Koreeda dialoga com “Rashomon” no complexo “Monster”, premiado no Festival de Cannes

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta japonês Hirokazu Koreeda, Palma de Ouro em Cannes por “Assunto de Família”, segue brilhando no maior festival de cinema do mundo. Em maio último, seu complexo e surpreendente “Monster” – estreia dessa quinta-feira, 30 de novembro – teve seu roteiro laureado.

O novo filme, o vigésimo-sétimo de sua carreira, é fruto de diálogo com o “Rashomon”, de seus conterrâneos Akira Kurosawa (diretor) e Ryunosuke Akutagawa (escritor). Sim, são da lavra de Akutagawa (1892-1927) os dois poderosos contos que fertilizaram a imaginação de um dos maiores cineastas da história japonesa.

Kurosawa, com “Rashomon”, longa que projetou o fechado audiovisual nipônico mundo afora, continua fertilizando o cinema. Ainda mais agora, tempo em que verdades históricas esboroam nas alucinadas (e líquidas) telas digitais.

Ao triunfar no Festival de Veneza, em 1950, a obra kurasowiana encantou realizadores de todos os quadrantes e plantou raízes seminais e duradouras. Até o pernambucano Nelson Rodrigues e o paulista Nelson Pereira dos Santos beberam direto em sua fonte (com o “Boca de Ouro”, peça teatral e filme).

E por que “Rashomon”, passados mais de 70 anos, continua inseminando o imaginário de criadores como Sakamoto Yuji, o roteirista Palma de Ouro de “Monster”, e Hirokazu Koreeda, o diretor?

Porque o realizador de “Os Sete Samurais” sistematizou e popularizou o chamado “Efeito Rashomon”, esboçado por Akutagawa em conto de mesmo nome. Na transformação da obra literária em roteiro do filme laureado com o Leão de Ouro, Kurosawa e seu parceiro Shinonu Hashimoto somaram dois contos (“Rashomon”, de 1915, e “Dentro do Bosque”, de 1922) e estabeleceram o paradigma de tal tipo de narrativa. Aquela que adota diversos pontos de vista, contraditórios entre si, sobre um mesmo fato, e termina de forma inconclusiva, tamanhas são as contradições entre os testemunhos.

Duas pesquisadoras da Universidade de São Paulo (Aline Santos e Ana Sílvia Médola) estudaram o tema (“o Efeito Rashomon”) em trabalho publicado pela Revista da USP (número 56, 2021). E o fizeram no campo da Semiótica. O “Efeito Rashomon” extrapolou o campo do cinema e fertilizou também a área do Direito Criminal.

Koreeda, que no primeiro semestre nos apresentou seu único longa ‘made in Korea’ (“Broker, uma Nova Chance”) tem, com “Monster”, uma estória incrível (e em fina sintonia com as preocupações de nosso tempo) para contar.

Tudo começa no seio de família disfuncional, razão de ser dos mais premiados filmes do diretor japonês. Uma mãe, a jovem viúva Saori (Sakura Ando), tachada maliciosamente como “solteira” por pessoas preconceituosas, vive, cheia de cuidados, com o filho Minato (Soya Kurokawa), um garoto de 11 anos, matriculado na quinta série do ensino básico. Tudo muda quando ele começa a voltar para casa sempre com alguma alteração no corpo ou vestuário. Com a orelha machucada, sem um tênis, trêmulo e descompensado. A mãe acabará por suspeitar de um professor, Hori (Eita Nagayama), que teria batido na cabeça do menino e atribuído a ele terrível qualificativo (“cérebro de porco”).

Uma resoluta Saori irá até a escola para defender o filho. Ela deseja, com todas as suas forças, colocar termo nos sofrimentos que o pré-adolescente, privado da convivência com o pai, vem sofrendo. Porém, a mãe encontrará diretora e todos os professores da escola na defensiva. Sem querer enfrentar o assunto, eles respondem a todos os questionamentos dela com insistentes mesuras ou vagos pedidos de desculpa. O conjunto docente e, principalmente, a direção temem manchar o nome da instituição educacional.

Quando pensamos estar diante de arrematado e grave caso de bullying numa escola, o filme muda sua narrativa. Passaremos a conhecê-la, por complexos caminhos, agora pelo ponto de vista do professor Hori.

Por fim, numa terceira parte (não estanque), conheceremos a versão do menino Minato, que adentra mata escura em noite de temporal. O faz na companhia de seu colega Yori (Hiiragi Honata), o mais perseguido de todos os alunos da escola – supostamente por ter postura afeminada.

Nada é óbvio no filme. Tudo nos chega banhado em sutileza e humanismo. Poucas vezes, bullying e violência escolar foram tratados com tanta complexidade e delicadeza. Talvez “Monster” só encontre semelhança, no cinema contemporâneo, em “Ervas Secas”, do turco Nuri Bilge Ceylan. Neste filme turco, também premiado em Cannes (melhor atriz), um professor é olhado de forma atravessada por seus colegas, que passam a suspeitar de possível relação dele com aluna da escola onde trabalham (num grotão da Anatólia, não num subúrbio da imensa Tóquio).

Depois de ver o novo Koreeda, saímos do cinema ainda mais convencidos de sua grandeza como cineasta. De sua capacidade de abordar temas difíceis, de nos revelar os “monstros” escondidos em desvãos escuros de nossas vidas cotidianas.

E vale aqui um registro final para fãs de outro ‘japa’ famoso: o compositor Ryuichi Sakamoto – autor da trilha sonora do “Último Imperador”, de Bertolucci, e ator (ao lado de David Bowie) em “Furyo, em Nome da Honra”, de Oshima – assina seu último trabalho cinematográfico em “Monster”. É dele a elegante e discreta trilha do filme. Como morreu em março, Sakamoto nem pôde presenciar a ótima acolhida deste longa-metragem (que merece ser visto por pais e filhos) no festival francês.

 

Monster | Kaibutsu
Japão, 2023, 126 minutos
Direção e montagem: Hirokazu Koreeda
Elenco: Sakura Ando, Eita Nagayama, Soya Kurokawa, Hinata Hiiragi, Mitsuki Takahata, Akihiro Kakuta, Shidô Nakamura, Yûko Tanaka Roteiro: Sakamoto Yuji
Música: Ryuichi Sakamoto
Fotografia: Ryûto Kondô
Direção de arte: Keiko Mitsumatsu
Figurino: Kazuko Kurosawa
Classificação: 12 anos
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
Hirokazu Koreeda (Japão, 06/06/1962)

2023 – “Monster” (Japão)
2023 – “Broker – Uma Nova Chance” (Coréia do Sul)
2019 – “A Verdade” (França)
2018 – “Assunto de Família” (Palma de Ouro em Cannes)
2017 – “O Terceiro Assassinato”
2016 – “Depois da Tempestade”
2014 – “Nossa Irmã Mais Nova” (Cannes)
2013 – “Pais e Filhos” (Grande Prêmio do Júri em Cannes)
2012 – “O Que Eu Mais Desejo”
2009 – “Boneca Inflável”
2009 – “Seguindo em Frente”
2006 – “Hana Yori Mo Naho”
2003 – “Ninguém Pode Saber” (Cannes)
2001 – “Tão Distante” (Cannes)
1998 – “Depois da Vida”
1996 – “Without Memory”
1995 – “Maborosi – A Luz da Ilusão”

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