“No Céu da Pátria nesse Instante”, longa sobre eleição de 2022 e polarização política, tem sessão catártica no Festival de Brasília

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília-DF

Esperava-se da plateia mais politizada dos festivais brasileiros – a do Festival de Brasília – reação vibrante frente ao longa documental  “No Céu da Pátria nesse Instante” (foto), da cineasta carioca Sandra Kogut. Mas o que se viu foi além das expectativas.

A plateia, com o Cine Brasília lotado (houve – registre-se – algumas defecções), participou, aplaudiu em projeção aberta e vaiou discursos de militantes bolsonaristas. E, o mais incrível, vibrou com a eleição de Lula, com aplausos calorosos, como se o fato estivesse ocorrendo naquele instante (e não 13 meses atrás).

Entre os espectadores estavam, além de centenas de estudantes e artistas, o presidente da Embratur, Marcelo Freixo (que aparece no filme), o fotógrafo oficial da Presidência da República, Roberto Stuckert, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, cineastas como Vladimir Carvalho e André Luiz Oliveira e muitos participantes do IX Congresso Brasileiro de Cinema e Audiovisual, que tem a capital federal como sede.

Três das nove “personagens” escolhidas por Sandra Kogut – a professora  Neli Belem, a química e funcionária da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) Estela Maria de Oliveira e a roteirista de cinema Antônia Pellegrini, hoje diretora de programação da TV Brasil-EBC – subiram ao palco com a cineasta e seus produtores João Roni e Henrique Landulfo.

Havia, também, na plateia, bolsonaristas silenciosos e um (anarquista?) dos mais falantes, que confrontava os aplausos com muitas provocações. Ao final, as palmas foram consagradoras. Só não foram mais eufóricas, porque o público queria ouvir (para dançar) os irreverentes versos do aliciante forró “Tá na Hora do Jair Embora”, de Juliano Maderada e Tiago Doidão. Trata-se de hit que tem Jair (Bolsonaro) no título, mas avisa: “Tá na hora do Jair embora/ já ir embora/ Vish/ Se o menino “tá comentando”/ Pode arrumar as malas”.

“No Céu da Pátria nesse Instante”, que será lançado ano que vem pela O2 Play, foi concebido por Sandra Kogut para acompanhar o crispado processo eleitoral de 2022, que antagonizou os candidatos Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva, e terminou com placar apertadíssimo pró-Lula, da Frente Brasil Popular. E que acabaria gerando, por parte dos derrotados, atos de violência e vandalismo. O maior deles foi a invasão das sedes dos Três Poderes – o Palácio do Planalto (Executivo), o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Os depredadores deixaram rastros de destruição jamais vistos em nossa história republicana.

“No Céu da Pátria nesse Instante” começa com a tela preta. Um voz feminina diz não ter “nenhum interesse em participar de filme de uma cineasta esquerdista”. A luz se faz e nos deparamos com sequência aterradora: atos de depredação protagonizados por bolsonaristas embrulhados em bandeiras do Brasil e dispostos a convencer as Forças Armadas a intervirem para consolidar um golpe de Estado.

Dá-se, então, recuo no tempo. O filme regressa aos meses próximos às eleições presidenciais de Outubro de 2022. Bolsonaristas e petistas ocupam as ruas em defesa de seus candidatos. Os eleitores de Lula, que esperavam vencer no primeiro turno, visivelmente decepcionados, se conformam com a ocorrência do segundo turno. Candidatos aos governos estaduais, como Freixo e Haddad, são derrotados no primeiro turno.

Para contar a historia desses instantes, sob o céu da pátria, Sandra mobilizou defensores ferrenhos de Bolsonaro (como o caminhoneiro Adenilson Ferreira, o Ferreirinha de Curitiba, o vendedor ambulante Oswaldo Pires, um pastor evangélico, que, do púlpito, desfia o ideário bolsonarista, sempre pronto a combater comunistas e assemelhados. O filme mobilizou, também, defensores de Lula.

A cada um dos “personagens”, Sandra Kogut fez um pedido: que gravasse, com a câmara de seu celular, uma espécie de diário audiovisual. Que registrasse encontros familiares, religiosos ou o ambiente de trabalho. Ferreirinha reúne amigos para, ao lado da esposa, maldizer os vermelhos e louvar Bolsonaro. Outro combatente das hostes do ex-capitão é Oswaldo, que vende material estampado com o rosto de Bolsonaro e as cores verde-amarelo, mas também a famosa toalha vermelha com imensa imagem de Lula. O voto convicto será em Bolsonaro, mas “negócios são negócios”, justifica-se.

Parte dos “diários filmados” foi aproveitada, mas a parte principal (e essencial) do documentário de 105 minutos, foi realizada por profissionais convocados por Sandra Kogut. Inclusive a posse de Lula e o “quebra-quebra” do Oito de Janeiro. “Não usamos nenhum material de arquivo”, garantiu a cineasta no movimentado debate do filme.

Ninguém espere, portanto, imagens épicas dos eventos que se processaram nos últimos meses de 2022 e no oitavo dia de 2023. “Como nosso propósito era mostrar o que acontece pelo olhar de nossos personagens” – explicou Sandra – “o lugar onde eles estavam (na posse de Lula, por exemplo) só permitia que os fatos fossem vistos de forma lateral”. Bem ao contrário das câmaras bem situadas dos grandes veículos de comunicação.

O filme teve locações em diversas regiões brasileiras – da cidade do Rio de Janeiro a Anajás, na Ilha do Marajó, da capital federal a São Paulo, de Curitiba a Belém. Como os bolsonaristas espalharam insistentes fake-news contra o desempenho das urnas eletrônicas, o filme dedica-se a mostrar, com muitos detalhes, todos os cuidados tomados pelo TSE e TREs (os Tribunais Regionais Eleitorais) para garantir transparência e lisura ao processo eleitoral.

Nada, porém, demoverá os bolsonaristas. Num dos melhores momentos do filme, Sandra Kogut, com calma e sólida argumentação, conversa com Ferreirinha sobre o resultado das eleições. Ele teima em dizer que houve fraude. Ela diz que evidências e rigoroso processo de verificação técnico-científica comprova que não houve. O caminhoneiro, quando não tem mais contra-argumentos, apela para a fé religiosa. E chega a conclusão desalentadora: ele, Ferreirinha, e a cineasta vivem em mundos diferentes. Não há diálogo possível.

Dois curtas-metragens – o gaúcho “Pastrana”, de Gabriel Motta e Melissa Brogni, e o paulista do interior (Assis-Bauru e Rio Claro)  “Cidade by Motoboy”, de Mariana Vita – tiveram boa recepção do público. Em especial, o adrenalinado “Pastrana”, registro da paixão de skatistas (modalidade Downhill) de Nova Hamburgo, por esse esporte radical. Um skatista de raros talento e ousadia, o Pastrana do título, conseguirá conquistar importantes troféus. Mas algo muito grave lhe acontecerá.

A argumentista, co-roteirista e co-diretora Melissa, ela mesma skatista e colega de Pastrana, colherá arquivos da galera, compostos com muitas e fortes imagens do rapaz em manobras radicais. Filmado com muita adrenalina, o curta gaúcho foi aplaudido, quando os créditos finais apareceram na tela, e ao término deles. Duplamente e com imenso entusiasmo.

A narrativa de “Cidade by Motoboy” se passa numa cidade interiorana e é protagonizada por motoqueiro de aplicativo, que exerce seu ofício ao longo de movimentada sexta-feira à noite. Suas andanças pelas ruas e condomínios lhe demonstrarão que há barreiras mais segregadoras que muros físicos. Mas haverá, na trama, amor transgressivo capaz de mitigar o peso das entregas e o cansaço.

O documentário “Utopia Tropical”, de João Amorim, protagonizado pelo linguista norte-americano Noam Chomsky e pelo diplomata brasileiro Celso Amorim, foi exibido, em caráter hors concours, em sessão vespertina no Cine Brasília. Produzido por Sara Rocha, neta de Glauber, o filme promove – somando atrevidas animações e imagens de arquivo – reflexões sobre os desafios da América Latina, região vista como “quintal dos EUA”.

Depois da sessão no Festival de Brasília, o filme de João Amorim (irmão de Vicente e Pedro, também cineastas), já exibido no Festival do Rio e na Mostra Internacional de São Paulo, será apresentado no Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana, em Cuba.

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