Médico cubano, influencer periférica, jovem universitária e adolescente suburbano, todos afro-brasileiros, destacam-se na Mostra de Gostoso
Foto: “O Deserto de Akin”, de Bernard Lessa
Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso (RN)
Personagens afro-brasileiros protagonizam os quatro longas-metragens exibidos no último final de semana no Cinema ao Ar Livre e na Sala Petrobras, os dois palcos da décima-primeira edição da Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte.
Um médico cubano, de nome Akin, convocado pelo programa Mais Médicos e interpretado por Reynier Morales, está no centro da narrativa do longa capixaba “O Deserto de Akin”, de Bernard Lessa. Já a protagonista absoluta do pernambucano “Tijolo por Tijolo”, de Victoria Alvares e Quentin Delaroche, é a esfuziante Cristiane Martins Ventura, moradora da periferia recifense, que enfrenta série de dificuldades e tenta ganhar a vida como influenciadora digital.
Já no centro de “Kasa Branca” está o jovem preto, gordo, periférico e amoroso Dé (Big Jaum), que vive com a avó Almerinda (Teca Pereira), portadora do Mal de Alzheimer, em estágio avançado. Os três filmes disputam o Troféu Câmara Cascudo e o Prêmio da Crítica, na principal competição cinematográfica gostosense.
Fora de competição, na Mostra Panorama, foi exibida a ficção pernambucana “Ainda Não É Amanhã”, protagonizada pela estudante de Direito Janaína (Mayara Santos), sob direção de Milena Times. Integrante de família de mulheres pretas (avó costureira e mãe cabeleireira), Jana destaca-se pela inteligência. Consegue ser monitora no curso de Ciências Jurídicas e está prestes a ganhar bolsa integral na faculdade. Mas uma gravidez indesejada — ela tem apenas 18 anos — poderá obrigá-la a cumprir o mesmo destino reservado a outras mulheres de sua família.
“O Deserto de Akin” chama atenção pela originalidade de seu tema. Afinal, trata-se da primeira ficção brasileira a abordar uma das vitrines (a que mais levou pedradas) do Governo Dilma Roussef, o programa Mais Médicos.
Para atender a populações desassistidas (comunidades indígenas, povoados esquecidos e periferias urbanas), a presidenta petista recrutou médicos dispostos a deixar o “circuito Elizabeth Arden” brasileiro e embrenhar-se pela Amazônia, pelos grotões do Nordeste e nas favelas do Sudeste.
Quem disse sim à convocação? Uma maioria de médicos cubanos. Entre eles, Juan Delgado, negro alto e elegante, que desembarcou no aeroporto de Fortaleza, em 2013, sob vaias e apupos. Médicos e, principalmente, médicas brancas gritavam: “escravo!”, “incompetente!”
O filme capixaba, terceiro longa-metragem de Bernard Lessa, não se inspira diretamente em Juan Delgado, nem em outros profissionais afro-caribenhos que vieram atuar no Brasil profundo.
“O Deserto de Akin” é uma ficção que estabelece suave diálogo com o cinema documental. E que, nos seus créditos finais, exibe fotos de Araquém Alcântara, reunidas em livro-álbum composto com poderosa seleção de imagens captadas em 28 pontos do território brasileiro.
Lessa pesquisou muito, mas criou sua narrativa com total liberdade ficcional. Acabou realizando um filme intimista, protagonizado por trisal, em cujos vértices estão o médico cubano e os brasileiros Érica (Ana Flávia Cavalcanti) e Sergio (Guga Patriota). Tudo temperado com ingredientes homoafetivos.
A maior transgressão do filme está na composição de Akin, o médico-brigadista, filho de dois médicos que serviram, em nome de Cuba, na guerra de libertação de Angola. Ele se assemelha a um astro de rock, um êmulo de Bob Marley ou Jimmy Cliff. Tem imensos cabelos à moda rastafari e o corpo totalmente tatuado. Quem se fixou na figura apolínea de Juan Delgado, com seus cabelos curtos e porte britânico (à la Chiwetel Ejiofor) ficou intrigado.
No movimentado debate da Mostra de Gostoso, foi o próprio Bernard Lessa, diretor e roteirista do filme, quem levantou a questão do visual de Akin. Ele explicou que quis, intencionalmente, causar estranhamento, quebrar expectativas. E o ator, que veio de Cuba para interpretar o médico Akin, instado a discorrer sobre sua trajetória artística, colocou mais lenha na fogueira.
Ele contou que fez sua formação em “estudos de muitas carreiras” (percussão, canto, composição musical) e integrou — bingo! — banda de heavy metal hard core, em Havana.
Quem superar o estranhamento inicial causado pela figura rock star de Reynier Morales (melhor ator na mostra Novos Rumos, do Festival do Rio) terá outro desafio a enfrentar (caso esteja esperando um filme sobre a complexa e interrompida implantação do programa Mais Médicos).
As camadas político-sociais-econômicas do programa estarão apenas no pano de fundo. Antes de tudo, há que se lembrar que a trama se desenrola num pequeno povoado litorâneo, no Espírito Santo, próximo à Aldeia de Aracruz, onde vivem indígenas assistidos pelo Doutor Akin. O tempo histórico fica bem claro: 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República. Vitorioso, o político avisa que desmantelará o Mais Médico, promessa cumprida à risca.
O clima de polarização será marcado, no filme, por duas cenas especiais. Numa, um “cidadão de bem” desce do carro para agredir Sérgio e os amigos, em ato de homofobia. Noutra, um seguidor de Bolsonaro agride verbalmente (e quase vai às vias de fato) o mesmo grupo, dirigindo xingamentos ao ex-presidente Lula, então encarcerado.
O projeto de “O Deserto de Akin” prioriza a intimidade de seus personagens. Registra, também, a paisagem humana e física da região capixaba. Akin é visto, em seu contato com a gente do Espírito Santo, em seu esforço para incorporar rudimentos do português (o filme recorre a legendas, pois ele se expressa em espanhol), ou jogando beisebol com colega cubano (Wesley Bungué). Em parte significativa da trama, ele atenderá, com grande dedicação, a uma criança indígena, que necessita de transplante de córnea. Em determinado momento, firmará a convicção de que deve ir embora do Brasil, de maneira que possa seguir a missão médica de seus pais.
No desfecho do filme, o diretor-roteirista vai brigar com a realidade. O Mais Médicos acabou sob os domínios de Bolsonaro. Akin só poderá permanecer no Brasil se obtiver visto de residência. A namorada Erica encontrará a solução mais óbvia. Basta uma aliança no dedo, sacramentada em cartório.
Resta, porém, o maior dos desafios: diploma revalidado, de forma que possa continuar no exercício da Medicina. Como solucionar o problema, se o maior inimigo do Mais Médicos foi, em todos os momentos de nossa história recente, o Conselho Federal de Medicina?
No longa ficcional, Akin veste o jaleco, coloca um broche com a bandeira do Brasil no peito e segue para a Aldeia de Aracruz, onde atenderá à sua principal paciente, a criança indígena com problema oftalmológico.
No debate do filme, o diretor-roteirista explicou sua motivação: “eu quis mostrar que ele usava o jaleco para sua última missão”. Justo na Aldeia de Aracruz, onde veremos a criança já com o olho curado pela necessária cirurgia.
O filme traz uma camada simbólica — para uns, óbvia demais, para outros, enriquecedora — representada por uma insinuante serpente e pela areia, que vai, aos poucos, invadindo a casa de Erica, parte essencial do trisal que nuclea a trama.
O material recolhido por Bernard Lessa foi tão rico — ele mostrou no debate sua dedicação aos livros escritos sobre a abortada experiência médica — que poderá, se quiser, realizar um sólido (e complexo) documentário sobre o tema.
“Kasa Branca”, primeiro longa solo de Luciano Vidigal, um dos diretores de “5x Favela – Agora por Nós Mesmos” e codiretor de “Cidade de Deus – Dez Anos Depois”, é um filme delicado e amoroso com seus personagens. Uma crônica sobre um adolescente periférico (da Chatuba carioca) que só conta com dois amigos para ajudá-lo em momento difícil. Sua avó, única parente com quem mantém profunda relação afetiva, está com os dias contados.
Adrianin (Diego Francisco, melhor ator coadjuvante no Festival do Rio) e Martins (Ramon Francisco) ajudarão o amigo no que for possível, estando (ou não) ao alcance de duas posses. Ajudam a conseguir remédios (mesmo que de forma ilícita), a levar Dona Almerinda ao hospital e, até, a enfrentar trilha na mata e subir maciço capaz de evocar, na enferma vovó, paisagem idílica do passado. Subir maciço significa carregar Dona Almerinda nos braços, pois ela está presa a uma cadeira de rodas e alheia ao mundo (devido ao Alzheimer).
Embora Luciano Vidigal, integrante do grupo Nós do Morro (e do Nós do Cinema), tenha participado de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles, 2002) e revisitado este mesmo filme (com Cavi Borges, no longa documental “Cidade de Deus – Dez Anos Depois), “Kasa Branca” trilha caminhos bem diferentes. Os milhões de espectadores da adaptação do livro de Paulo Lins encantaram-se com o clima de ação constante e montagem acelerada, adotados por Meirelles e seus colaboradores.
Luciano, porém, faz um filme singelo, com narrativa rarefeita, sem violência gráfica, sem reviravoltas. Com fotografia de alta potência poética (de Arthur Sherman), ele registra o trem que corta o subúrbio, os desejos dos adolescentes (inclusive os masturbatórios), as dificuldades do dia-a-dia, o encanto com show de L7nnon, o charme maduro-erótico da mãe de um deles, a busca do pai ausente. Tudo temperado com muito humanismo e algumas pitadas de humor.
“Kasa Branca” rendeu a Luciano Vidigal, no Festival do Rio, o Redentor de melhor direção, que somou-se aos troféus destinados à fotografia, ator coadjuvante e trilha sonora original (de Fernando Aranha e Guga Bruno).
O filme, com estreia prevista para janeiro de 2025, é uma produção da TV Zero, que festeja trinta anos de atividade e prepara longa documental sobre gravação que Pixinguinha, seus Oito Batutas e Cartola realizaram num navio, sob o comando do Maestro Leopold Stokowsky, na década de 1940.
O documentário “Tijolo por Tijolo” causou sensação na Mostra de Gostoso. A cineasta pernambucana Victoria Alvarez, muito articulada, respondeu a dezenas de perguntas do público. Todos os debatedores, sem exceção, tocados pela força que une a família Martins Ventura, formada em torno da despachada Cris, mãe de três crianças. Ela se descobre, de forma inesperada, grávida do quarto filho, em plena pandemia da Covid-19.
Cris Martins é volumosa, exuberante, desinibida. Estudante de Educação Física, ela teve que suspender o curso, pois passa por grandes percalços financeiros. Casada com Albert Ventura, marido dedicado, de compleição física miúda e perfil discreto, os dois vão ter que reconstruir sua residência avariada por graves rachaduras.
O incansável Albert vai aprender o ofício de pedreiro no YouTube. E, tijolo por tijolo, reconstruir a casa. Cris e um dos filhos, o esperto e sonhador Caíque, vão dedicar-se à internet. Como influencers. Quem sabe bem-sucedidos.
O incansável Albert dá sustentação à mulher, cercando-a de carinho e compreensão. Mas ele não perde a noção de realidade. Consulta a internet e vê que, para monetizar de forma significativa, um influencer top 10 deve alcançar entre 800 mil e 10 milhões de seguidores (estes são os dados citados por ele).
Cris, além de realizar tutoriais de autoestima com mulheres periféricas, donas de corpos fora dos padrões hegemônicos, e buscar seguidores no espaço digital enfrenta outro desafio — conseguir uma cesariana, seguida de laqueadura, na rede de saúde pública.
Esta será a parte mais substantiva do filme. E a que vai gerar sua sequência mais impactante: o miúdo Albert sobe uma escada de muitos degraus, com a volumosa Cris nos braços. Ela acabava de sair do hospital (e da cesariana) e está de regresso ao lar. Ele garante que irão, devagar, mas com eficiência, até o último degrau, basta que ela segure o pescoço dele.
No debate na Mostra de Gostoso, Victoria Alvarez lembrou que “Albert é praticante de calistenia”, esporte que lhe garante preparo físico para enfrentar os desafios diários. E reafirmou a força motriz de “Tijolo por Tijolo”: mostrar que pessoas que lutam pela sobrevivência nas periferias brasileiras o fazem com muito esforço e criatividade. E distante dos muitos estereótipos que costumam ser associados a elas.
A cineasta lembrou um desses estereótipos: o de que pobre só pensa em ter uma penca de filhos. “No nosso filme, vemos Cristiane Martins Ventura lutando pelo direito à laqueadura, pois ela estava satisfeita com os três filhos. Veio uma gravidez inesperada, gravidez que ela sustentou. Mas tudo fez, para que o sistema público a atendesse e fizesse a laqueadura”.
O pernambucano “Ainda Não É Amanhã”, de Milena Times, forma um duo perfeito com “Levante”, de Lillah Halla, filme que causou frisson em festivais brasileiros e internacionais, ano passado. Afinal, no centro de suas narrativas, está a questão do aborto.
“Levante” mostra uma jovem atleta que, frente a gravidez indesejada, busca formas de abortar. O faz no Brasil e, até no Uruguai. O filme de Lillah é elétrico, vibrante, cheio de cores e ritmos.
O de Milena é construído em tom menor e reflexivo. Os diálogos são contidos e reveladores, o convívio das três gerações de mulheres, silencioso e, poucas vezes, interrompido por tiradas espirituosas da mãe de Janaína, uma cabeleireira muito franca e esperançosa. Ela acredita no êxito da filha, aluna de uma boa universidade privada.
No mesmo final de semana, a Mostra de Gostoso exibiu quatro curtas-metragens. Dois causaram furor. O primeiro, além de prata-da-casa, ambienta-se em território muito familiar aos potiguares — a Vila da Ponta Negra (não nos esqueçamos que o maior cartão postal do estado é a duna atlântica da Praia de Ponta Negra). O nome do curta não é nada curto: “Bati da Vila: Memórias que Azeitam uma Tradição”.
O segundo concorrente ao Prêmio Cascudo — o pernambucano “Hoje Eu Só Volto Amanhã” — vem arrancando aplausos e gerando alegria por onde passa. Afinal, constrói-se pelas ladeiras de Olinda, com foliões em inebriantes volteios carnavalescos.
“Bati da Vila”, de Raquel Cardozo, começa com locução de estilo radiofônico-televisivo. Mas, depois, registra, com boas imagens, a faina diária de um casal, liderado por Dona Nicinha, que colhe bati (ou batiputá, fruto nativo usado na culinária e medicina popular). De forma artesanal, o fruto é processado até resultar no azeite de bati, muito apreciado pelos potiguares.
Das sobras do precioso líquido, restará massa utilizada como pomada caseira. Concluída a projeção dos 13 minutos do documentário natalense, a galera aplaudiu, satisfeita e feliz com o resgate desse conhecimento ancestral da gente da Vila de Ponta Negra.
Os frevos que embalam “Hoje Eu Só Volto Amanhã”, projeto coletivo de uma dezena de animadores, comandado por Diego Lacerda, fez o público da Mostra de Gostoso “dançar” nas espreguiçadeiras do Cinema ao Ar Livre. Sim, dançar sentado, com braços erguidos, como se estivesse numa ladeira de Olinda. Os aplausos aos 24 minutos da deambulação da desencucada Marina, protagonista do filme, pelo Carnaval pernambucano foram, realmente, entusiásticos.
Completaram a noite, dois curtas ficcionais, o paraibano “Axé, meu Amor”, de Thiago Costa, protagonizado por Mãe de Santo Bené (vivida pela Mãe de Santo Renilda) e o baiano “Caluim”, de Marcos Alexandre, protagonizado pela atriz Gabriela Correia. Gabriela interpreta atriz que, submetida a teste de elenco, é tratada de forma bastante desrespeitosa.