Les Blank filmou a saga de Werner Herzog na Amazônia peruana e registrou o alemão comendo o próprio sapato
Foto: Les Blank nas filmagens de “Burden of Dreams”
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais ou mostras brasileiros (ou internacionais).
A vigésima-primeira dessas lembranças tem a Jornada de Cinema da Bahia como cenário e um visitante ilustre, o documentarista norte-americano Les Blank, como personagem. Ele, que mesmo exalando simpatia e bom-humor, quase passou despercebido pelas sessões de cinema soteropolitanas e pelos corredores do belo Hotel da Bahia, no bairro do Campo Grande.
Corria o ano de 1985. A Jornada de Cinema da Bahia, comandada por Guido Araújo (1934-2017), gozava então de imenso prestígio e formava, junto com o Festival de Brasília e o de Gramado, a trinca mais tradicional e duradoura do país. O festival candango nascera em 1965, das mãos de Paulo Emilio Salles Gomes e equipe, a Jornada, em 1972 (tendo Guido Araújo, Paulo Emilio, Thomaz Farkas, Cosme Alves Netto, Rudá de Andrade e José Tavares de Barros em seu núcleo gerador, chamado de “politburo”, tamanho era seu engajamento político). Gramado criaria seu festival em 1973.
Les Blank, nome artístico de Leslie Blank, nascido em Tampa, na Flórida, em novembro de 1935, tinha então 49 anos, cabelos ralos no cocoruto, um humor refinado e amor infinito pelo cinema documentário, pela música negra de seu país e pela produção audiovisual independente.
Naqueles meados da década de 1980, ele gozava de imensa estima entre os cinéfilos, pois realizara documentário que muitos definiam como “melhor e mais vigoroso” que o longa-metragem “Fitzcarraldo” (Werner Herzog, 1982), cujas tumultuadas filmagens lhe haviam servido de matéria-prima.
O cineastas norte-americano embrenhou-se na selva da Amazônia peruana para documentar, custasse o que custasse, os bastidores da saga herzoguiana centrada em um aventureiro (primeiro interpretado por Jason Robards, que desistiu, acometido de grave desinteria, de set tão tumultuado). Para seu papel foi convocado um substituto, o indomável Klaus Kinski.
Brian Fitzgerald, que gerou na corruptela Fitzcarraldo, era um aventureiro obsessivo e extravagante, que desejava construir casa de ópera, em homenagem a seu ídolo Enrico Caruso, em plena selva, na Amazônia peruana. Depois de arrendar pedaço de terra de difícil acesso, embora muito rico em borracha, o sonho de Fitzcarraldo mostrou-se de difícil execução. Seu maior desafio consistiria em transportar navio por terra elevada, que separava um rio do outro. O europeu atingirá seu objetivo explorando mão de obra indígena. E acompanhado de sua amada (Claudia Cardinale).
O documentário de Les Blank registrou, com rara competência e imagens poderosas, a epopeia herzoguiana, que contou, além de Kinski e Cardinale, com os brasileiros José Lewgoy (como coadjuvante) e Grande Otelo, Milton Nascimento e Ruy Pollanah (estes em pequenas aparições), e com Paul Hittscher, Peter Berling, Miguel Angel Fuentes e dezenas de indígenas peruanos.
“Fitzcarraldo” construiu-se, claro, com imensa dose de loucura do diretor de “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, seu filme mais famoso, que custara míseros U$350 mil e rendera infinitas vezes esse valor. Afinal, fora vendido para quase uma centena de países dos cinco continentes. Já “Fitzcarraldo” fora concebido como uma produção de custo mais alto e os produtores exigiam atores famosos no elenco (daí os nomes originais de Jason Robards e do rolling stone Mick Jagger).
O documentário de Les Blank – “Burden of Dreams” (“O Peso dos Sonhos”) – foi finalizado em 1982 e resultou em épico documental de 95 minutos. “Fitzcarraldo”, concluído no mesmo ano e levado à competição do Festival de Cannes, durava 2h35′, não causou a sensação esperada. Sua épica de produção, vivida na selva peruana, parecia mais emocionante que o filme protagonizado por Kinski e a linda Cardinale.
Já o filme de Les Blank transformou-se num cult movie. Algo raro para um documentário. Até hoje, “Burden of Dreams” conta com fãs ardorosos, caso do cineasta pernambucano Kleber Mendonça, que esteve em Cannes em maio último para mostrar seu quinto longa-metragem (o documentário “Retratos Fantasmas”) e em questionário, com algo de proustiano, do Libération – depois de definir “O Terceiro Homem” (Carol Reed, 1949) seu ‘palmaré’ preferido, e destacar cena notável do épico soviético “Vá e Veja” (Elem Klimov, 1985) – cravou:
Libé – “A última vez, que você chorou numa sala de cinema?”
Kleber – “Burden of Dreams”, visto em dezembro, o documentário de Les Blank sobre a filmagem de ‘Fitzcarraldo’, de Werner Herzog, na selva, na América do Sul, com Klaus Kinski”.
O filme que fez o diretor de “O Som ao Redor” chorar, aos 54 anos, emocionou mesmo muita gente. Não seria diferente com os que o viram na Jornada de Cinema da Bahia. Les Blank chegou a Salvador com quatro documentários na bagagem: “Burden of Dreams”, claro, seu carro-chefe, dois títulos sobre música negra (“O Blues Segundo Lightnin Hopkins” e “Uma Vida Bem Vivida”) e um sobre o carnaval de New Orleans (“Sempre por Prazer”).
Guido Araújo convidou Les Blank para a Jornada, que o homenageou discretamente, por “seu empenho em defesa do cinema documentário de produção independente”. O festival baiano não costumava abrir espaço para cineastas norte-americanos, pois sempre lutou contra a hegemonia de Hollywood.
Já em sua segunda edição, realizada em setembro de 1973, portanto há 50 anos, o festival baiano pranteou a morte de Salvador Allende, vítima de golpe de estado liderado por Augusto Pinochet. O 11 de setembro chileno gerou no “politburo” soteropolitano um “mar de lágrimas e revolta”. Os anos passavam e Guido Araújo chorava só de lembrar aquele trágico dia.
Les Blank já conhecia o Brasil. Ele participara, ainda em 1982, da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a convite de Leon Cakoff. Apresentou sua saga herzoguiana aos paulistanos. Depois, a convite de Fabiano Canosa, participou do FestRio, comandado por Ney Sroulevich.
Em Salvador, Les Blank encontrou dupla de fãs apaixonados, que andava com ele pelos corredores do Hotel da Bahia, via seus filmes, procurava saber tudo de sua carreira (vinte produções, a maioria de média-metragem). Tratava-se do crítico e documentarista Sérgio Moriconi, parceiro de Vladimir Carvalho em “Persheguini”, e da jornalista Gioconda Caputo.
Sérgio e Gioconda, em companhia de Jussara Mendonça, apresentadora de programa musical na Rádio Nacional de Brasília, eram devotos do blues e do jazz. Além de frequentar festivais internacionais em Ribeirão Preto, São Paulo, Rio e onde mais aparecessem, garimpavam filmes dedicados ao gênero. Jussara ganhou, inclusive, uma palheta do guitarrista B.B. King, que guardava com imenso carinho.
Gioconda relembra o encontro com Les Blank na Jornada da Bahia. “Ficamos tão felizes de ver os filmes dele sobre blues, que os adquirimos na hora. Como todo produtor independente, ele vendia cópias em vídeo (o velho VHS). Como trouxera poucas fitas e títulos ao Brasil e queríamos ter todos os documentários musicais dele, fizemos a encomenda. Ele os enviou dos EUA, pelos correios”.
Eu cobria a Jornada de Cinema da Bahia para o Correio Braziliense. Ao entrevistar Les Blank, perguntei se ele ouvia, com frequência, a opinião corrente de que “Burden of Dreams” era melhor que “Fitzcarraldo”.
Ele respondeu: “Já ouvi pessoas dizerem que gostam mais do meu filme que do ‘Fitzcarraldo’, de Herzog. Isto não desmerece o trabalho do diretor alemão. Ao contrário, mostra que ele é uma figura ainda mais interessante que o personagem de seu penúltimo filme” (o prolífico realizador germânico assinaria, sem descanso, “Onde Sonham as Formigas Verdes”, em 1983, e, em seguida, dois títulos televisivos – “Ballade von Kleinen Soldaten” e “Der Leuchtende Berg”).
Sobre o incansável diretor que, com Fassbinder, Kluge, Scholondorff e Margaret von Trotta, renovara o cinema alemão, Les Blank ponderou: “Documentei em ‘Burden of Dreams’ a garra obsessiva de Herzog para terminar ‘Fitzcarraldo’. Se ele não fosse uma pessoa excepcional, não teria concluído o filme, pois enfrentou os mais diversos problemas. Já havia rodado trechos importantes, quando o ator principal teve problemas e regressou aos EUA, numa viagem sem volta. Teve que buscar Klaus Kinski”.
E mais: “Mick Jagger, que desempenhava papel importante, não pôde esperar mais, pois tinha importantes compromissos na Inglaterra. Acabou fora de ‘Fitzcarraldo’, mas está em meu filme, através das sequências filmadas, que interrompidas, obrigaram Herzog a eliminar o personagem”.
Les Blank afirmou, na Bahia do candomblé e grandes artistas negros, que não era um especialista em cultura afro-americana. Amava os artistas do blues (dedicara um filme a Mance Lipscomb, que ele considerava um dos maiores guitarristas de todos os tempos), mas seus 20 documentários realizados até então, abordavam temas variados.
“O que acabo de realizar” – contou com muito bom humor — narra “a história do alho”. Afinal, em suas pesquisas sobre o assunto, o documentarista constatara que “a primeira greve do mundo foi feita por causa do precioso condimento”. Isto porque “os trabalhadores das pirâmides do Egito protestaram quando tiveram cortado seu suprimento de alho”. O filme — arrematou Les Blank —“aborda, também, as propriedades curativas do produto e sua utilidade na culinária”. Estava aí outro tema que apaixonava Les Blank: a comida.
O cineasta anunciou, na Jornada, dois novos projetos – um sobre as manifestações musicais dos negros cubanos exilados na Flórida, e outro sobre mulheres famosas. Já havia contatado Angela Davis, Madona, Lauren Hutton, Ornella Mutti, Whopi Golberg e a juíza Sandra Day. Seu plano era ouvir 50 estrelas femininas.
— Sobre o sucesso delas?
— “Não”, explicou o bem-humorado Les Blank. “Vou falar com elas sobre o que é ter os dentes frontais separados”.
— Como assim?
— Trata-se de um tema importante. Na Idade Média, dentes separados eram símbolo de sensualidade. Entre certas tribos africanas é sinal de boa sorte. Já entre mulheres norte-americanas é um deformidade, que merece correção através de tratamentos estéticos. No fundo, quero registrar e discutir os padrões de beleza dominantes na sociedade norte-americana.
Além de carregar irresistível bom-humor, Les Blank era um diretor polivalente, que fotografava os próprios filmes. Fotografou-os até morrer, em 2013, aos 77 anos, na Califórnia, deixando três filhos de seus dois casamentos.
Ah, deixou também um curta-metragem muito bem-humorado, mais uma vez tendo o visionário diretor de “Fitzcarraldo” como personagem: “Werner Herzog Come seu Sapato” (1980, 22 minutos). Um filme, claro, feito num dos intermezzos da saga fitzcarraldiana, que durou quase três anos.
O documentário mostra o diretor alemão “comendo seu sapato”. Para imitar o Carlitos de Charles Chaplin, em “Em Busca do Ouro”, quando premido pela fome, o vagabundo transformou cadarços de seu calçado em macarrão?
Não. Herzog “comeu” seu sapato para pagar aposta que fizera com Errol Morris. Se o documentarista norte-americano conseguisse concluir “Gates of Heaven” (sobre cemitério de cães), o germânico faria de seu calçado iguaria culinária. Morris conseguiu concluir o filme. Seu desafiador pagou o tributo. Les Blank, o bem-humorado, filmou tudo. Ou seja, Herzog visto numa casa californiana, enquanto cozinha o próprio sapato e discute cinema e arte com estudantes.
Este filme, de certa forma chapliniano, Les Blank não mostrou em sua discreta passagem pela politizada Jornada na Bahia.
Kleber Mendonça e “Burden of Dreams”
O cineasta Kleber Mendonça tem pelo filme “Burden of Dreams” uma imensa estima. Em dezembro de 2022, ele convidou Jorge Bodanzky, colega de ofício, a participar do projeto Carta Branca, do IMS (Instituto Moreira Salles), cuja proposta consiste em solicitar a um artista que selecione seus filmes preferidos. Os escolhidos são exibidos em mostra no cinema do IMS, na Avenida Paulista. Entre os títulos enumerados pelo diretor de “Iracema – Uma Transa Amazônica” (1975, parceria com Orlando Senna), estava o documentário de Les Blank.
Para Kleber, o filme do documentarista norte-americano que tem Werner Herzog e sua aventura fitzcarraldiana como tema é “um tipo de cinema que se tornou muito comercial na indústria, que é o filme sobre um filme, o making of”. Só que “este não é making of normal, porque o personagem principal é um cineasta que também não é normal”.
O brasileiro lembra que “’Burden of Dreams” é um filme “muito forte como ideia, pois realiza um grande desafio”: “comunicar-se com os que não fazem cinema, sobre o que é fazer cinema. Muitas vezes não temos como passar o que significa o grau de seriedade, de complexidade, do fazer cinematográfico. E não me refiro só às questões técnicas”. E mais: “’Fitzcarraldo’ não se encaixa num cinema industrial, ele é artesanal”. Por isso, “me parece ser cada vez mais improvável a realização de filmes como este de Herzog e ‘Apocalipse Now’ (Francis Ford Coppola, 1979), contemporâneos em sua criação”.
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