Livro comemora 60 anos do Bijou, o mais “cult” dos cinemas de arte de São Paulo

Foto © Acervo pessoal de Adriana Coelho de Moura

Por Maria do Rosário Caetano

As “Memórias do Cine Bijou”, que já somam seis décadas, serão festejadas nesse sábado, 15 de julho, na Praça Roosevelt paulistana, com lançamento do livro homônimo de Marcio Aquiles. Que os interessados cheguem cedo (a festa começará às 17h), pois o livro terá distribuição gratuita.

O autor de “Memórias do Cine Bijou” garante que a pequena sala, criada pelo aventureiro judeu-argentino Jaime Schvarzman Rotbard, em 1962, nasceu como “o primeiro cinema de arte do país”. Ou seja, foi o primeiro espaço comercial brasileiro criado para difundir filmes de Eisenstein, Kurosawa, Bergman, Buñuel, Rosselini, Visconti, Antonioni, Fellini, Pasolini e, claro, Godard, Truffaut e toda a turma da Nouvelle Vague. Sem esquecer o cinema do Leste Europeu (no Bijou, os filmes do polonês Wajda e o “cult” tcheco-eslovaco “Um Dia, Um Gato”, de Vojtech Yasni, causaram sensação).

Hoje, o Cine Bijou é comandado pelos “satyros” Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vázquez. A dupla dirige, além da salinha, um grupo teatral, escola de artes cênicas e um pequeno teatro. O complexo alternativo trouxe nova vida à região central de São Paulo, que assistia à recorrente transformação de seus cinemas em igrejas, supermercados ou estacionamentos.

Ao invés de (re)programar filmes das grandes estrelas do cinema de arte de outrora, o Bijou vem exibindo filmes independentes brasileiros e realizando, com a Apaci (Associação Paulista de Cineastas), projeto que, a cada semana, ganha novo fôlego. Filmes de realizadores paulistanos (e convidados) são exibidos na salinha e depois, debatidos por seus autores (ou integrantes de sua equipe artística e técnica).

O ponto máximo do projeto, chamado informalmente de Apacine-Bijou-Satyros, verificou-se em maio, com a exibição de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, o mais famoso dos longas-metragens de Roberto Santos. O evento, que abarrotou o espaço da Praça Roosevelt, contou com a presença do compositor Geraldo Vandré, autor da trilha do filme adaptado do conto homônimo de Guimarães Rosa. Houve necessidade de cadeiras extras, tamanha foi a afluência de espectadores.

Depois da leitura do livro “Memórias do Cine Bijou”, o integrante da velha-guarda (ou da novíssima geração) vai deparar-se com uma história marcada por muitos altos e baixos. O Bijou conheceu seus anos de ouro nas décadas de 1960 e 1970, mas ficou fechado a partir de 1996 até ser resgatado pelos Satyros.

O livro de Marcio Aquiles compõe-se com 19 depoimentos de frequentadores do Cine Bijou e com intrigante texto intitulado “Pesquisa em Deriva”. Outros pequenos artigos (de nomes aliciantes) se somam nas 130 páginas da publicação – “O Brilho do Cine Bijou”, “Um Ícone da Sétima Arte”, “Um Bunker para o Cinema Nacional”, “Um Território de Sonhos para a Arte e a Democracia” e “Memórias Afetivas da Cinefilia Paulistana”. Para completar-se com larga lista de filmes de arte exibidos na salinha e com um pequeno dossiê fotográfico.

O melhor dos 19 depoimentos é o de Jeferson Del Rios, jornalista, crítico teatral e escritor (“Bananas ao Vento – Meia Década de Cultura e Política em São Paulo” e, entre outros, “Athos Abramo – O Crítico Reencontrado”). O jornalista de 79 anos, que teve sua produção crítica reunida em duas coletâneas da Coleção Aplauso (Imprensa Oficial de SP), fornece respostas consistentes às perguntas formuladas pelo pesquisador Marcio Aquiles. Apaixonado por sua cidade adotiva, a capital paulista (ele nasceu em Ourinhos, no interior), Del Rios e suas memórias fluviais nos estimulam a seguir, com entusiasmo, pelos textos que virão. Nenhum, registre-se, à sua altura evocativa.

Cinco outros nomes mobilizados por Aquiles merecem destaque no conjunto de entrevistas rememorativas da história do Bijou. Primeiro, o do escritor e teatrólogo Mauricio Paroni de Castro, seguido pelos de duas herdeiras, Luiza Rotbart, filha do criador do cinema e “afilhada de Grande Otelo”, e Adriana Coelho de Moura, filha do mais longevo proprietário da sala, Francisco Augusto Coelho. Dois criadores, o jornalista Marcelo Coelho e o dramaturgo Mário Viana, eram, claro, presenças obrigatórias. Afinal, escreveram sobre a salinha da Praça Roosevelt. Marcelo assina o livro “Cine Bijou” (ilustrado por Caco Galhardo), publicado em 2012 pelo Sesc/Cosac Naify. Já o dramaturgo Mário Viana dedicou-se à criação de uma pequena peça (“Cine Bijou”), apresentada num “Satyriana – Dramamix”, para revelar uma das faces (de outrora) do cinema, a de espaço de “pegação”.

As respostas do arquiteto, urbanista  e professor da USP, Nabil Bonduki, embora áridas, merecem atenção, pois são fruto de suas vivências como gestor cultural e vereador dedicado à transformação da megalópole paulistana num lugar mais aprazível (se é que isto seja possível!).

Bonduki é um incansável defensor dos cinemas de rua, pois sabe que eles são fonte de revitalização de áreas urbanas semi-abandonadas. Foi um dos artífices da retomada de outro templo da cinefilia artística, o Cine Belas Artes-Consolação. E um dos incentivadores do projeto Satyros, que, a partir do ano 2000, fertilizou a reurbanização e reocupação da área, localizada outrora (como lembra Del Rio) nas proximidades de dois importantes espaços culturais de São Paulo – a antiga Faculdade de Filosofia da USP (hoje Centro Cultural Maria Antonia) e a antiga Faculdade de Arquitetura, na Rua Maranhão (onde estudou Chico Buarque).

Os testemunhos dos jornalistas Gabriela Longman e Thales Menezes, e o de Rubens Rewald, cineasta e professor da USP, também são valiosos, embora nenhum deles tenha vivido as duas décadas de ouro do Cine Bijou. Mas a trinca traz significativas reflexões sobre o papel da pequena sala na história dessa imensa cidade carente de espaços de convivência fraterna.

Completam o livro depoimentos de nomes de grande importância na vida cultural paulistana, como a atriz e cineasta Helena Ignez, o escritor Marcelo Rubens Paiva, a apresentadora Marília Gabriela, o jornalista e editor do caderno cultural do Estadão Ubiratan Brasil, o crítico Sérgio Alpendre, o ator Luiz Amorim, o crítico de teatro Evaristo Martins de Azevedo e os cineastas Dida Andrade e Andradina Azevedo.

As perguntas formuladas por Marcio Aquiles gravitam em torno de três temas – os filmes vistos no Cine Bijou, que marcaram as memórias afetivas do entrevistado, a resistência artística e política à ditadura militar, que censurava dezenas de filmes (caso de “A Batalha de Argel”, “Queimada”, “Laranja Mecânica”, “O Império dos Sentidos”) e as bem-sucedidas tentativas de menores de 18 anos de assistirem a filmes proibidos para sua faixa etária.

No texto “Pesquisa em Deriva”, guardado para o final do livro, Aquiles conta parte da história do fundador do Cine Bijou, o empresário Jaime Schvarzman Rotbard (1927-1989). Primeiro, o pesquisador lembra que, em seu ensaio “Pasolini Passou por Aqui”, José Inácio de Melo Souza, biógrafo de Paulo Emilio Salles Gomes, trouxe referência ao empreendedor argentino, citando-o como responsável pelo Cine Bijou, “um lance” implantado no circuito exibidor paulistano, no início da década de 1960.

Para confirmar a informação, Aquiles mergulhou em jornais do período e encontrou registros que ora definem o argentino como um ousado empresário, que comprou “um grande lote de filmes censura livre adquiridos em diversos países”, ora como empreendedor “na mira da Interpol”, que teria sido “expulso de Cuba” e que, em São Paulo, “vem explorando um tipo de cinema condenável pela moral e pelos próprios exibidores, abrindo casas de espetáculos no centro e, agora, no Brás, para a apresentação de filmes de escândalo” (a denúncia vinha do vereador Fernando Pereira Barreto e foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 21 de agosto de 1962).

Até nas memórias de Jô Soares (“O Livro do Jô – Uma Autobiografia Desautorizada”), Marcio Aquiles encontrou referência ao empresário argentino, chamado carinhosamente (pelo Gordo) de Jaiment. Ele teria inaugurado em 15 de outubro de 1962 (a data correta parece ser 4 de julho) a pequena sala com o filme búlgaro “A Lenda do Amor”, de Václav Krska.

Luiza, a filha de Jaime Schvarzman Rotbard, desenhará perfil com curiosos detalhes sobre o pai empresário, aproximando-o da figura de um milionário excêntrico e aventureiro. Em futuras edições do livro, o quase centenário fundador do Bijou poderá render um ótimo capítulo. O autor de “Memórias do Cine Bijou” já dispõe de fértil esboço rascunhado.

Por fim, vale lembrar que o espaço da Praça Roosevelt teve, ao longo de seus 60 anos, ocupações alternadas, funcionando ora como cineclube, ora como teatro. Nesse tempo presente, iniciado em 25 de janeiro de 2022, dia dos 468 anos da capital paulistana, o cinema de nome sintético e gracioso encontra-se em fase de árdua luta para mobilizar o público e conseguir lotar suas sessões cinematográficas. O faz com parceiros (como a Apaci e Spcine) e com ingressos a preços populares.

 

Memórias do Cine Bijou
Autor: Marcio Aquiles
Edição: Selo Lucias e Associação dos Artistas Amigos da Praça (Adaap)
Páginas: 120
Lançamento: 15 de julho, à partir das 17h, no Satyros Bijou, Praça Franklin Roosevelt, 172, com distribuição gratuita

 

Alguns filmes exibidos no período histórico (1962 a 1996):

. 8 1/2 , de Fellini (Itália)
. A Carroça, de Karel Kachina (Tcheeslovaquia)
. A Fonte da Donzela, de Bergman (Suécia). A Ilha, de Walter Hugo Khouri (Brasil)
. A Mulher de Areia, de Teshigahara (Japão)
. As Aventuras de Tom Jones, de Tony Richardson (Inglaterra)
. As Criaturas, de Agnes Varda (França-Bélgica)
.  Cidadão Kane, de Orson Welles (EUA)
. Encouraçado Potemkin (URSS)
. Viridiana, de Buñuel (Espanha)
. A Noite, de Antonioni (Itália)
. De Crápula a Herói, de Rossellini (Itália)
.  Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (Brasil)
. Electra, a Vingadora – de Cacoyannis (Grécia)
. Eugene Onegin, de Roman Tikhomirov (URSS)
. Kanal, de Andrzej Wajda (Polônia)
. Hamlet, de Grigori Kozintsev (URSS)
. O Bandido Giuliano, de Francesco Rosi (Itália)
. Os Companheiros, de Mário Monicelli (Itália)
. O Leopardo, de Visconti (Itália)
. Pedro, o Negro, de Milos Formann (Tchecoeslovaquia)
. Um Rei em Nova York, de Charles Chaplin (EUA)
. Raízes, de Benito Alazraki (México)
. A Pequena Loja da Rua Principal, de Ján Kádar e Elmar Klos (Tchecoeslovaquia)
. A Religiosa, de Jacques Rivette (França)
. Dersu Uzala, de Kurosawa (URSS- Japão)
. Aguirre, a Cólera dos Deuses, de Herzog (Alemanha)
. Malpertuis, de Harry Kümel (Bélgica)
. Meu Tio da América, de Alain Resnais (França)
. O Idiota, de Ivan Pyryev (URSS)
. Através das Oliveira, de Kiarostami (Irã)
. O Piano, de Jane Campion (Nova Zelândia)

Filmes exibidos na fase atual (produção brasileira):

. “Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa”, de Rubens Rewald, Thales Ab’Saber e Gustavo Aranda
. “Bocage, o Triunfo do Amor”, de Djalma Limongi
. “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, Roberto Santos
. “São Paulo, Sinfonia e Cacofonia” e “Sobre Anos 60”, de Bernardet
. “Iracema, Uma Transa Amazônica”, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna
. “Bom Dia, Eternidade”, de Rogério Moura
. Em Busca de Carlos Zéfiro, de Silvio Tendler
. Programa “Diretoras Mulheres em Foco”
. Anuska, Manequim e Mulher, de Francisco Ramalho Jr

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