Cine Ouro Preto homenageia animação brasileira e Alê Abreu, que concorreu ao Oscar com “O Menino e o Mundo”

Foto: Homenageado Alê Abreu © Leo Lara/Universo Produção

Por Maria do Rosário Caetano

A cidade de Ouro Preto, que a Unesco reconheceu como Patrimônio da Humanidade, sedia, dessa quinta-feira, 19 de junho, a 24, a décima-nona edição de seu festival de cinema, a CineOP. Um evento destinado à reflexão sobre memória, educação audiovisual e patrimônio cinematográfico do país. E à exibição de quase 100 filmes.

A cada novo ano, a Mostra de Cinema de Ouro Preto entrega o Troféu Vila Rica a uma personalidade que tenha significativa folha de serviços prestados ao audiovisual brasileiro. O homenageado desse ano é o cineasta Alê Abreu, 53, animador incansável e devotado à animação desde que realizou seu primeiro curta-metragem (“Sirius”, 1993).

Antes de Alê, a CineOP festejou, com o Troféu Vila Rica, os cineastas Eduardo Coutinho e Vincent Carelli (este, do Vídeo nas Aldeias), a montadora Cristina Amaral, o pesquisador Antônio Leão, o ator Toni Tornado, os cineastas Ariel Kuaray Ortega e Patrícia Ferreira (Coletivo Mbyá-Guarani, da região missioneira gaúcha), entre outros.

A homenagem a Alê Abreu, único brasileiro indicado ao Oscar de melhor longa animado (por “O Menino e o Mundo”), estende-se ao nosso cinema de animação, que receberá, do festival mineiro, imensa atenção e ampla retrospectiva.

Em 31 anos de carreira, Alê dirigiu três longas animados (“Garoto Cósmico”, em 2007, “O Menino e o Mundo”, em 2014, e “Perlimps”, lançado ano passado). Apaixonado por desenho, o jovem paulistano começou a frequentar cursos que acabaram por levá-lo, além da ilustração e das artes plásticas, ao cinema. Depois de estudos no MIS-SP (Museu da Imagem e do Som), onde realizou seu primeiro exercício fílmico, ainda adolescente (“Memória de Elefante”, 1984), foi estudar Comunicação na universidade. Já concentrado no cinema, que seria sua atividade primeira, ele dirigiu, além de “Sirius”, o belo “Espantalho” (1998). Este curta chamaria atenção em diversos festivais, principalmente pela sofisticação de seu desenho plástico. Faria mais um curta, “Passo”, mas já ocupado e entregue à realização de seu primeiro longa, “Garoto Cósmico”.

A indicação ao Oscar e o sucesso de “O Menino e o Mundo”, que iniciara sua luminosa trajetória no Festival Internacional de Annecy, colocaram os holofotes sobre o obstinado realizador. Antes de lançar “Perlimps”, Alê concebeu a série “Vivi Viravento” (2017), dirigida por Priscilla Kellen (26 episódios, de 11 minutos cada), exibido no canal Discovery Kids e na TV Cultura.

Cena de “O Menino e o Mundo”

A CineOP divide suas mostras cinematográficas e seus espaços reflexivos em três eixos. O que prestará tributo a Alê de Abreu (Temática Histórica) elabora o conceito “Cinema de animação no Brasil: uma perspectiva histórica”. As discussões vão centrar-se — conforme explica o curador Cleber Eduardo — “em estilo de produção que há mais de um século vem existindo (e resistindo) no cinema brasileiro, sobrevivendo a limitações técnicas e econômicas”. Isto porque, “movidos por paixão heróica e autodidata”, os realizadores insistem em criar seus curtas e longas-metragens. O curador trabalhou em parceria com o realizador Fabio Yamaji.

“A animação brasileira” – pondera Cleber Eduardo – “é marcada por descontinuidades nas carreiras da grande maioria de seus realizadores e por títulos isolados”. Por sorte, ao menos o curta-metragem permite que aqueles vocacionados à animação exerçam seu ofício “de forma persistente e permanente”. E, no formato de curta duração, “seu principal meio expressivo”, os animadores praticam “dimensão estética e cultural considerável”.

A dupla de curadores montou programação representativa da animação brasileira através dos tempos, em sessões de curtas e longas-metragens dos mais variados estilos, formas e criações. “São produções desenvolvidas e exibidas em diferentes décadas, que permitirão ao espectador ter contato com técnicas, desenhos, cores, movimentos e personagens distintos”, explicam Cleber e Yamaji.

Haverá, também, rodas de conversas sobre questões históricas e contemporâneas do cinema de animação no Brasil, processos criativos, relações com o mercado, condições estruturais de trabalho, a presença das mulheres em distintas funções e os trabalhos criativos de indivíduos e coletivos.

Os animadores brasileiros se unem, com abnegada dedicação, à entidade que os representa, a ABCA (Associação Brasileira de Cinema de Animação). Com presença garantida de suas lideranças. Em pauta também o papel do festival Anima Mundi, que sofreu solução de continuidade nos anos Bolsonaro, mas deve voltar a ser a importante e permanente vitrine da animação brasileira e internacional.

Outro tema em pauta na CineOP será a Lei da TV Paga e a regulamentação do streaming. Essas duas janelas exibidoras – a primeira, em especial – impulsionou a presença de produções animadas em praticamente todos os canais de exibição doméstica em nosso país.

Cleber e Yamaji justificam a escolha de Alê Abreu para ser o homenageado da CineOP: “embora tenha atuado em diferentes atividades relacionadas ao desenho e à ilustração, em livros, publicidade e séries, Alê é a assinatura mais reconhecida dos últimos anos do cinema de animação no Brasil, especialmente, por fugir dos padrões uniformizantes e industriais, com muita ênfase na visualidade e na criação de mundos próprios, que se nutrem de relações com a realidade”.

Na noite inaugural da décima-nona edição da CineOP serão exibidos seis curtas-metragens que ajudam a compor um breve percurso histórico da trajetória de nosso cinema de animação: “Passo” (Alê Abreu, 2007), “Respeitável Público” (Irmãos Wagner, 1987), “A Saga da Asa Branca” (Lula Gonzaga, 1979), “Até a China” (Marão, 2015), “Novela” (Otto Guerra, 1992) e “Castelos de Vento” (Tania Anaya, 1999).

Ao longo da mostra ouro-pretana serão exibidos também os três longas-metragens de Alê Abreu: “Garoto Cósmico”, “O Menino e o Mundo”e “Perlimps”.

Quem for à mais famosa das cidades do Ciclo do Ouro prestigiar seu festival, assistirá ainda a outros títulos imprescindíveis da animação brasileira. Destaque para o delicioso e safado “Amassa que Elas Gostam”, de Fernando Koster, o lúdico e metalinguístico “De Janela pro Cinema”, de Quiá Rodrigues, o cativante “Frankenstein Punk”, de Eliane Fonseca e Cao Hamburger, o inventivo e autobiográfico “Guaxuma”, de Nara Normande, o instigante “Carne”, de Camila Kater, o divertido “O Divino, de Repente”, de Fábio Yamaji, o maluquete “Deus é Pai”, de Allan Sieber, e “Torre”, de Nádia Mangolini, criativa reconstituição de memórias da família do preso político Virgílio Gomes da Silva, vítima da ditadura militar de 1964.

Haverá ainda muitos outros curtas e alguns longas no vigoroso panorama da animação brasileira urdido pela dupla Cleber e Yamaji. Em busca de obrigatória síntese da experiência brasileira no campo do cinema de animação, nada mais indicado que assistir ao longa documental “Luz, Cinema, Ação”, de Eduardo Calvet. O cineasta traça vigoroso painel da aventura levada adiante, apesar dos muitos percalços, pelos pioneiros de nossa animação e por seus apaixonados sequenciadores.

“Peréio, Eu te Odeio”

OUTROS DESTAQUES DA PROGRAMAÇÃO

. AGUDÁS, OS BRASILEIROS DO BENIN – Longa documental de Aída Marques (97 minutos), que contou com a valiosa colaboração do antropólogo e fotógrafo Milton Gurán. A codiretora de longa sobre Nelson Pereira dos Santos (este em parceria com Ivelise Ferreira) busca na África, os laços que unem, em profundidade, baianos e segmento do povo do Benin, o antigo Reino do Daomé.

. PERÉIO, EU TE ODEIO — Em sintonia finíssima com a memória do cinema brasileiro, a CineOP, além de homenagear a memória do mineiro Guilherme Fiuza Zenha (com “Chef Jack – O Cozinheiro Aventureiro”, na Mostrinha), presta tributo ao grande ator Paulo Cesar Peréio. E o faz exibindo o irreverente longa documental de Allan Sieber e Tasso Dourado. A dupla, fiel ao espírito anarquista e desbocado do ator, constrói um dos filmes mais malucões da história do cinema brasileiro. Imperdível.

. OTHELO, O GRANDE, de Lucas Rossi – Uma declaração de amor ao grande Sebastião Prata, mineiro de Uberlândia, que construir sólida carreira, indo da chanchada ao Cinema Novo, passando por telenovelas e pela Escolinha do Professor Raimundo, na Globo. O que interessa a Rossi é mostrar o talento e grandeza desse ator que encantou Orson Welles e Werner Herzog. E que Nelson Pereira imortalizou na pele do compositor Espírito da Luz, protagonista absoluto de “Rio Zona Norte” (2957). Este filme, com imagem de Otelo, rosto ao vento, num trem da Central do Brasil, forneceu a imagem síntese escolhida por Rossi para ilustrar seu belíssimo cartaz.

. BOOM SHANKAR, O FILME PERDIDO DE GUARÁ — Este longa-metragem de Sergio GAG resgata o que restou de filmagens realizadas pelo ator mineiro, em 1972, durante viagem de Amsterdã, na Holanda, até Goa, na Índia. E a enriquece com material inédito (e quase perdido), além de testemunhos de quem participou da aventura indiana do ator, um dos mais requisitados pelo chamado “cinema marginal”.

. A PORTAS FECHADAS — Cinema político na veia. Esse sintético longa-metragem de João Pedro Bin (apenas 65 minutos) é uma joia rara, um mergulho na ditadura civil-militar brasileira, vista pelos anúncios da onipresente propaganda comandada pela AERP (Agência Especial de Relações Públicas da Presidência da República). Um filme que assistimos tomados por intrigante indagação: como é que ninguém teve essa ideia antes?

. UMA VIDA PARA DOIS – Para celebrar o centenário de nascimento do produtor Mario Civelli (1923-1993), a CineOP exibirá “Uma Vida para Dois”, de Armando de Miranda e Sergio Brito, realizado em 1953. Trata-se de ficção protagonizada por Luigi Picchi, Liana Durval e Orlando Villar.

. PATRIMÔNIOS DA CINEMATECA DO CHILE – Serão exibidos cinco títulos oriundos do país hispano-americano. O maior destaque entre eles é o longa-metragem “O Hussardo da Morte”, de Pedro Sienna, realizado em 1925, portanto na era silenciosa. Com duração de 65 minutos, o filme conta a história de Manuel Rodriguez, de 1814 até sua morte. As lendárias aventuras do popular patriota chileno são construídas “com engenhosos efeitos especiais”.

. CORAÇÃO ALADO – Exibição de capítulo introdutório e restaurado. Nessa telenovela de Janete Clair, Tarcísio Meira interpreta Juca Pitanga, artista plástico pernambucano que chega ao Rio de Janeiro em busca de maior visibilidade na carreira. Na nova cidade, ele se envolve com Catucha (Débora Duarte), filha do marchand Alberto Karany (Walmor Chagas), e com a jovem Vivian (Vera Fischer). Apesar de amar Vivian, Juca se casa com Catucha, pensando em sua projeção profissional. O casamento termina quando ele decide acompanhar o irmão Gabriel (Carlos Vereza), perseguido pela ditadura militar, em seu exílio político no México. Juca retorna ao Brasil anos depois, graças à Lei da Anistia. Janete Clair teve que lidar com a censura da época, devido aos temas polêmicos abordados, sejam relacionados ao comportamento – das mulheres, em particular – ou políticos, em um Brasil que vivia há quase duas décadas sob o regime militar. O primeiro episódio foi considerado uma grande produção, com imagens gravadas durante a Paixão de Cristo, em Nova Jerusalém, Pernambuco, e em Nova York. Direção de Roberto Talma e Paulo Ubiratan.

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