Viajando ao acaso

Por Caio Tseng

Não é sempre que, ao fechar um livro, o leitor tenha que se despedir tanto da história quanto do autor. Foi nesse contexto, debruçado no último romance de Paul Auster lançado em vida, “Baumgartner”, que recebi a triste, porém esperada, notícia de que perdemos um dos maiores nomes da literatura norte-americana.

Da mesa de onde escrevo, tenho ao alcance da mão, na pequena estante colada à parede, uma quantidade considerável de romances do escritor americano — uma mistura de livros furtados de estantes familiares e comprados de diversos sebos que visitei ao longo dos anos. Meu primeiro contato com Paul Auster começou por acaso — este que mais tarde eu viria a descobrir ser um dos temas centrais das suas histórias —: vasculhando a biblioteca do meu pai, topei com a célebre “Trilogia de Nova York”. Narrativa hipnotizante, o suspense me agarrou e me sacudiu até a última página. Desde este encontro, não consegui me afastar, mantive sempre algum de seus livros por perto.

Auster escrevia de forma simples. Longe de qualquer grandiloquência literária, seus romances são fáceis e envolventes, sem nunca deixarem de ser muito bem estruturados e escritos. Utilizava com primor os recursos de suspense das narrativas policiais, criando não só tramas envolventes e eletrizantes, mas passíveis de identificação, por tratarem de temas profundamente humanos. Com um olhar sensível ao cotidiano e aos acontecimentos, sejam eles banais ou extraordinários — um telefonema por engano no meio da madrugada, ou um raio que atinge uma criança e leva sua vida num instante —, Auster escreveu uma lista extensa de romances que cativaram leitores pelo mundo inteiro, sendo traduzido em mais de 40 países.

O acaso e as coincidências permeavam, ou até perseguiam a sua escrita. Uma bigorna cai e por um triz não acerta em cheio e acaba com a vida de um homem. Após a experiência, este homem decide mudar radicalmente o rumo da sua vida. Esse é um dos motes de “Noite de Oráculo”. Quais são os fatos que mudam a trajetória de uma vida? Que escolhas formam um indivíduo? Em “4321”, Auster explora quatro versões diferentes da vida de um mesmo personagem, por meio de escolhas ou simples acontecimentos que vão redirecionando seu rumo.

 

Além de um ótimo contador de histórias, Auster era um profundo amante da literatura. Suas tramas quase sempre giravam em torno de um protagonista escritor; em “Noite do Oráculo”, acompanhamos um homem que começa a tecer um novo romance, que por sua vez carrega dentro de si um personagem que também escreve — o livro dentro do livro, dentro do livro. À certo ponto na narrativa de “4321”, o rapaz Ferguson se atreve a escrever uma pequena história, e decide trilhar rumo à vida de escritor. Em “Baumgartner”, temos acesso na íntegra aos textos escritos pelo personagem, atormentado pelas memórias da sua falecida esposa; esta, não por acaso, poeta.

Este último livro, escrito quando Auster já estava doente e publicado no ano passado, revela um escritor no auge da sua prosa e da sua sensibilidade — “Baumgartner” é um curto e tocante romance sobre a contemplação da finitude e dos caminhos tortuosos da memória. O livro narra a vida de um senhor de setenta anos, tentando continuar sua vida após a morte de Anna, que fora sua companheira por mais de cinquenta anos. “Baumgartner” tem previsão de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras ainda no segundo semestre deste ano.

Não tive como não pensar no próprio Paul Auster, já doente e com idade próxima à de seu personagem, caneta na mão, elaborando essa narrativa melancólica, se havendo ele próprio com a finitude e a fragilidade da vida.

O que me fascina tanto nas suas obras é algo que eu mesmo já me questionei algumas vezes. Mergulho talvez seja a palavra — são incontáveis as madrugadas em que estive profundamente imerso na trama dos seus livros, seja pelo suspense e a curiosidade que me impedia de largar seus romances mais curtos, seja como no caso do calhamaço “4321”, uma obra tão monumental que por alguns meses me atrevo a dizer que deixei de lado a mim mesmo, tão absorto que estive vislumbrando as diferentes versões da vida de um mesmo personagem, por mais de 800 páginas.

Ler Paul Auster é — para usar a velha metáfora da literatura como viagem —, como dar a mão à ele, e se deixar levar no universo por ele criado.

Numa entrevista à Paris Review, Auster diz: “Um romance é o único lugar onde dois estranhos podem se encontrar em absoluta intimidade. O leitor e o escritor fazem o livro juntos. Nenhuma outra arte consegue capturar a interioridade essencial da vida humana.”

Assim foram os meus encontros-viagens com Paul Auster. Da sua vasta produção literária, felizmente ainda me restam muitos livros não lidos: muitas oportunidades para encontrá-lo — e me encontrar — nas suas palavras.

 

Caio Tseng é psicólogo, autor de “Lá, onde os tigres amam”, que será lançado no segundo semestre deste ano pela editora Patuá

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.