vida estadunidense. Nasceu, naquele momento difícil, o Federal Theatre Project, para aliviar o desemprego no setor artístico-cênico e mostrar bons espetáculos a plateias desempregadas (Kenneth Tynan, em “A Vida como Performance”, Companhia das Letras, 2004).
Welles, depois de realizar no Teatro Lafayette, no Harlen, a montagem “Voodoo MacBeth” (1936), adaptação de Shakespeare só com atores negros, resolveu ir além. Era hora de aproveitar, e bem, a onda político-social que envidava imensos esforços em busca da superação da Crise de 1929.
Para o Maxime Elliot Theatre, com patrocínio do mesmo Federal Theatre Project, Welles montou a “ópera esquerdista” de Marc Blitzstein, “The Cradle Will Rock” (O Berço Vai Balançar). Só que, na véspera da estreia (conta Kenneth Tynan, evocado por Mark Cousins), o patrocínio do Governo Roosevelt foi retirado. Afinal, “a euforia cultural de Washington” vinha sendo “varrida pelos ventos quentes da direita, cujo hálito Orson Welles sentiu naquele verão de 1937”. Dois anos depois, o Federal Theatre Project seria extinto pelo Congresso.
Naquela altura, o jovem Welles, na casa dos 24, 25 anos, já sonhava com o cinema. Em 1941, aos 26, o mundo se espantaria com a ousadia e inventividade de “Cidadão Kane”. Outros grandes filmes viriam, mas o país natal de Welles acabaria por transformá-lo em um diretor-ator deambulante, que vagava pela Europa realizando filmes que, muitas vezes, não chegavam a termo.
Tudo que Mark Cousins falar, em sua amorosa missiva a Orson Welles, terá um toque de originalidade. Ao lembrar a frustrada aventura do cineasta nos trópicos (no Brasil de Vargas, começo dos anos 1940), ele não recorrerá a imagens conhecidas dos jangadeiros, nem do Carnaval. O irlandês-escocês destacará a influência do soviético Sergei Eisenstein sobre o estadunidense e os rostos fora do padrão hollywoodiano registrados, em enquadramentos arrebatadores, pela câmera de George Fanto. Mark Cousins realizou mais um filme imperdível.
Os Olhos de Orson Welles | The Eyes of Orson Welles
Direção: Mark Cousins
Produção: Michel Moore
Duração: 115 minutos
Onde: Cinema em Casa, streaming do Sesc-SP (gratuito, para todo o país)