“Lenita” revê trajetória da fotógrafa, diretora de “Mestiça” e criadora de cavalos de raça

Por Maria do Rosário Caetano

Ela era amiga de Vera Fischer, Ronnie Von, Marlene França, Miriam Mehler, Mila Moreira, Glorinha Kalil, Liége Monteiro, Clodovil, Luísa Strina e Ralph Camargo. Era “prima da pianista Giomar Novais”. Amava o marido, o cineasta suíço-brasileiro Olivier Perroy. Frequentavam o grand monde paulistano e juntos fizeram diversos filmes. Ela se chamava Maria Helena Ribeiro Pinto. Tornou-se conhecida como Lenita Perroy.

O filme que transforma seu apelido em sintético título – “Lenita”, de Dácio Pinheiro – participa da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que prossegue até primeiro de novembro (sem contar a repescagem), em mais de 20 salas paulistanas. Trata-se do terceiro longa-metragem do realizador paulista, formado pela Faap (“Meu Amigo Cláudia” e “Eletronica: Mentes”).

Lenita Perroy nasceu em 1937, na capital paulista. Na década vibrante e “psicodélica” de 1960 (e na seguinte), ela e Olivier formaram o Casal 20 da fotografia de moda, da propaganda e do cinema paulista. Atuavam ambos em múltiplos ofícios. Ela era fotógrafa, artista plástica, figurinista, cenógrafa e cineasta. Ele, jornalista, publicitário, diretor de fotografia, ator (em “A Superfêmea”) e cineasta.

A vida cinematográfica do casal começou em 1970. Olivier dirigiu a versão cinematográfica de “Beto Rockfeller”, com o mesmo Luiz Gustavo na pele do vendedor de sapatos que frequentava a ‘granfinália’ da maior metrópole da América do Sul. Lenita, que assinara a “produção artística e maquiagem” do Rockefelker saído da imaginação de Bráulio Pedroso, faria sua iniciação no cinema dirigindo seu primeiro (e único) curta-metragem – “Olho de Vidro” (sobre manequins e o mundo da fotografia, que ela conhecia tão bem).

Na primeira metade da década de 70, Lenita faria dois longas-metragens – “Mestiça, a Escrava Indomável”, protagonizado por Sonia Braga, e “A Noiva da Noite (Desejo de Sete Homens)”, com Rossana Ghessa. O primeiro, um extravagante drama histórico baseado em livro de Gilda de Abreu, vendeu 114 mil ingressos.

O segundo, uma aventura com ingredientes de faroeste, vendeu pouco mais de 19 mil ingressos. O Brasil, em especial o cinema paulistano, vivia naquele momento a febre da comédia erótica (ou pornochanchada). Vera Fischer era a estrela máxima do filme com ingredientes eróticos. Ela aparece com destaque em “Lenita” e dá depoimento revelador sobre a cineasta. Diz que a figurinista e diretora de arte paulistana tinha fixação em cabelos longos e volumosos.

“Eu tinha cabelos curtos quando protagonizei ‘A Superfêmea’ (Aníbal Massaini, 1973). Lenita somou peruca e apliques para criar os volumosos cabelos da personagem”, relembra a estrela catarinense. A própria Lenita conta, no documentário, que a mãe queria que ela tivesse cabelos curtos, mas, decidida, sempre os quis longos e vistosos. E assim os manteve pela vida inteira.

Olivier Perroy, depois de “Beto Rocfkelker”, dirigiu um episódio de “A Infidelidade ao Alcance de Todos”; o drama umbandista “Janaína, A Virgem Proibida” (com Marlene França e Ronnie Von) e “Efigênia Dá Tudo que Tem”. Lenita colaborava nos créditos artísticos e técnicos.

Quando o casal se separou, Lenita sumiu do mundo da moda, da fotografia, da publicidade e do cinema. Tornou-se reclusa. Os amigos não a viram mais. Ela passou a dedicar-se a outra de suas paixões: a criação de cavalos de raça.

O documentário de Dácio Pinheiro reconstitui, com muitas vozes e muitas imagens de arquivo, três fases da vida de Lenita. Primeiro, os tempos em que vivia para o mundo da moda e da fotografia. Depois viria a dedicação ao cinema. E, por fim, as décadas vividas no eixo São Paulo-Texas, como frequentadora do mundo dos apaixonados por cavalos. O preferido dela, que ganhou túmulo ricamente adornado ao morrer aos 32 anos, chamava-se Jamal, um garanhão árabe capaz de despertar inveja e cobiça.

Vera Fischer, Ronnie Von, Miriam Mehler e Mila Moreira somam-se a Olivier Perroy (ex-marido, mas “amigo de toda vida”), socialites e empresários para relembrar a amiga que trocou a companhia do mundo artístico e da moda pela reclusão numa fazenda em Sorocaba, onde criava cavalos.

O melhor de todos os depoimentos é o de Miriam Mehler, antagonista da “mestiça” interpretada por Sonia Braga. A eterna Gabriela e Dona Flor amadianas aparece, na pele da escravizada, com cabelos longos, armados e “camp” até mais não poder. Não se assemelhava a uma “escrava indomável”, mas sim uma mulata de Sargentelli (de pele clara) pronta para um show turístico.

Miriam conta que, ao ver o filme pronto, “não gostou de nada”. Nem de seu próprio desempenho, nem da narrativa como um todo. A própria Lenita, que morreria em 2018, aos 81 anos, e tem significativa participação no filme, evocará, sutilmente, sua paixão pelos exageros de Fellini. E dirá que “Mestiça” era um filme “para crianças”. Será?

Culta, Lenita Perroy citará seu filme de cabeceira. Nada mais, nada menos, que “Cidadão Kane”, de Orson Welles. Ou seja, colocará o sarrafo no seu ponto máximo. Sabia o que era bom. Mais uma razão para abandonar o cinema. As outras tinham a ver com as dificuldades de distribuição e exibição de produções brasileiras.

Um terço (a parte final) do filme acontecerá no mundo dos cavalos de raça, com destaque para amigos norte-americanos e um alemão, que dividiam com a brasileira o amor por garanhões de altíssimo custo. Lenita chegou a vender um sítio para obter os dólares necessários à compra (“à vista”) de Jamal.

Um dos momentos mais tocantes do filme mostra o reencontro de Lenita e seu amado Olivier Perroy. Ele está muito gordo. Ela diz que Olivier era “lindo como Alair Delon”. E que, ao deixá-la, casou-se com uma mulher que cozinhava muito bem. “Veja o resultado!”, ironiza.

O ex-marido lembra que Lenita casou-se apenas mais uma vez. Ele, “inúmeras”. Ela pergunta quem é sua mulher atual. Ele cita Marilda Pedroso. “Ela me detesta”, retruca a criadora de cavalos. “De forma alguma, ela gosta muito de você!” Olivier diz a verdade, pois Marilda dá seu testemunho ao filme sobre a “amiga”.

O filme não inova, nem se aprofunda nas contradições do mundo em que a artista viveu, mas consegue com eficiência resgatar a trajetória de Lenita Perroy, uma das pioneiras do cinema feminino no Brasil. Antes dela vieram Carmen Santos, Gilda de Abreu (sua parceira em “Mestiça”), Carla Civelli e poucas outras. O cinema brasileiro, até as grandes mudanças do mundo contemporâneo, era atividade masculina.

Dácio e seus colegas na criação do roteiro do filme (Duda Leite e Tom Ehrhardt) queriam realizar uma homenagem a essa mulher que foi Lenita, cheia de atitudes e praticante de muitos ofícios. Tanto que o documentário termina com os versos e canto amorosos de Lô Borges (“Um Girassol da Cor dos seus Cabelos”). Dácio, Duda e Tom amam sua personagem.

 

Lenita
Brasil, 2023, 83 minutos
Direção: Dácio Pinheiro
Testemunhos: Ronnie Von, Vera Fischer, Miriam Mehler, Mila Moreira, Liége Monteiro, Antônio Pitanga, Glorinha Kalil, Luísa Strina, Ralph Camargo, Olivier Perroy, Marilda Pedroso, Daniel Galvadão, Vera Duvivier, José Gayegos, Malu Fernandes e Luiz Antônio Ribeiro
Roteiro: Dácio Pinheiro, Duda Leite e Tom Ehrhardt
Fotografia: Gustavo Hiroyuki Almeida
Montagem: Thalia Yankleevich
Trilha sonora: Paulo Beto

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