“A Esposa de Tchaikovsky”: a alucinada paixão da jovem Antonina pelo compositor homoafetivo russo

Por Maria do Rosário Caetano

Um filme imperdível – «A Esposa de Tchaikovsky», do russo Kirill Serebrennikov – tem pré-estreia paga, nessa terça-feira, 28 de março, na Reserva Cultural paulistana, seguida de debate com a violinista Débora Ruba e o escritor e tradutor Irineu Franco Perpétuo. Ela costuma executar peças do compositor, que muitos têm como um dos maiores nomes da arte eslava. Ele vive mergulhado nas entranhas da cultura do país de Dostoievsky e Tolstoi, tanto que lançou recentemente o livro «Como Ler os Russos» (Todavia, 2021).

Quem não conseguir ingressos para assistir ao filme que representou a Rússia, ano passado, no Festival de Cannes, nessa noite de pré-estreia, não deve preocupar-se. «A Esposa de Tchaikovsky» tem lançamento em São Paulo (e diversas cidades brasileiras) nessa quinta-feira, 30 de março.

Três – ou melhor quatro – segmentos do público dispõem de motivos de sobra para assistir a esse drama fincado em referências biográficas e construído com alta densidade e intensidade. Primeiro, os que amam a música, já que no centro da narrativa está Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893), compositor (e regente), conhecido como um dos grandes patrimônios artísticos da humanidade, autor de óperas (Ievguêni Oniéguin), composições para balé («O Lago dos Cisnes», «O Quebra Nozes», «Romeu e Julieta»), e concertos («Concerto para Violino e Orquestra») e peças («Abertura 1812» e «Marcha Eslava »). Odin Lund Biron interpreta o compositor nascido e sepultado (com apenas 57 anos) em São Petersburgo. Sua morte, supõe-se, teria sido provocada pelo cólera.

As feministas gostarão de ver —também no centro da narrativa — a personagem que dá título ao filme,  a esposa de Tchaikowsky, Antonina Miliukova, a Nina, interpretada com garra pela bela e jovem Alyona Mikhailova. Uma força da natureza.

Os homoafetivos e simpatizantes da causa LGBTQ+ acompanharão a dor de um artista que, por causa de absurdas convenções sociais, realizou casamento heterossexual que o levou, em poucas semanas, a um colapso nervoso e criativo.

Por fim – e claro, por tratar-se de obra artístico-cinematográfica – vem o mais importante: estamos diante da possibilidade de reencontro com o inventivo e vigoroso cinema de Kirill Serebrennikov, nascido há 53 anos, em Rostov do (rio) Don, «o portão do Cáucaso», cidade situada ao sul da imensa Rússia.

Depois de estudar Teatro na Universidade de Rostov, o futuro cineasta radicou-se em Moscou e iniciou sua carreira nas Artes Cênicas. Mais tarde, montou sua produtora de cinema e dirigiu os filmes “O Estudante”, “Verão” (este foi lançado com relativo destaque no circuito de arte brasileiro) e “A Febre de Petrov”. Todos passaram por grandes festivais europeus, em especial Cannes.

O sucesso não impediu que contratempos («contábeis», para uns, «políticos», para outros) indispusessem o artista com seu país natal. Ele acabou condenado a três anos de detenção «por razões fiscais». Cumpriu metade da pena e «foi liberado». Como a perseguição aos homoafetivos na Rússia de Vladimir Putin é notória, especulou-se que o realizador estaria sendo punido por suas ideias e por mostrar Tchaikovsky, glória da alma eslava, como homossexual. Mas declarações de Kirill Serebrennikov à imprensa internacional dão a entender que ele tem livre trânsito em seu país e que está trabalhando no exterior, em especial na França – parceira essencial na produção de «A Mulher de Tchaikovsky» – porque quer. Tanto que já realizou a adaptação de romance de Emmanuel Carrère («Limónov») para breve estreia e já cuida de seu novo projeto internacional, um longa sobre o nazista Mengele e sua fuga para a Argentina (baseado no livro «O Desaparecimento de Joseph Mengele», de Olivier Guez).

Em 1970, o britânico Ken Russel (1927-2011), dono de espalhafatoso estilo barroco, levou para as telas a trágica história de Tchaikovsky e seu breve casamento, que o levaria a colapso mental. Ou, se quisermos ser mais precisos, um matrimônio que, para desespero do artista, durou pelo restante de sua vida. Sim, porque Antonina jamais concederia o divórcio a seu amado. Mesmo que a união nunca tenha sido consumada, pois ele prometera a ela apenas um casamento espiritual.

O filme de Russel («The Music Lovers»), superprodução protagonizada por Richard Chamberlain e Glenda Jackson, causou, a alguns, horror. Claro que por seu barroquismo vulgar e desmedido até mais não poder. Em outros provocou interesse, já que quebrava com as convenções cinebiográficas engessadas de Hollywood. Revisto um dia depois do realista (com medidas intervenções oníricas) filme de Serebrennikov, o delírio de Russel fica ainda mais barroco, vulgar e excessivo.

«A Esposa de Tchaikovsky» resulta em um  filme envolvente e sólido. Antonina Ivanovna Miliukova (1848-1917) é uma jovem que decide, custe o que custar,  casar-se com o compositor, oito anos mais velho que ela. Faz desse ideal a razão de sua vida. Busca um manual de escrita de cartas de amor e começa a mandar missivas ao artista e professor do Conservatório de Música de Moscou. Que a tem como aluna. Ele acaba por responder a uma das cartas apaixonadas. E, por fim, aceitará o casamento, mas definindo-o como «apenas espiritual».

A presença da jovem obstinada, desejosa que o esposo a ame, mesmo que a longo prazo, acaba trazendo inevitáveis transtornos. Tchaikovsky (assim como o irmão Modeste) não era bissexual. Era homossexual. Poucas semanas depois, em profundo sofrimento psíquico, ele não conseguia compor e seus sentimentos estavam destroçados. Um grupo de amigos, incluindo o influente pianista, professor e regente Antonov Rubinstein, tentou convencer a jovem a conceder o divórcio ao marido. A lei russa (no tempo do czarismo) exigia que um dos cônjuges admitisse a prática de adultério. Nina negava que o marido cometera tal prática. Ela idem. Não assinou nenhuma confissão. Sem papel que justificasse a separação, nada feito. Para que a cônjuge não revelasse a homossexualidade do marido, Antonina passou a receber significativa pensão. Isto, por 16 anos, pois Tchaikovsky morreria em 1893.

Nina viveria mais 24 anos (até o ano da Revolução Bolchevique, 1917), alguns deles num hospício. Segundo o espalhafatoso filme de Ken Russel, viveria como «uma ninfomaníaca», que descontaria a virgindade dos tempos do breve casamento com o compositor com uma infinidade de amantes. E «cafetinada» pela própria mãe.

O filme de Kirill Serebrennikov se dá em outro registro. Realista, duro, apaixonante. Onírico às vezes, mas nunca em excesso. E com a inserção de seus personagens no contexto de uma Rússia czarista, marcada por grandes contrastes sociais. A obstinada Nina é muito religiosa, oriunda de família problemática e sem sofisticação. Para conquistar Tchaikovsky, ela ajoelhar-se-á, muitas vezes, nas escadas da Igreja Ortodoxa ao lado de pessoas miseráveis, famélicas e tomadas pelo fanatismo religioso.

No campo moral, o filme comete ousadias das mais instigantes. Mistura realidade, desejo, sonhos e pesadelos, ao mostrar a vida sexual de Nina durante os anos vividos como «esposa sem marido». Corpos masculinos nus serão mostrados sem nenhum puritanismo.

Se Ken Russel deu asas à imaginação e inventou o quanto pôde para construir seu épico alucinado (que os tradutores brasileiros acertaram em batizar de “Delírio de Amor”), Kirill Serebrennikov foi fiel à pesquisas da trajetória de Tchaikovsky empreendidas pelo professor Alexander Poznansky, da Universidade de Yale, condensadas em dois volumes. E a eles somou a espinha dorsal de sua narrativa encontrando matéria-prima no livro “Antonina Tchaikovsky: História de uma Vida Esquecida”, de Valeri Sokolov.

Claro que, ao escrever o roteiro, o cineasta tomou liberdades, mas o fez no plano onírico. E, para tanto, usou sua experiência como diretor de teatro e ópera, dando vazão aos desejos da jovem Nina, que sonhou o impossível: ser a respeitável Senhora Tchaikovsky, aquela imortalizada em fotografia composta nos mínimos detalhes e distribuída aos olhares da sociedade. Aliás, esta é uma das cenas mais significativas do filme, pois constitui sólido registro de um mundo fincado nas aparências.

Que ninguém se assuste com a duração de “A Esposa de Tchaikovsky” (quase duas horas e meia). A narrativa se desenvolve no ritmo justo para que nos envolvamos com o drama de Nina, de Piotr Tchaikovsky, de seu grupo de amigos muito próximos, de seus parentes (em especial a irmã Sasha, por quem ele tinha imensa estima, que era recíproca). Enfim, um filme para público adulto, sobre questões de grande relevância em nosso tempo, mesmo que sejam passados quase 150 anos daquele 1877, quando se deu a boda que uniu o compositor homoafetivo à jovem e obstinada Nina.

 

A Esposa de Tchaikovsky
Rússia, França e Suíça, drama biográfico, 143 min., 2022
Direção e roteiro: Kirill Serebrennikov
Elenco: Alyona Mikhailova, Odin Lund Biron, Miron Fedorov, Yuliya Aug, Filipp Avdeev e Andrey Burkovskiy
Fotografia: Vladislav Opelyante
Montagem: Yuriy Karikh
Produtor: Ilya Stewart
Classificação Indicativa: 16 anos

 

FILMOGRAFIA
Kirill Serebrennikov, russo nascido em Rostov do Don, em 07/09/1969

2023 – «La Disparition de Josef Mengale» (em processo)
2023 – «Limonov: The Ballad of Eddie» (inédito)
2021 – «A Febre de Petrov»
2018 – “Verão (Leto)”
2016 – “O Estudante”
2012 – «Betrayal»
2008 – «Yuri’s Day»
2006 – «Playing the Victim»
2004 – «Ragin»

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