Longa sobre Hugo Rodas causa furor no Festival de Brasília e deixa “Noite do Terror” em segundo plano

Foto: Equipe do filme “Rodas de Gigante”, no palco do festival © Bené França

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília-DF

Aconteceu o que se previa na quinta noite das duas mostras competitivas do Festival de Brasília, a brasileira e a brasiliense. O longa documental “Rodas de Gigante”, de Catarina Accioly, sobre o diretor de teatro Hugo Rodas, lotou o Cine Brasília e foi ovacionado calorosa-e-demoradamente. A plateia permaneceu na imensa sala batendo palmas até que os longos créditos chegassem a termo.

Todos que conhecem a trajetória do protagonista do longa de estreia de Catarina tinham certeza que a sessão seria festiva e catártica.  E o foi em exata medida. Entre os espectadores estavam os atores João Antônio e Thalles Cabral, os cineastas Vladimir Carvalho, Marco Altberg e André Luiz Oliveira, o poeta Chico Alvim, a produtora Sara Rocha e vários professores da UnB. Sem esquecer dezenas de atores, bailarinos e músicos que estiveram nos elencos de espetáculos que Hugo encenou, em Brasília, da década de 1970 até sua morte.

O uruguaio Hugo Renato Giusto Rodas nasceu em 1939, na pequena cidade uruguaia de Juan Lacaze, onde iniciou-se no estudo de piano e no fazer teatral. Depois mudou-se para Montevideo e atuou no Teatro Circular. Botou o pé na estrada e veio dar com os costados em Brasília. Adotou a cidade com desmedida paixão. Aqui morreu, em abril do ano passado, aos 82 anos, cercado de amigos. E louco para continuar dirigindo espetáculos teatrais, dançando, tocando piano, bebendo vinho e festejando amigos e colaboradores em almoços e jantares ritualísticos.

Não houve câncer, com suas pesadas sessões de químio e radioterapia, que contivesse o azougue uruguaio-candango. Nem a pandemia, enfrentada com todas as doses necessárias da vacina, o deteve. Ao contrário, o motivou a realizar performance-protesto (quando as estáticas se aproximavam das 600 mil vítimas) na Estação Rodoviária, coração de Brasília.

A cineasta (e atriz) Catarina Accioly acompanhou os derradeiros quatro anos de Hugo Rodas filmando tudo que podia. Foi com ele a Juan Lacaze e a Montevideo. O encenador já enfrentava o câncer e vivia as dificuldades trazidas pela pandemia. Mas nada o deteve. Até o cemitério de sua cidadezinha ele visitou. E ficou feliz por encontrá-lo colorido com muitas flores (naturais e artificiais), a ponto de exclamar, em seu eterno e intencional portunhol: “amo esse ‘cementerio’, desde los tiempos de menino. Ele está tão florido que parece um ‘cementerio’ mexicano, não uruguaio”.

O filme glorifica o tempo presente, a obsessão do artista pelo trabalho teatral e sua alegria esfuziante. Mesmo quando solta palavrões e “briga” com seus atores, o faz para celebrar a arte, a amizade e a vida. Quando o celular de um ator ou atriz toca durante ensaio da  montagem de “O Rinoceronte”, ele fica possesso. Grita a plenos pulmões, xinga, vocifera impropérios. E pergunta: “você está com câncer? Está conversando com seu médico?”(como ele fizera minutos antes). Para berrar: “pois, então, ‘carajo’, concentre-se no ensaio, mergulhe no seu personagem”.

A voz de Hugo Rodas comanda o filme inteiro. Não há nenhuma imagem de arquivo Nem depoimentos sobre ele e sua trajetória. Nenhuma cabeça-falante, portanto. No máximo, saudações de amigos (Zé Celso Martinez Corrêa, André Abujamra, entre outros) que festejam, via redes sociais, mais um ano de sua fase octogenária. Sobre sua orientação sexual, homoafetiva, Hugo é sintético. Conta que, desde menino gostou de meninos. E colocou seu desejo em ação. E volta a seus assuntos preferidos: o teatro, a dança, a música tocada ao piano e o canto. Com seu vozeirão escande versos do tango “Volver” e faz paródia de “Gracias a la Vida”.

O incansável Hugo Rodas aparecerá rodando pela UnB, onde foi professor; pela orla do Lago Paranoá, acompanhado de um pai de santo; pelas superquadras e residências de amigos. Ou na sua própria casa. E, também, visitando recantos bucólicos e pequena cachoeira, pisando na terra vermelha do Cerrado. Ele revisitará, claro, o Teatro Galpão, que hoje leva seu nome, onde estreou sua acrobática montagem de “Os Saltimbancos”. Peça de Chico Buarque, que ele remontou na fase derradeira de sua vida. Enfim, estará sempre em movimento. Não se aquietará nem quando estiver se submetendo a sessão de massagem terapêutica.

O filme poderia, tranquilamente, estar na competição nacional, por tratar-se de documentário cheio de vitalidade e labor, com locações muito bem fotografadas, tanto no Uruguai, quanto em Brasília. Não há imagens banais. Mas ficou – como “Ecos do Silêncio”, de André Luiz Oliveira – restrito à Mostra Brasília, destinada à produção candanga.

Equipe do filme “Cartório das Almas”

O filme local escolhido para a competição nacional foi “Cartório das Almas”, ficção de Leo Bello. Ao contrário de “Rodas de Gigante”, transbordante celebração à vida de personagem que está com os dias contados, o longa-metragem de Bello se propõe a empreender “reflexão filosófica sobre a Morte”.

A equipe que subiu ao palco do Cine Brasília para apresentar “Cartório de Almas” era composta por 41 profissionais (Catarina Accioly levara, duas horas antes, 31 pessoas ao mesmo palco).

Leo Bello reafirmou sua alegria em ser o representante brasiliense na competição nacional. E agradeceu à sua imensa equipe de colaboradores. Sua diretora de arte, Maíra Carvalho, leu documento em defesa da regulamentação do vídeo on demand (VoD) e das plataformas de streaming.

Num dos trechos do documento, ela detalhou: “É importante destacar que a regulação dos canais de streaming já é uma realidade em diversos países. Na Europa, alguns já estão em sua segunda onda regulatória. As plataformas estrangeiras, assim como todas empresas do setor, também devem contribuir para o desenvolvimento do mercado audiovisual brasileiro – uma contrapartida proporcional pelo privilégio de explorar comercialmente nosso território”.

O longa candango foi, então, projetado na tela. Sua protagonista Laura (Gabriela Corrêa), uma “jovem” de 126 anos, busca emprego no  Cartório das Almas. Ela é atendida por Marconi (Wellington Abreu) e contratada. Sua nova função consiste em protocolar as motivações daqueles que renunciaram à eternidade.

No final da sessão, o Cine Brasília continuava cheio, mas os aplausos foram apenas protocolares. A “ficção científica de um futuro que ficou no passado” – essa foi a definição engendrada por Leo Bello durante o debate do filme – não envolveu o público.

Falar da morte não é mesmo fácil. “Cartório de Almas” seria, por seu projeto inicial, uma narrativa em preto-e-branco. As discussões em equipe levaram à opção pela cor. Mas cores frias. O verde entra no entorno de casinha isolada, cercada de plantação de soja, importante locação do filme. Mas Bello definiu-a como um “deserto verde”, essencial à sua “distopia atemporal”. A arquitetura de Niemeyer (Museu Nacional, Torre Digital etc.) colaboram com a “ambientação futurista”.

Antes de “Cartório das Almas”, o público assistiu a dois curtas-metragens filiados ao gênero horror (afinal, a mostra nacional pautara-se pelo gênero). Um com aposta no ‘gore’, de tantos sangue e vísceras expostas  (“Cáustico”, de Wesley Gondim) e outro mais sútil e literário (“O Nada”, de André Ladeia, inspirado em conto do russo Leonid Andreiev).

“Cáustico” foi um dois curtas candangos escolhidos para a competição nacional (o outro é “Vão das Almas”).  Sua trama se desdobra em casa isolada, onde vivem mãe, Dalva (Ana Luíza Rios) e sua filha, Cris (Bianca Terraza).

Dalva sofre de um mal desconhecido e tem grave ferida na perna. Realiza seu tratamento com massa saponácea de cor-carne. Mãe e filha criam rãs e necessitam de ingrediente essencial à fabricação do unguento raro.

Dois homens, interpretados por Sérgio Sartório e Wellington Abreu, participam dessa trama, que irá se revelando a cada sequência (o filme dura 22 minutos). Gondim segue os códigos do cinema de horror sangrento, e – longe da ética estabelecida – oferece ao público vísceras banhadas em dose industrial de sangue. O filme foi recebido com aplausos moderados.

“O Nada”, do carioca André Ladeia, sustenta-se na prosa expressionista de Leonid Andreiev (1871-1919), contemporâneo de Tolstoi, Dostoiévski e Tchecov.

Um senhor moribundo, interpretado pelo grande ator Pedro Paulo Rangel (que morreria cinco meses depois das filmagens) recebe visita inesperada. Trata-se de do Diabo encarnado em corpo de mulher (Larissa Maciel, a Maysa Matarazzo da série da TV Globo).

Ao moribundo é imposta a obrigação de decidir se quer morrer ou se prefere ir, por toda a eternidade, residir no inferno. Antes de tomar tão drástica decisão, o velho homem tenta dialogar com o intransigente Diabo.

Ao contrário de “Cáustico”, que expõe, em primeiro plano, corpo lacerado e entranhas expostas, “O Nada” fundamenta-se na palavra e na força sútil de seus protagonistas. A maquiagem da mulher-diabo compõe-se com cores fortes desenhadas no belo rosto de Larissa Maciel.

Os dois atores brilham. A dedicatória final a Pedro Paulo Rangel, presente em tantas telenovelas, peças teatrais e (alguns) filmes, emocionou o público. Os aplausos se fizeram ouvir.

Dois curtas-metragens candangos foram exibidos na Mostra Brasília, antes de “Rodas de Gigante”: “Estrela da Tarde”, de Francisco Rio, produção oriunda da cidade-satélite do Gama, com três transexuais (incluindo o diretor-roteirista) nos créditos, e “A Chuva do Caju”, de Alan Schvarberg. Dois filmes muito diferentes entre si.

O curta do jovem Rio (de 23 minutos, quase um média-metragem) se sustenta em texto onipresente e de natureza literária. Já “A Chuva do Caju” é um documentário observacional, quase silencioso, que acredita no poder narrativo das imagens.

Alan Schvarsberg, que é mestre em direção de fotografia pela Escola Superior de Cinema e Audiovisual da Catalunha, acompanhou a fauna diária de dois moradores do Quilombo Calunga, situado a 340 Km de Brasília, no Cerrado goiano.

No Vale do Vão das Almas, havia outrora vegetação e águas fartas. Mas Seu Alvino e Dona Neusa, que plantam e colhem o que a terra dá, notam que as chuvas estão cada vez mais rarefeitas. Sem a tão aguardada “chuva do caju”, torna-se cada vez mais difícil coletar o cajuzinho do Cerrado e o baru (côco-pereba), matéria-prima que lhes garante a subsistência.

No palco do Cine Brasília, a equipe de Alan Schvarsberg lembrou a destruição avassaladora do Cerrado, bioma tomado pelo agro-negócio. “A preocupação com a Amazônia é muito importante”, ponderaram, “mas o Cerrado não pode ser esquecido e destruído aos nossos olhos”.

“Chuva do Caju” é o quarto filme exibido pelo Festival de Brasília, nas últimas décadas, a ter o Quilombo dos Calunga como cenário. Os outros são “Negros de Cedro” (Manfredo Caldas, 1997), “Entre Vãos” (Luísa Caetano, 2012) e “Vão das Almas”, de Edileuza Penha de Souza e Santiago Dellape (2023).

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