Livro revela estratégias de Hollywood na conquista do mercado de cinema no Brasil
Por Maria do Rosário Caetano
Wim Wenders costuma lembrar que “Hollywood colonizou nosso imaginário”. O jornalista, crítico, pesquisador e professor de cinema Pedro Butcher, carioca de 53 anos – que lança nesta terça-feira, 9 de julho, no Espaço Net Rio, o livro “Hollywood e o Mercado de Cinema no Brasil: Princípios de uma Hegemonia” –, cita dois significativos versos de Chico Buarque, que podem ser ouvidos na trilha sonora do blockbuster “Os Saltimbancos Trapalhões” (J.B. Tanko, 1981, 5,2 milhões de espectadores): “Hollywood fica ali bem perto/Só não vê quem tem um olho aberto”.
As vozes de Lucinha Lins e dos Trapalhões cantam os versos, que evocam os sonhos construídos pela “fabulosa Xanadu” de celulóide, para ao final confessar, brechtianamente, que têm medo “De amanhã cair da tela/ e acordar/ em Nova Iguaçu, uh”.
O livro de Butcher, editado pela Coleção Lumière, da Editora Letramento, provará que os sonhos transformados em filmes por produtores norte-americanos, seja na Costa Oeste (Califórnia), seja na Leste (Nova York), seguem como poderoso exemplo de como Hollywood (madeira de azevinho) “tornou-se símbolo do poder cultural e econômico do cinema produzido nos Estados Unidos”.
Hollywood, como conceito geográfico, é apenas um distrito da região central da cidade de Los Angeles. Acabou, por metonímia, representando a totalidade da indústria cinematográfica do maior império de cinema do mundo. Além de milhares de filmes que forjaram imaginários, tornou-se, também, o espaço difusor do prêmio mais famoso do planeta, o Oscar. Foi para entender como se deu a construção dessa hegemonia, particularmente no mercado brasileiro, que Butcher defendeu tese de doutorado na UFF (Universidade Federal Fluminense), tendo o professor Rafael de Luma como seu orientador.
Suas pesquisas, fruto de rigorosa investigação histórica e detalhado mergulho em documentos do Departamento de Estado e do Departamento de Comércio dos EUA, sem esquecer série de publicações internacionais, revelam, nas 238 páginas do livro, como o governo americano apoiou o processo de expansão internacional de sua indústria de cinema, oferecendo contribuição decisiva para a construção de sua hegemonia no Brasil e em vários países do mundo.
O pesquisador brasileiro lembrará, em seu estudo, que “os filmes estrangeiros tinham presença marcante no mercado estadunidense” durante os primeiros anos da história do cinema. Tanto que “a francesa Pathé chegou a ser líder de mercado”. Mas, “à medida em que a indústria dos EUA foi se organizando, na década de 1920, o espaço para produções de outros países foi diminuindo até praticamente desaparecer”. E este processo de ‘expulsão’ – explica Butcher – “resultou de práticas de distribuição e de construção discursiva que tornou o ‘cinema americano’ praticamente um sinônimo de ‘cinema’. Tais “práticas de distribuição e construção discursiva, que contou com firme e contínuo apoio da imprensa especializada, ajudaram a exportar essa noção”, reforça o pesquisador.
A Revista de CINEMA conversou com Pedro Butcher sobre “Hollywood e o Mercado de Cinema Brasileiro: Princípios de uma Hegemonia”. Vale lembrar que mesmo sendo um dos críticos mais respeitados do país (vide suas colaborações quinzenais no caderno Eu, do Valor), Butcher não descuida das questões de mercado. Tanto que, em sua dissertação de mestrado, orientada pela professora Consuelo Lins (defendida na UFRJ-Universidade Federal do Rio de Janeiro), estudou a produtora de cinema da Rede Globo (“A Dona da História – As Origens e o Impacto da Globo Filmes no Audiovisual Brasileiro”).
Revista de CINEMA – Você adaptou sua tese para que ela se transformasse em livro? Ou desde sua escrita e defesa na UFF, ela já fugia dos jargões acadêmicos?
Pedro Butcher – As duas coisas. Tenho formação jornalística, então naturalmente meu texto não segue de forma muito estrita os padrões do “academiquês”, que muitas vezes acaba funcionando como uma barreira de acesso às pesquisas acadêmicas. Mas também fiz uma adaptação para a publicação em livro, menos em relação ao texto e ao estilo, e mais no sentido de tornar o texto mais curto e enxuto. Assim, alguns trechos que considerei específicos demais foram cortados, com a anuência do orientador.
Seus estudos basearam-se em fontes primárias, pois você esteve nos EUA e consultou documentos de grande importância e utilidade. O que esta documentação lhe trouxe de mais revelador?
Minha pesquisa não teria sido possível sem bolsa da Fundação Fulbright, que me permitiu estadia de nove meses como pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em Santa Barbara, uma cidade pequena a duas horas de trem de Los Angeles. Lá tive como coorientadora a professora Cristina Venegas e contei também com o apoio fundamental do professor e pesquisador Ross Melnick, que tem grande experiência de pesquisa nos arquivos do governo. Santa Barbara foi a base, mas realizei várias viagens de pesquisa pelos EUA, a principal delas à unidade do National Arquive (o Arquivo Nacional de lá) que guarda a documentação dos Departamentos de Estado e de Comércio. Esse arquivo fica em Maryland, uma pequena cidade entre Washington e Baltimore. Lá encontrei o “coração” da minha pesquisa, isto é, os relatórios produzidos pelo governo americano sobre o Brasil (há relatórios sobre vários setores da economia, e muitos deles sobre cinema), que começaram a ser produzidos logo após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e se intensificaram a partir dos anos 1920. Eles comprovam a utilização de uma ampla estrutura estatal para apoiar a expansão internacional das indústrias americanas, no sentido de ocupar o vácuo deixado pela Europa, que sofreu uma grande retração durante a guerra. A América Latina e, especificamente o Brasil, foram um dos mercados prioritários na construção de uma rede de informações que beneficiou o setor empresarial americano interessado em se expandir internacionalmente. Essa estrutura foi montada nos consulados dos EUA, que contrataram adidos especializados na produção desses relatórios. Também encontrei documentos fundamentais nos arquivos da Warner, que ficam na Universidade da Califórnia do Sul, em Los Angeles, nos arquivos da United Artists, depositados na Universidade de Madison, e também na biblioteca da Academia de Hollywood (em Los Angeles) e na biblioteca pública de Nova York.
As distribuidoras norte-americanas fincaram suas bases praticamente no mundo inteiro. Por que, entre os países de dimensões continentais (Índia, Rússia, China, Canadá), o Brasil é o que detém a menor faixa de market-share para sua produção?
Essa é uma boa pergunta, e também a minha grande esperança. Que essa pesquisa se torne um incentivo para que outras pesquisas sobre esse mesmo assunto, sobretudo as que tenham como foco a distribuição dos filmes, se desenvolvam. Por intuição, eu diria que uma hipótese pode estar no(s) tipo(s) de colonização(ões) que atravessaram a história do Brasil e da América Latina como um todo.
Seu livro “Hollywood e o Mercado de Cinema no Brasil” revela a colaboração entre governo, empresários e imprensa especializada na criação de rede de informações que apoiou a expansão internacional da indústria do cinema estadunidense e, sobretudo, garantiu a longevidade de sua hegemonia. Por que acreditamos que o cinema dos EUA se fez pela ação única da iniciativa privada, sem apoio do Estado?
É uma construção discursiva que deriva dessa crença no “destino manifesto”, que a historiadora Emily Rosenberg descreve tão bem, fonte fundamental para o embasamento teórico da minha pesquisa. É uma construção ideológica de cunho religioso, que vê na expansão industrial e comercial dos EUA, interna e externamente, como uma “missão” civilizatória e religiosa, mesmo. Tem uma grande influência do protestantismo. Não por acaso, uma das peças-chaves da minha pesquisa foi uma carta que um missionário americano instalado em Juiz de Fora escreveu para um político dos EUA, reclamando do teor dos filmes americanos. Essa carta abre o capítulo sobre os relatórios enviados do Brasil
Há quem acredite que a China possa vir a ser, dentro de algumas décadas, a maior economia do mundo. No campo do audiovisual, tal supremacia parece muito distante no horizonte, não? O cinema chinês não viaja como o norte-americano. É um estranho no ninho ocidental.
Talvez. Um pouco antes da pandemia, a China estava prestes a ultrapassar os Estados Unidos como maior mercado para cinema em número de salas, público e bilheteria. Mas esse é outro campo que precisa ser pesquisado com mais profundidade. A China tem um projeto de internacionalização? Se sim, qual sua dimensão? Precisamos urgentemente de mais pesquisas nessa área!
Há ideia recorrente de que a Columbia Pictures, uma major norte-americana, ganhou muito dinheiro com a distribuição de “O Cangaceiro”, enquanto a produtora Vera Cruz caminhava para a bancarrota. Essa história tem fundo de verdade ou é fruto de nosso complexo de povo subdesenvolvido, espoliado?
Pode ter um fundo de verdade sim, e está relacionada a uma questão fundamental, que apareceu como elemento fundamental da minha pesquisa também: a importância da informação. E de como o desaparecimento da documentação relacionada a público e bilheteria de quase toda a história do cinema nacional antes da Embrafilme é uma lacuna lastimável. Não sabemos precisamente qual foi o tamanho do sucesso de “O Ébrio”, não sabemos os resultados das chanchadas etc. Isso é grave e chama a atenção para a importância da informação em todos os campos da atividade audiovisual.
Você é jornalista, crítico, pesquisador e professor de cinema. Enfim, um intelectual que pensa o cinema como objeto estético, mas também como produto industrial. Você atuou no Boletim Filme B e atua em programas de fomento financeiro a novos talentos (Berlim, CineBH). O que lhe permitiu compreensão tão ampla do cinema? E por que são tão raros, no Brasil, profissionais com perfil similar ao seu?
Antes de tudo, obrigado por essa descrição, que considero um elogio que me deixa muito feliz. É uma boa pergunta… Foram algumas dessas coincidências da vida que fogem um bocado do nosso controle. Tenho formação como jornalista e começo minha trajetória como repórter e crítico de cinema. Quando apareceu a oportunidade de trabalhar no Filme B, eu sentia que as redações de jornal estavam se tornando ambientes bastante complexos. Havia uma deterioração visível das possibilidades de trabalho nesse formato. Não fazia ideia do que seria o Filme B, mas lá tomei contato com essa questão do mercado, que me levantou muitas questões, e tive flexibilidade para voltar a estudar. Minha vida acadêmica existe única e exclusivamente porque gosto de estudar, é uma necessidade. E prefiro um “estudo dirigido”, isto é, com algum foco. Nos primeiros anos do Filme B, pude fazer minha pesquisa de mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ, e esta já foi voltada para questões da economia e da política do cinema (o tema foi a criação da Globo Filmes). O doutorado marca outra transição na minha trajetória, em que a docência ganha espaço e importância. Adoro dar aulas também. Mas só faço isso porque continuo amando os filmes e obras audiovisuais de uma forma geral. Tanto que sigo escrevendo uma coluna quinzenal, como crítico, no Valor.
Sua tese serve de paradigma para compreendermos a hegemonia de plataformas de streaming em nosso mercado audiovisual? O Brasil deve regular e taxar essas poderosas empresas?
Não sei se paradigma, propriamente, mas acredito que ela pode ajudar a entender as estratégias dos grupos hegemônicos. Nesse sentido, sim. E vivemos nesse momento, justamente, uma nova disputa por hegemonias. Minha pesquisa de doutorado deve imensamente a Paulo Emílio, que sempre apontou esse aspecto: sabemos muito pouco sobre aqueles que dominam nosso mercado. Resumindo, podemos listar como as duas principais estratégias da hegemonia uma política de ocupação, antes de tudo, e um esforço pelo controle da informação. Nesse sentido, muito pode se aplicar à realidade do streaming. Tanto que já escrevi em parceria com meus amigos e pesquisadores Lia Bahia e Pedro Tinen dois artigos sobre essa questão, tão importante e urgente.
Hollywood e o Mercado de Cinema no Brasil: Princípios de uma Hegemonia
Autor: Pedro Butcher
Editora: Letramento
Páginas: 238
Preço: R$ 69,90
Lançamento: 9 de julho, no Estação Net Rio (Rua Voluntários da Pátria, 35, Botafogo, RJ, às 19h)