Caminhos bifurcados, desejos demolidos, afetos precários: “Mais Pesado é o Céu”, de Petrus Cariry

Por Marcelo Ikeda

“Mais Pesado é o Céu” traça o caminho de um encontro inesperado, entre Teresa (Ana Luíza Rios) e Antônio (Matheus Nachtergaele). Esse encontro acontece num lugar particular: nas ruínas da cidade de Jaguaribara, no interior do Ceará, inundada para a construção do Açude Castanhão. O diretor Petrus Cariry já havia abordado os impactos sociais e humanos das ruínas de uma cidade despedaçada em “Mãe e Filha” (2006), passado em Cococi. Trata-se não apenas de um espaço geográfico desconstruído, com diversos desequilíbrios ambientais, mas sobretudo de modos de ser interrompidos, de vidas e desejos demolidos. Os dois personagens retornam para um lugar que já não mais existe: submersas estão também suas memórias e suas possibilidades de sobrevivência.

Há também um outro encontro inesperado: Teresa subitamente se depara com um bebê abandonado em uma pequena jangada à beira do açude. Diante da seca, em torno do cenário da agora desertificada margem, forma-se surpreendentemente uma família, formada por três seres abandonados pelo mundo.

O filme realizado por Petrus Cariry poderia se assemelhar a um road movie. Os dois personagens seguem pela estrada, de carona em carona, até chegar ao seu lugar de destino. Mesmo quando chegam a Jaguaribara – ou melhor, ao que restou dela –, a estrada permanece como protagonista de suas vidas. A estrada parece apontar para uma linha de fuga, uma possibilidade de trânsito, um caminho de asfalto árido a se seguir. Ou mesmo a forma cruel e temporária de lhes garantir o sustento possível. A ambiência da vasta rodovia de “Mais Pesado é o Céu” nos remete a “Aopção, ou as Rosas da Estrada” (1981), de Ozualdo Candeias, que acompanha algumas mulheres que deixam o trabalho pesado no canavial para aventurar-se na estrada, em busca de transporte e comida. Mas afeto elas não recebem. Já no filme de Petrus, chegamos a acreditar que talvez esse acolhimento seja possível. Recebem a ajuda temporária de uma personagem estrangeira que se estabeleceu no local (Sílvia Buarque). Surgem os indícios de uma possível amizade com a atendente do posto de gasolina (Danny Barbosa). Talvez esse trio de personagens desamparados possam reconectar os cacos estilhaçados de suas ruínas, constituir uma família e fixar um lar mesmo nesse lugar aparentemente tão inóspito. Eles insistem em querer permanecer. Um açude seco. Um seio materno seco. Ainda é possível, mesmo numa sociedade tão pragmática e materialista, que os desprovidos sobrevivam mantendo sua dignidade? Que alternativas ou quais perspectivas surgem diante do cenário de destruição do nosso mundo contemporâneo? Esses afetos precários terão suficiente força para fincar suas raízes mesmo em solo tão abrasado?

Entre todos os filmes realizados até então por Petrus Cariry, este parece ser o mais aberto. Não apenas pelo encontro afetivo entre personagens tão estranhos entre si, mas também uma abertura narrativa com espaços mais amplos para que o espectador compartilhe esse desafio, em torno da transparência e identificação com as personagens. Mas, se observarmos bastante bem, as ruínas permanecem ali – e, no final das contas, irão engolir tudo, e de forma voraz.

“Mais Pesado é o Céu” se integra ao cenário de amplo desenvolvimento do Nordeste e também do cinema cearense. Recentemente presenciamos filmes como “Vermelho Monet” (Halder Gomes), A “Filha do Palhaço” (Pedro Diógenes), “Estranho Caminho” (Guto Parente) e “Greice” (Leonardo Mouramateus) estreando comercialmente em salas de cinema não apenas no Ceará mas em diversos estados do país. E são filmes bastante diferentes entre si, de realizadores e equipes de trajetórias distintas e modelos de produção diversos. É curioso também percebermos que três filmes recentes se espelharam no cenário do açude de Jaguaribara: além deste filme de Petrus Cariry, temos “Memórias da Chuva”, documentário de Wolney Oliveira, e “Represa”, de Diego Hoefel.

Mas há um elemento que afasta o filme de Petrus de todos os demais: é o que mais frontalmente recusa o cenário de reconciliação. Algo que ressoa em toda a filmografia de Petrus: finais em aberto de grande potência cinematográfica, que colocam não só os personagens mas os espectadores no centro de uma encruzilhada, que o filme não irá resolver de forma conciliadora: os conflitos explodem em violência, o que aponta para um franco ceticismo do realizador que o sistema ou sua institucionalização serão a chave redentora de nossos conflitos históricos, sociais e sobretudo humanos. Essa é uma das grandes contribuições do cinema de Petrus no panorama do cinema nordestino de hoje.

 

Marcelo Ikeda é professor do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (ICA/UFC) e Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, com estágio-doutoral na Universidade de Reading (Inglaterra). Autor de treze livros sobre cinema brasileiro, como “Das garagens para o mundo”, Utopia da autossustentabilidade” e “Fissuras e Fronteiras”. Atua também como cineasta, crítico de cinema e curador. Mantém o site www.cinecasulofilia.com.

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