O iraniano Panahi constrói com o metalinguístico “Sem Ursos” sua mais bela e complexa criação

Foto: Cena-chave do filme – Jafar Panahi fotografa meninos numa praça. Será que fotografou, sem querer, casal que vive amor proibido?

Por Maria do Rosário Caetano

“Sem Ursos”, o décimo-primeiro longa-metragem de Jafar Panahi – em cartaz no circuito comercial brasileiro, depois de conquistar Prêmio Especial do Júri em Veneza – propõe-se, segundo sua sinopse oficial, a retratar “duas histórias de amor contadas em paralelo”. Em ambas, “os amantes são afetados por obstáculos ocultos e inevitáveis, pela força da superstição local e pelos mecanismos do poder”.

Há, realmente, duas histórias de amor no filme. Uma que se passa na trama metalinguístico-ficcional que diretor-ator de “Sem Ursos”, o próprio Jafar Panahi, filma à distância, fixado em poeirenta cidadezinha fronteiriça (entre Irã e Turquia). A outra história acontece neste lugar ermo onde o cineasta se encontra, em caráter temporário. E que o envolve por razão – mais uma vez pela metalinguagem – que nos faz lembrar o “Blow Up”, de Michelangelo Antonini.

Panahi, quando não consegue dirigir, via internet (precária no vilarejo), seu longa ficcional ambientado na Turquia, perambula pelo povoado iraniano, dialogando ou fotografando seus moradores. Senhoras idosas, jovens ou crianças. Numa praça arborizada, encontra alguns meninos e os fotografa sentados numa mureta, em plano geral. Dali surgirá complexa suspeita: teria ele fotografado, sem perceber, casal de jovens apaixonados, que planeja fugir da cidadezinha? Afinal, eles se amam, mas a moça está prometida a outro, desde que teve o cordão umbilical cortado em ritual secular. Ela não deseja contrair matrimônio, de forma alguma, com aquele que a tradição local lhe impõe.

A história de amor do filme dirigido à distância por Panahi envolve outro casal que quer fugir (da Turquia), mas não pode fazê-lo, pois não dispõe de passaportes. O homem, mais velho que a moça, garçonete num restaurante, consegue passaporte falsificado para ela. Mas a jovem se nega a partir sem ele.

Na verdade, “Sem Ursos” – um dos mais belos e complexos filmes do discípulo (e ex-assistente em “Através das Oliveiras”) de Abbas Kiarostami – tem uma terceira história: a do próprio cineasta. Ao se relacionar com as duas tramas (a ficcional-cinematográfica – roteirizada e filmada à distância) e a “real” (claro que também escrita por ele), Panahi torna-se o protagonista de uma terceira história, com muito de autobiográfico. Afinal, em 2010, ele foi condenado a seis anos de prisão (por oposição ao Governo) e proibido de sair do país por prazo de 20 anos. Em prisão domiciliar, continuou filmando, nas condições mais adversas, tendo sua própria casa como cenário. Fez importantes curtas e longas-metragens.

A história do casal turco é, em certa medida, a história de Panahi, sem passaporte para deixar seu país de origem. Ao mesmo tempo, ao escolher uma cidade de fronteira para passar aquela temporada, ele mesmo poderia, de alguma forma, estar estudando as condições de, quem sabe, buscar exílio em outro país. Tanto que pergunta ao rapaz, que lhe serve de ajudante, o que realmente separa, do ponto de vista geográfico, os dois países: “qual é a linha divisória”, a que delimita a separação das fronteiras?

Jafar Panahi, aos 62 anos, consagrado com diversos prêmios nos três maiores festivais do mundo (Cannes, Veneza e Berlim), foi posto recentemente em liberdade e seu direito de viajar lhe foi devolvido. Tudo, porém, demonstra que deixar o Irã nunca foi sua intenção. Quem tinha alguma dúvida, a abandonará depois de assistir a “Sem Ursos”.

O filme é um mergulho amoroso e profundo na cultura de seu país e de sua gente. Claro que ele não concorda com os costumes absurdos – e patriarcais – da cidade fronteiriça. Onde já se viu duas famílias estabelecerem, no ato de cortar o cordão umbilical de bebê do sexo feminino, que ela se tornará esposa do filho do casal visitante?

Mesmo assim, o povoado é filmado com respeito e olhar reflexivo. O ficcionista (e documentarista) Panahi anda pelas ruas poeirentas, conversa com as pessoas, tenta entender aquele mundo tão diferente do seu. Mas não se comporta como um juiz. É um cineasta (um artista) que se depara com situações desafiadoras. De antologia a cena do “julgamento” em que se vê envolvido.

Ao ser pressionado, em certo momento da narrativa, a revelar se fotografou o clandestino e transgressor casal apaixonado da aldeia – um dos meninos fotografados diz que sim, mas palavra de menino não tem valor “legal” – Panahi assegura que não. Não fotografou. E se dispõe a entregar o material comprobatório (o cartão de memória de sua câmera digital). Mesmo assim não convence, de todo, aqueles homens desconfiados (da tecnologia, inclusive).

O filme discute o poder com sutileza (prestem atenção na razão do título, significativa, embora não pareça estar à altura de trama tão envolvente). E Panahi concebe, ao concluir seus 107 minutos de narrativa, o mais belo e impactante dos finais de todos os seus filmes. Não se distraiam, pois virá do carro do cineasta, um rápido som. E este som terá significado de imensa importância. Um significado de implicações éticas.

“O Balão Branco” é um filme encantador. “Ouro Carmim”, uma obra provocadora e instigante. Mas nenhum dos onze longas de Jafar Panahi é tão apaixonante e complexo quanto este filme da maturidade. “Sem Ursos” merecia o Leão de Ouro de Veneza 2022. Láurea mais merecida até que a atribuída a ele, por  “O Círculo”, premiado em 2000.

O júri veneziano, ano passado, preferiu o documentário norte-americano “All the Beauty and the Bloodshed”, de Laura Poitras. Pelo menos atribuiu o Prêmio Especial a “Sem Ursos”.

 

Sem Ursos
Irã, 2022, 107 minutos
Direção, roteiro e produção: Jafar Panahi
Elenco: Jafar Panahi, Naser Hashemi, Vahid Mobaseri, Bakhtiar Panjei, Mina Kavani
Fotografia: Amin Jafari
Montagem: Amir Etminan
Distribuição: Imovision
Circuito: São Paulo, Rio, Brasília, Recife, Curitiba, Florianópolis e Niterói

 

FILMOGRAFIA
Jafar Panahi (Minaeh, Irã, 11 de junho de 1960)

2022 – “Sem Ursos” – Prêmio Especial do Júri (Veneza)
2020 – “Celles qui Chantent” (longa documental)
2018 – “3 Faces” – Melhor roteiro em Cannes
2015 – “Taxi Teerã” – Urso de Ouro em Berlim
2013 – “Cortinas Fechadas” – Urso de Prata de melhor roteiro em Berlim
2011 – “Isto Não é um Filme”
2006 – “Fora do Jogo” (Urso de Prata em Berlim)
2003 – “Ouro Carmim” – Prêmio do Júri na mostra Un Certain Regard-Cannes
2000 – “O Círculo” – Leão de Ouro em Veneza
1997 – “O Espelho” – Leopardo de Ouro em Locarno
1995 – “O Balão Branco” – Troféu Câmara de Ouro de melhor filme de diretor estreante, em Cannes.

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