Noite inaugural do Fest Brasília homenageia Antonio Pitanga, serve de vitrine a protestos e exibe filme sobre “holocausto brasileiro”

Foto: O ator Antonio Pitanga recebe homenagem do festival © Bené França

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília-DF

A noite inaugural da quinquagésima-sexta edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro começou com vibrantes sons do coletivo afro-brasileiro Batalá. Mais de 30 mulheres, envoltas em estampas africanas, dançavam enquanto tocavam seus imensos tambores. Um início muito forte e aplaudido.

Em seguida, duas homenagens póstumas (ao cineasta André Luís da Cunha e ao projecionista André Techmeier) emocionaram a plateia que lotava o Cine Brasília. Vinhetas em cores vibrantes – vermelho e amarelo – trouxeram calor à solenidade. E, o que é muito bom, tudo corria célere.

A diretora-artística do festival, Anna Karina Carvalho, subiu ao palco e, com objetividade, discorreu sobre a importância do evento candango, o mais antigo e resistente do país (criado em 1965, por Paulo Emílio Salles Gomes e equipe) e agradeceu aos parceiros que a ajudaram a selecionar os filmes das quatro principais competições (longas e curtas nacionais, longas e curtas brasilienses). Definiu seus colaboradores como integrantes de verdadeiras “comissões ninja”, pois eles deram o melhor de si em tempo muito reduzido.

Chegou, então, a hora e vez de Fernando Borges, diretor-executivo do Festival de Brasília, se manifestar. Sua instituição (Associação Amigos do Futuro) venceu edital convocado pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa cabendo a ele organizar o evento.

Borges começou sua intervenção fornecendo dado precioso: “uma edição do Festival de Brasília é organizada em 120 dias ou mais. Nós, porém, só dispusemos de 44 dias, circunstância que exigiu profissionais com extrema dedicação e entrega”. Verdadeiros “ninjas” como os qualificara pouco antes, a diretora-artística Anna Karina Carvalho.

Ia tudo muito bem, até Borges começar a ler discurso que trouxera impresso em papel. Aí a coisa desandou. O texto nada tinha a ver com cinema e somava platitudes de ‘coachs’ empresariais a dicas de empreendedorismo motivacional. A plateia não perdoou e começou a vaiar o orador.

Ele reafirmou sua função: produtor cultural. E prosseguiu com suas frases feitas, prometendo, diversas vezes, concluir a leitura, mas não o fazia. Além de “Fora Ibaneis” (nome do governador reeleito), parte do público seguia firme em seus gritos de protesto, e alguém até qualificou Fernando Borges de “puxa-saco”.

Finalmente, o produtor-executivo da quinquagésima-sexta edição do festival, sob protestos incessantes, concluiu sua deslocada fala. Decerto o jovem Borges não tem familiaridade com a politizada plateia do festival candango, famosa por suas manifestações e inquietações. Basta lembrar a histórica e ensurdecedora vaia dirigida à atriz Cláudia Raia, antes da exibição do “Matou a Família e Foi ao Cinema” de Neville D’Almeida, nos anos Collor. Lá, Raia confessaria, mais tarde, que tremera como vara verde sobre seus elegantes “tacones lejanos”.

O ator e ex-parlamentar Cláudio Abranches, secretário de Cultura do DF, teve muita presença de espírito e foi objetivo em sua passagem pelo palco. Em companhia da secretária do Audiovisual, Joelma Gonzaga, ele evocou sua única aparição na privilegiada tela do Cine Brasília. Tudo aconteceu em 2009, ano de exibição do filme “Sagrado Segredo”, de André Luiz Oliveira. Coube a Abranches interpretar, o que fazia ao vivo e anualmente, o Cristo da Via-Crucis representada na cidade-satélite de Planaltina, durante a Semana Santa.

O secretário prometeu reativar edital de fomento ao cinema brasiliense e fez coro a algumas promessas da secretária do Audiovisual. Esta, em nome da ministra Margareth Menezes, enalteceu a nona edição do Congresso Brasileiro de Cinema e Audiovisual, que acontece em Brasília, em paralelo ao Festival. Garantiu que tem trabalhado sem descanso em “defesa da cota de tela para filmes brasileiros nos cinemas e na TV por assinatura, sem esquecer o VoD (Vídeo sob Demanda)”.

As outras homenagens da noite (estas presenciais) geraram muitos aplausos, apesar de duas delas se alargarem no tempo (a ponto da cerimônia cravar 115 minutos, tempo de duração de encorpado longa-metragem).

A primeira das homenagens atribuiu o Prêmio ABCV (Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo) à documentarista e professora Maria Coeli Vasconcelos. A octogenária Coeli foi objetiva e bem-humorada em sua intervenção. Lembrou seu pioneirismo (chegou a Brasília no poeirento ano de 1960), seus estudos na UnB, suas paixões pelo magistério e pelo cinema. E contou que fôra professora do futuro integrante das bandas Aborto Elétrico e Legião Urbana, Renato Russo. E que ele “gostava muito de minhas aulas”.

A também documentarista e professora (da UnB) Dácia Ibiapina recebeu a Medalha Paulo Emílio. Avisou que “gostava de microfone” e excedeu-se no tempo. Mas pelo menos tinha muito a dizer e a reivindicar. Depois de enaltecer os predicados do professor (da UnB e da USP), pesquisador e ensaísta Paulo Emílio Salles Gomes, patrono de sua medalha, Dácia cobrou apoio ao Cine Memória, projeto que Vladimir Carvalho carrega obstinadamente, com imenso esforço pessoal. O cineasta, que fará 90 anos em janeiro de 2025, tem buscado quem possa assumir seu Centro de Memória, mas tem recebido muitos “nãos”. Ou promessas vazias.

Por fim, Dácia Ibiapina falou do documentário que estava realizando com o intelectual quilombola Antônio Bispo dos Santos, morto no domingo, 3 de dezembro. Ela mesma neutralizou a palavra “morto” lembrando que “Bispo fez a passagem à ancestralidade”. E que seguirá firme na realização do longa-metragem por compreender seu personagem como “um pensador que está para os saberes afro-brasileiros na mesma medida que Ailton Krenak para os saberes indígenas”. E finalizou reafirmando a imensa importância da obra deixada por Bispo e recomendando o livro “A Terra Dá, a Terra Quer”.

Era, então, chegada a hora de se realizar a grande homenagem da noite: a Antônio Luiz Sampaio, o Pitanga, ator-ícone de Glauber Rocha e personagem-protagonista  do longa documental “Pitanga”, dirigido por sua filha Camila e por Beto Brant. E condensado na tela do Cine Brasília  em potente, vibrante e sintético clip.

Pitanga, sabem até as pedras, é caudaloso como o Rio São Francisco, o Amazonas ou o Nilo. Não pode ver um microfone. Deixou, sentada junto à plateia, a companheira Benedita da Silva, ex-governadora do Rio, ex-senadora e hoje deputada federal. Saudou-a por trajetória existencial que os une há mais de 30 anos. Um matrimônio dos mais singulares e amorosos. Aos 84 anos, Pitanga segue esbelto e faceiro como na mocidade soteropolitana. E vaidoso. Vestiu moderno terno branco, muito bem cortado e assentado em seu corpo magro. Portava, claro, seu inseparável chapéu Panamá.

O ator, que foi alfaiate, sapateiro, tipógrafo, enfim, pau para toda obra, relembrou ao microfone o grande Paulo Emílio, o amigo Vladimir Carvalho (este, várias vezes) e evocou Triguerinho Neto, que o descobriu em “Bahia de Todos os Santos”.  Com esse seu primeiro personagem, de nome Pitanga, ele obteve tamanha repercussão, que viu seu nome civil eclipsar. Antonio Luiz Sampaio virou Antônio Pitanga. Assinatura de sua filha-atriz Camila Pitanga e de seu filho-ator (homenagem viscontiana) Rocco Pitanga. Aliás, coube a Rocco, mestre de cerimônia da noite inaugural ao lado da atriz Gabriela Corrêa, entregar o Troféu Candango ao pai.

Como a noite era do grande ator nascido na Bahia de Jorge Amado e Dorival Caymmi, uma surpresa foi anunciada: a atriz, poeta e agitadora cultural Elisa Lucinda iria saudá-lo. A capixaba, dona de língua ferina, daquelas que costumam receber o “caboclo do sincericídio”, subiu ao palco com lindo vestido de tons dourados e suas botinhas idem, para saudar o amigo do peito e de telenovelas (começaram a parceria em “Kananga do Japão”).

Elisa resumiu momentos importantes da carreira do ator-amigo, contou histórias de sua convivência com o casal Pitanga-Benedita  e divertiu a plateia com sua verve costumeira. Só faltou declamar um poema de sua lavra para o “amigo, irmão camarada” (para citarmos Roberto Carlos, conterrâneo de Elisa).

A vez de André Ristum e equipe apresentarem o filme “Ninguém Sai Vivo Daqui” só chegaria perto das onze horas da noite. Exibido em caráter hors concours, essa ficção baseada livremente no livro “Colônia Barbacena – O Holocausto Brasileiro”, de Daniela Arbex, tem como cenário  o mais famoso e terrível hospital psiquiátrico de Minas Gerais e do Brasil (o Colônia de Barbacena, fundado em 1903).

O cineasta paulistano subiu ao palco acompanhado das atrizes Fernanda Marques e Rejane Faria, dos produtores Rodrigo Castellar e Fabiano Gullane. E, também, do sound designer Dirce Lustosa e do autor da trilha sonora, Patrick de Jong.

Depois das devidas apresentações, o trilheiro cedeu o microfone a dois representantes do audiovisual candango — os jovens Beta Rangel e Venusto — que leram documento recheado de reivindicações. Em especial, do estabelecimento de políticas públicas estruturantes para o cinema e séries produzidas no Distrito Federal. Segundo o documento lido pela dupla, o setor vem perdendo espaço desde 2019, já que rarearam os editais de fomento.

O público assistiu, enfim, ao filme “Ninguém Sai Vivo Daqui”, o convidado da noite. Ao longo de 93 minutos acompanhamos a história de três mulheres — Elisa (Fernanda Marques), Vilma (Rejane Faria) e Waleska (Andrea Horta). A primeira é a protagonista absoluta do filme. Aos 23 anos, ela, filha de fazendeiro de Jardinópolis, interior de São Paulo, engravida do namorado. O pai, que já tentara casá-la  com homem bem mais velho, acabará por interná-la no hospital Colônia, em Barbacena.

A trama se situa no  início dos anos 1970. Vilma, mulher negra, também fôra internada, algumas décadas antes, na mesma instituição. Será o ombro amigo de Elisa, que mesmo sã, se sujeitará a tratamento psiquiátrico como os então praticados no Hospital  Colônia. Aliás, tema de documentário de Helvécio Ratton (“Em Nome da Razão”, 1979, 25 minutos, Margarida de Prata da CNBB)

A história de Walesca, também sã, tem a ver com os rigorosos princípios morais da tradicional família brasileira. Ela é “amante” de um homem casado. Um prefeito municipal. Ele costuma visitá-la no manicômio, sempre com a promessa de que vai abandonar a esposa e unir seu destino ao dela.

Ao contrário do realismo brutal contido no documentário de Ratton (um dos esteios da Luta Anti-Manicomial brasileira), “Ninguém Sai Vivo Daqui” tem narrativa folhetinesca, embora temperada com ingredientes (e dissonâncias) do terror. Além de final inesperado.

Filmado em preto-e-branco, com elenco que soma atores experientes como Augusto Madeira, Naruna Costa, Aury Porto, Arlindo Lopes, Bukassa Kabengele, Ana Kutner e Rafaela Mandelli, o filme difere, em alguns aspectos,  da série de mesmo nome que lhe deu origem e foi exibida pelo Canal Brasil.

Ristum escreveu o roteiro do filme (e da versão seriada) com Marco Dutra e Rita Curvo. Ele e sua equipe planejam uma segunda temporada no Canal Brasil, para contar novas histórias de internos doColônia Barbacena, que deixou de ser um depósito de pacientes nos anos 1980. Calcula-se que 60 mil pessoas que lá foram internadas ao longo de oito décadas morreram vítimas de maus-tratos e outras violências.

Depois da saga das vítimas da psiquiatria do eletrochoque, Ristum vai dedicar-se ao longa-metragem “Tecnicamente Doce”. Trata-se roteiro não-filmado de Michelângelo Antonioni. O mestre peninsular concebeu  a história de um jornalista em crise, que deixa Roma em direção à Sardenha. Lá conhece dois jovens e um deles o convida a viajar até a Amazônia brasileira.

O projeto conta com produção de Enrica Fico, viúva de Antonioni, e dos irmãos paulistas Fabiano e Caio Gullane. Se os aportes financeiros se completarem ao longo de 2024, as filmagens se darão em Roma, Sardenha e Amazônia em 2025.

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