“A Paixão Segundo G.H.” transforma monólogo interior de ação rarefeita em filme de grande força poética
Por Maria do Rosário Caetano
O desafio que o cineasta Luiz Fernando Carvalho se impôs parecia instransponível. Afinal, como transformar as angústias e reflexões de uma mulher, sozinha num enorme apartamento e frente ao “cadáver” de uma barata, em um filme que dura mais de duas horas?
Pois o diretor carioca, de 63 anos, criador inquieto e propenso a enfrentar imensos desafios, conseguiu transformar “A Paixão Segundo G.H.”, romance que Clarice Lispector publicou em 1964, em um filme original, envolvente e de imensa força poética.
Para chegar a tão bom resultado, o cineasta contou com a cumplicidade de sua protagonista, a atriz Maria Fernanda Cândido. Dona de beleza singular, a intérprete de G.H. mostra que Carvalho acertou em cheio ao convidá-la, 22 anos atrás, para o papel. Naquela época, Maria era apenas uma mulher de beleza rara, que se firmava como atriz na telenovela “Esperança”.
Passaram-se mais de duas décadas, até “A Paixão Segundo G.H.” transformar-se no filme que chega a 47 cinemas de diversas cidades brasileiras, nessa quinta-feira, 11 de abril, com distribuição da Paris Entretenimento. Uma grande distribuidora — registre-se — que resolveu embarcar na arriscada aposta de Luiz Fernando Carvalho, diretor do belo (e também arriscado) “Lavoura Arcaica”. Como “G.H.”, adaptação de narrativa poética e convulsiva (da lavra de Raduan Nassar), configurada como improvável, para não dizer incompatível, com o cinema.
Maria Fernanda se entrega, com sua beleza madura e misteriosa, à mulher que depois de esmagar barata (no quarto de sua ausente doméstica, materializada na imagem da guineense Samira Nancassa) se põe a pensar na vida. Ou, como bem definiu o filósofo e escritor Benedito Nunes, em denso e obrigatório prefácio ao livro de Clarice, a desenvolver “cadeia reflexiva de temas – Deus, arte, linguagem, beleza”, entre muitos outros.
O rigoroso analista da obra clariceana lembra que “A Paixão Segundo G.H.” constitui-se como “romance singular, não tanto em função de sua história quanto pela introspeção exacerbada, que condiciona o ato de contá-la, transformado no embate da narradora com a linguagem, levada a domínios que ultrapassam os limites da expressão verbal”.
Pois Luiz Fernando Carvalho, com mínimas intervenções (todas imagéticas) na obra de Clarice Lispector, conseguiu realizar um verdadeiro milagre cinematográfico. Transformou as elocubrações de uma escultora renomada, branca, elegante, rica, posta frente a uma barata (composta de matéria escura e gosma cremosa e clara), em um filme que prende o interesse do espectador a ponto de não fazê-lo sentir o peso de sua narrativa de 124 minutos.
Benedito Nunes nos lembra (no já referido estudo sobre o romance de Clarice) que a personagem é “designada pelas iniciais de nome ignorado”. E que nos apresentará “o transtorno de sua individualidade alienada ao contemplar o cadáver da barata que, num assombro de cólera, esmagou na porta de um guarda-roupa”.
Como o cinema se constrói também (e essencialmente) com imagens, Carvalho pôde contar com o trabalho de dois competentes fotógrafos (Paulo Marconi e Miqueias Lino), direção de arte de beleza alusiva (de Mariana Villas-Boas) e figurinos dos mais expressivos (de Thanara Schonardie). Sob sua regência — e com Maria Fernanda Cândido, já quase cinquentenária, senhora absoluta de seus movimentos e voz — o diretor pôde realizar o grande filme que amadureceu por mais de duas décadas. E sublinhar, com leve e insinuante concretude, o que em Clarice parece bem mais abstrato.
A sinopse do longa-metragem, que pode ser lida no material de divulgação, facilita a viagem do espectador. Traz, até, sua precisão geográfica e temporal (Rio de Janeiro, 1964). E torna claro seu (exíguo) enredo: “Após o fim de uma paixão, G.H., escultora da elite de Copacabana, decide arrumar seu apartamento, começando pelo quarto de serviço. No dia anterior, a empregada pedira demissão. No quarto, G.H. se depara com enorme barata. Essa circunstância lhe revela seu próprio horror diante do mundo, reflexo de uma sociedade repleta de preconceitos contra os seres que elege como subalternos. Diante do inseto, G.H. vive sua via-crucis existencial. A experiência narra a perda de sua identidade e a faz questionar todas as convenções sociais que aprisionam, até hoje, o feminino”.
Nesta sinopse, sentimos o desejo do realizador do filme de dar ênfase a tema essencial de nossos dias, tão sintonizados com a questão do feminino (e do feminismo). E, ao longo da narrativa, teremos indícios de que tempos recentes de nossa tragédia política querem se fazer notar. É comum, pelo menos entre os leitores leigos, a compreensão de que Clarice Lispector — ucraniana que desembarcou, aos dois meses, com a família em seu primeiro porto brasileiro, o do Recife — só deu atenção a temas sociais no romance “A Hora da Estrela” (1977).
No filme de Carvalho, há duas fortes marcas do tempo histórico, social e político brasileiro. Primeiro, quando G.H. folheia as páginas de uma revista (Manchete, O Cruzeiro, Fatos & Fotos?), que traz imagens (inclusive de tanques de guerra) e manchetes sobre o golpe militar de 1964. Livro e golpe nasceram nessa data, 60 anos atrás, portanto.
No segundo momento, vemos desenhada (com cores discretas) a bandeira do Brasil. Onde? Na porta do quarto da empregada demitida (Maria Fernanda Cândido preferiu evocar, em entrevista a Mário Sergio Conti, na GloboNews, a ambígua expressão “despediu-se” — deu um adeus temporário? Ou pediu as contas?). Quis o diretor de “Os Maias”, “Hoje é Dia de Maria” e “Independências”, mostrar que, ao adentrarmos, com G.H., o quarto vazio da doméstica Janair, nos sentíssemos arremessados nas entranhas do Brasil profundo?
Há quem, entre os primeiros espectadores de “A Paixão Segundo G.H.”(nome de explícita conotação religiosa), se incomode com a eloquente ausência de Janair na narrativa de Clarice Lispector (1920-1977), ela mesma uma mulher eslava, de pele alva. Mesmo caso da escultora G.H. encarnada em Maria Fernanda Cândido, dona de traços harmoniosos, olhos grandes, pescoço longilíneo, cabelos fartos e beleza helênica.
Tal ausência (da doméstica de pele preta) está inscrita no romance. Em ensaio sobre “O talking back da ‘negra africana’: o ser desencarnado e silenciado da empregada doméstica em A paixão segundo G.H.”, o doutorando (na Universidade de Nova York) Francisco Quinteiro Pires lembra que, no romance de Clarice, Janair “se torna uma presença marcante justamente por sua ausência física”. E mais: “G.H., a narradora do livro e ex-patroa de Janair, expressa um silêncio eloquente a respeito dessa personagem afro-brasileira”.
“G.H.” — lembrará Quinteiro — “define Janair como ‘uma negra africana’ e frisa a sua incapacidade de criar laços de identificação”. Cita, a título exemplificador, trecho do livro clariceano: “Arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível”. Ao que o estudioso agrega: “a empregada doméstica nesse livro de Lispector parece proveniente de outra realidade, avultando-se metaforicamente como uma figura a um só tempo estrangeira, desterrada e desencarnada”.
Como quis ser fiel ao livro já sexagenário, Luiz Fernando Carvalho fugiu do anacronismo. Não criou diálogos para (a silenciada) Janair, mas deu a ela corporalidade, carnalidade. E o fez com a forte (embora efêmera) presença da bela Samira Nancassa, Miss África 2018. É pouco? Poderia ter feito mais? Essas indagações permanecerão na memória do espectador, depois de deparar-se com obra tão singular e complexa.
Para finalizar, recorremos a mais uma citação do eloquente ensaio estético-filosófico do paraense Benedito Nunes (1929-2011): a obra de Clarice Lispector “representou um desvio estético relativamente aos padrões dominantes da prosa modernista de 1922 e da ficção de recorte neonaturalista dos anos trinta, desvio que vinculou a autora, por afinidade, a Marcel Proust, Virgínia Wolf e James Joyce, os ficcionistas da ‘corrente da consciência’ ou da duração interior”.
A Paixão Segundo G.H.
Brasil, 2024, 124 minutos
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Roteiro: Luiz Fernando Carvalho e Melina Dalboni
Elenco: Maria Fernanda Cândido e Samira Nancassa
Produtores: Paris Entretenimento, LFC Produções, República Pureza, Academia de Filmes e Nitrato
Fotografia: Paulo Mancini e Miqueias Lino
Figurino: Thanara Schönardie
Cenografia: Mariana Villas-Bôas
Montagem: Marcio Hashimoto e Nina Galanternick
Caracterização: Eduardo Bellini, Luigi Custódio e Neandro Ferreira (visagismo)
Distribuição: Paris Filmes