“A Guerra da Lagosta”, parte da trilogia “Ó meu Brasil”, de Chaim Litewski, estreia no canal CineBrasilTV
Por Maria do Rosário Caetano
Em 2009, um documentário como nunca víramos na história de nosso cinema, e ainda assinado por nome totalmente desconhecido, triunfou no Festival É Tudo Verdade. O filme se chamava “Cidadão Boilesen” e seu diretor, Chaim Litewski. Quem?
A resposta se resumia a poucas palavras: “funcionário da ONU em Nova York”. Era carioca, chegava aos 55 anos, fizera o filme em silêncio, sem reportagens ou notas na imprensa. O impacto do documentário foi enorme. Para começar, ele rompia com um dos tabus levantados pelo pesquisador, cineasta e professor da USP, Jean-Claude Bernardet.
São três os “temas-tabus“ definidos pelas reflexões de Bernardet: o documentário brasileiro evita enfrentar-afrontar três instâncias de poder – o econômico-financeiro, as Forças Armadas e a mídia.
Pois num só filme, e logo em seu longa-metragem de estreia, Chaim Litewski enfrentou o poder econômico em conluio com o poder militar. E o fez mostrando que poderosos empresários brasileiros colaboraram com os porões onde a ditadura militar torturava presos políticos.
O cineasta escolheu, para protagonizar seu primeiro longa documental, o empresário dinamarquês Henning Albert Boilesen (1915-1971), radicado no Brasil e presidente do Grupo Ultra (Ultragaz). Ele foi o principal mobilizador do poder financeiro paulista em apoio à Operação Bandeirantes (Oban), executada pelo Doi-Codi (Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna).
Por que lembrar filme premiado e lançado 15 anos atrás?
Porque acaba de estrear no canal CineBrasilTV, dirigido pela cineasta Tereza Trautman, o longa “A Guerra da Lagosta”, quarto longa-metragem de Chaim Litewsky (ver biografia detalhada abaixo). Depois de “Cidadão Boilesen”, ele dirigiu, em parceria com Cleisson Vidal, “Morcego Negro”, sobre a tumultuada trajetória do empresário P.C. Farias, tesoureiro de Collor, e as duas primeiras partes do que intitulou “Trilogia Ó meu Brasil”.
Em conversas com o mineiro Cleisson Vidal, o documentarista carioca, que regressava ao Brasil aposentado pela ONU, contou que tinha guardado memórias de seus tempos de infância e pré-adolescência. Tinha certeza: elas mereciam virar filme. Todos situados num tempo histórico que ia de 1960 a 1965.
O primeiro foi a campanha “Ouro para o Bem do Brasil”, promovida por Assis Chateaubriand e seus Diários Associados, para incentivar os brasileiros a doar dinheiro, ouro e joias ao recém-instaurado governo militar. O resultado foi o longa documental “Golpe de Ouro” (2021). O segundo seria “A Guerra da Lagosta”, sobre a crise diplomático-militar que antagonizou Brasil e França, em 1963, durante o Governo Jango (em Brasília) e De Gaulle (em Paris). Este é o filme que encontra-se em exibição no canal CineBrasilTV.
O fecho da trilogia, em fase de finalização, é “Brasil para Principiantes”, sobre Peter Kellemen, golpista internacional, nascido na Hungria e que chegou ao Brasil em 1949.
Médico, PK buscou visto para clinicar em nosso território. Não conseguiu. Mas um cônsul brasileiro ajudou a ajeitar seus documentos, alterando sua profissão para engenheiro agrônomo. O húngaro foi aceito, radicou-se por aqui e escreveu o livro “Brasil para Principiantes: Venturas e Desventuras de um Brasileiro Naturalizado” (1963). Aprontou as suas no mercado financeiro, envolvendo-se com “poupança e farsa dos carnês”.
Nesse exato momento, porém, o documentário que o espectador poderá assistir no CineBrasilTV traz tema bem mais popular — “A Guerra da Lagosta”, episódio que mobilizou o imaginário do menino Chaim, então com oito ou nove anos.
Tudo começou no início da década de 1960. Naquela época, grandes e sofisticados barcos franceses, sob a proteção de tratado que permitia aos súditos de De Gaulle realizar pesquisas científicas em nossa plataforma submarina, navegavam à solta por aqui. Só que estavam interessados, isso sim, no “Ouro Rosa”, ou seja, em nossas lagostas avermelhadas, carnudas e requisitadíssimas pelos restaurantes de Paris. Os “piratas da pesca” começaram a praticar o “arrasto”, levando toneladas e mais toneladas de nossas lagostas para o país europeu.
O Governo João Goulart e a Marinha perceberam que não havia pesquisa nenhuma, mas, sim, roubo de nossas riquezas oceânicas. O assunto caiu na boca do povo, Juca Chaves compôs uma marchinha (“O Caso da Lagosta”, 1963), as charges nos jornais se multiplicavam e o General De Gaulle tinha sua derrière desenhada e pinçada pelas presas de robusto crustáceo. Noutra, o general grandalhão (1 metro e 96 centímetros) chegava por trás de marujo brasileiro, que saboreava seu prato (uma lagosta, claro!), armado com revólver e ameaçava: “A lagosta ou a vida!”
Em entrevista à TV Tutameia, durante a pandemia, Litewski assegurou ao casal Rodolfo e Eleonora Lucena ser “muito difícil” localizar (em bom estado) e acessar materiais de arquivo no Brasil. Em especial, durante o Governo Bolsonaro. Naquele momento, a situação tornara-se duplamente complexa. Primeiro, pela falta de investimentos em bancos de imagens e arquivos públicos. Segundo pela epidemia do coronavírus. Mesmo assim, ele, com Cleisson Vidal e equipe na retaguarda, conseguiu realizar “Morcego Negro”, “Golpe de Ouro” e “A Guerra da Lagosta”.
O filme programado pela CineTVBrasil (ver horários abaixo) mostra que Chaim Litewski continua um cineasta diferenciado, capaz de acessar as mais importantes e valiosas fontes nacionais e internacionais. Para “A Guerra da Lagosta”, ele conseguiu depoimentos de militares, diplomatas e empresários da pesca franceses. E também de militares (como o almirante ex-ministro da Marinha, Alfredo Karan, quase centenário, mas lúcido e fagueiro) e do filho do presidente João Goulart, João Vicente. Além de estudiosos do assunto e de humildes pescadores, aqueles que se viravam em rústicas jangadas, e de repente se viram concorrendo com sofisticados navios pesqueiros franceses.
A França, lembremos, integra o restrito Conselho de Segurança da ONU. Era (e segue sendo) uma potência nuclear. Para defender seus interesses, recorreu, naquele ano de 1963, à “diplomacia do canhão”. Sim, o governo De Gaulle mandou para nossas águas territoriais, navio de guerra da mais refinada engenharia. Os franceses argumentavam tratar-se de força persuasiva. Só queriam “proteger” seus cidadãos embarcados e seus grandes pesqueiros.
A Marinha do Brasil, em pleno Carnaval, arrancou seus marujos dos festejos (um teve que adiar o casamento) para enfrentar os franceses. Guerra não houve, mas se houvesse, nossa marujada teria virado pó. Os EUA, que haviam prometido equipar os países latino-americanos, depois do triunfo dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, com navios, aviões e canhões modernos, esclareceram que o acordo só valia no alcance restrito à América Latina. Não podia ajudar os brasileiros a enfrentar um poderoso aliado europeu, a França.
O filme de Chaim Litewsty mergulha em documentos confidenciais, estabelece nexos, mostras as entranhas da Guerra Fria, a política colonialista da França (e dos EUA, claro!) e recorre ao humor. Em especial, na guerra semântica travada entre franceses e brasileiros. Os primeiros, espertos, diziam que lagosta era peixe que nadava, portanto podia ser pescada em qualquer lugar. Baseados em argumentos científicos, os brasileiros retrucavam: lagosta é crustáceo e não nada, mas sim dá pulos. Alguém teve a presença de espírito de ironizar que canguru, que dá seus pulos — como as lagostas — também não é peixe!
O recurso ao humor foi um dos fortes procedimentos adotados em “Golpe de Ouro”, o filme da mobilização de ricos e pobres para doar alianças e outros tipos de joias aos militares, vitoriosos, de forma que pudessem recuperar as finanças nacionais.
Depois do entrevero da lagosta, que nadava ou pulava, e da estrondosa centimetragem ocupada pelo assunto na mídia impressa brasileira (a Última Hora de Samuel Wainer mergulhou de cabeça na momentosa “Guerra”), tudo chegou a bom termo. Sem que nenhum tiro (de revólver ou canhão) fosse disparado.
O filme até ironiza: a França teria pacificado suas relações com o Brasil enviando para cá seu maior símbolo cinematográfico-sensual, a atriz Brigitte Bardot. Que também, como a Guerra da Lagosta, ganharia sua marchinha. Ela desembarcou no Brasil, ainda nos tempos de Jango, em janeiro de 1964. Portanto, dois meses antes do triunfo do Golpe Militar.
O documentário de Litewski, além de documentação farta (até demais!!!), recorre, claro, a entrevistas substantivas, enriquecidas com recursos do cinema de animação, encenação teatral-paródica e trilha sonora vibrante.
Como bom cultor da contextualização política, Chaim Litewski estabelecerá correlações derivadas dos tempos da guerra crustácea: a França mandará para o Brasil, na condição de adido militar, o “carrasco de Argel” Paul Aussaresses. Isto, no ano de 1973. Ele ensinaria “aos militares brasileiros as técnicas de tortura usadas na Guerra da Argélia”. E, assim, “a França continuaria colaborando com a ditadura brasileira de olho (não mais na lagosta, mas) na sobremesa representada pelo enorme mercado brasileiro”. Mas isso “é outra história”.
Ah, Moreira da Silva, o Kid Morengueira, também cantou a guerra (anunciada) entre a França e o Brasil. O fez com “A Lagosta É Nossa”. Na década de 1970, o sambista João Nogueira e, também, Eliana Pittman transformariam “Das 200 para Lá” em imenso sucesso nacional. O Brasil festejava o reconhecimento de suas 200 milhas territoriais.
Nos versos do samba nogueiriano se faziam notar reminiscências da Guerra da Lagosta: “Esse mar é meu/ Leva seu barco pra lá desse mar/ Esse mar é meu/ Leva seu barco pra lá// Vá jogar a sua rede das 200 para lá/ Pescador dos olhos verdes/ Vá pescar em outro lugar// Obrigado, seu Doutor, pelo acontecimento/ Vai ter peixe, camarão/ Lagosta que só Deus dá/ Pego bem a sua ideia/ Peixe é bom pro pensamento/ E a partir desse acontecimento/ Meu povo vai pensar”.
A música das 200 Milhas faz parte da trilha de “A Guerra da Lagosta”, este filme que resgata história inesquecível para o menino Chaim. Aguardemos o fecho de sua trilogia com indagação necessária: por que o diretor de “Cidadão Boilesen” ainda não fez outro documentário tão poderoso, demolidor e conciso quanto o de sua estreia?
“Morcego Negro” é um grande filme. “Golpe de Ouro” e “A Guerra da Lagosta” são também documentários de muitas qualidades. E muito humor. Mas Litewski parece apaixonado demais pelos arquivos e pelas ramificações das histórias que o fascinam desde a infância.
Terminamos de ver um novo longa-metragem dele – seja “Morcego Negro”, “Golpe de Ouro” ou “Lagosta”, que dura sintéticos 72 minutos – com informação em excesso, imagens em profusão, estímulos demasiados…
Estaria o cineasta, que esse ano comemora seus 70 anos, angustiado com o passar do tempo e buscando freneticamente antídotos para a “desmemória” brasileira?
Não seria hora de Chaim Litewski, como Veríssimo, um cultor de Nossa Senhora do Contexto, voltar à exigente régua que pautou seu imprescindível retrato da ditadura brasileira, singularizado em personagem dos mais impressionantes? Afinal, sabe-se que o dinamarquês-paulistano Henning Albert Boilesen gostava de assistir a sessões de tortura, nas quais eram usadas equipamentos de ponta. Que o fascinavam.
A Guerra da Lagosta
Brasil, 2024, documentário, 72 minutos
Direção: Chaim Litewski
Produção: Cleisson Vidal (Terra Firme)
Fotografia: Cleisson Vidal e Vladimir Lozinski
Pesquisa: Chaim Litewski, Rachmiel Litewski e grande equipe
Participação: Alfredo Karam, João Vicente Goulart, Américo Aníbal de Souza, André Berlivet, Antônio Carlos Lessa, Antônio Louro, Francisco de Souza Gama, François Pencalet, Guilherme Poggio, Guillen Rodrigues da Silva, Guy Dorelli, entre outros. Entrevistas realizadas na França e no Brasil (incluindo Fortaleza)
Onde: canal CineBrasilTV
Horários: quarta-feira, 15 de maio (15h), sexta, dia 17 (23h), domingo, dia 19 (14h) e terça-feira, 21 (16h30)
O realizador
O diretor, roteirista, consultor e produtor executivo Chaim Litewski nasceu no Rio de Janeiro, em 1954. Por mais que parecesse novidade naquela edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, 15 anos atrás, ele era já um experiente veterano. Afinal, dedicava-se ao cinema desde a adolescência. E, por anos a fio, estudou Cinema, somando títulos de bacharel e mestre em Audiovisual, obtidos na Politécnica Central de Londres (Universidade de Westminster). Além de Estudos de Cinema pela Universidade de Londres. Em seus trabalhos acadêmicos, dedicou-se, principalmente, ao estudo de conflitos e uso do cinema como forma de propaganda.
No campo da reflexão, Litewski publicou artigos na Sight and Sound, Screen e Image International. Produziu filmes como freelancer para o British Film Institute (BFI) e Channel Four, ambos no Reino Unido, para a NBC (EUA), a RAI italiana e muitas outras emissoras internacionais. Trabalhou na Rede Globo de Televisão, em Londres e, também, no Rio de Janeiro, como coordenador e produtor de notícias internacionais. Dirigiu a Fundação Antares (responsável pela Rádio e Televisão Pública do Piauí).
Em fevereiro de 1991, Chaim Litewski foi convidado a ingressar na ONU (Organização das Nações Unidas), em Nova York. Antes de aposentar-se, em setembro de 2016, chefiou a Seção de Televisão/Vídeo da instituição criada em 1948. Foi na emissora das Nações Unidas, sua grande escola, que dirigiu centenas de programas de atualidades, documentários, magazines e reportagens sobre conflitos, emergências humanitárias, direitos humanos e questões ambientais. Atuou em amplo espectro geográfico (cerca de 100 países), cobrindo conflitos na América Latina, Oriente Médio, Leste da Europa incluindo a ex-Iugoslávia, Cáucaso (norte e sul), Ásia Central, Melanésia e por toda a África, incluindo o genocídio em Ruanda.
O documentarista participou de seminários, palestras e discussões sobre o papel da mídia na sociedade contemporânea e organizou vários festivais de cinema da ONU em territórios de cinco continentes. Ele foi curador da exposição Unearth, em comemoração aos 70 anos de criação das Nações Unidas (em Nova Iorque, Haia, Paris, Londres e Lisboa).
Chaim Litewski foi consultor do documentário “Beyond Citizen Kane” (“Mais Além do Cidadão Kane”), produzido pelo do Channel Four britânico, que teve a história da TV Globo como tema. Seu documentário “Cidadão Boilesen”, vencedor do Festival É Tudo Verdade 2009, foi exibido em eventos, festivais, televisões e cinemas em todo o mundo.
Desde que se aposentou da ONU, em 2016, Chaim Litewski dirigiu os documentários “Morcego Negro”, em parceria com Cleisson Vidal, sobre a vida e o tempo histórico do empresário PC Farias, tesoureiro do ex-presidente brasileiro Fernando Collor de Mello (menção honrosa no É Tudo Verdade em 2023), “Golpe de Ouro”, sobre a campanha “Ouro para o Bem do Brasil” (2002), movimento cívico que incentivou os brasileiros a doarem dinheiro, ouro e joias ao recém-instaurado governo militar (1964-1984), “A Guerra da Lagosta” (2024), e finaliza “Brasil para Principiantes”, sobre o golpista internacional, Peter Kellemen.
Litewski assina, também, a produção executiva do documentário “The Quiet Diplomat”, sobre o ex-secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon (EUA, 2024).
O produtor (Terra Firme Produções)
Cleisson Vidal é produtor, cineasta e diretor de fotografia, formado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora e em Tecnologia em Processamento de Dados (CES-JF), com pós-graduação em História da Arte (PUC- Rio). Faz pós-graduação em Antropologia, na FESP. Como diretor de fotografia colaborou, além de Chaim Litewski, com os diretores Aída Marques, Beto Novaes, Beth Formaggini, Caty Levy, Evaldo Mocarzel, Eliane Coster e Lea van Steen.
Ao criar a Terra Firme Produções, estabeleceu seus propósitos: “realizar documentários com visão crítica e reflexiva sobre questões históricas e contemporâneas da sociedade brasileira, em sintonia com a luta pela democracia e pelos direitos humanos”. Nossas produções – acrescenta – “trataram de temáticas como arte e cárcere, exploração do trabalho humano, relações políticas e corrupção, esquecimento e memória, desenvolvidas a partir de biografias de pessoas anônimas e públicas”.
Cleisson dirigiu (produziu ou fotografou) os filmes “Missionários” (2005), “Sob o Verde da Memória” (2011), “Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília” (2012), “O Forno” (2013), “Nuvens de Veneno” ( 2014), “Linha de Corte” (2014), “Wanda dos Santos – Sem Barreiras” (2015), “Milton Nascimento – Intimidade e Poesia” (2018), “Paulo César Pinheiro – Letra e Alma” (2021), “Golpe de Ouro” (2021), “Morcego Negro” (2024), “A Guerra da Lagosta” (2024) e ““Brasil para Principiantes” (em finalização).