Festival de Brasília destaca personagens femininas, como as protagonistas de “Chibo”, “Maremoto” e “Suçuarana”

Foto: Equipe do filme “Suçuarana”, de Clarissa Campolina e Sérgio Borges

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

Três protagonistas femininas, envoltas em questões existenciais e laborais, marcaram a primeira noite da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro — Dora (Sinara Teles), no mineiro “Suçuarana”, Léo (Eloísa Ferreira), no potiguar “Maremoto”, e Dani (Daniela Schmitz), no gaúcho “Chibo”.

O longa protagonizado por Sinara traz na direção a dupla Clarissa Campolina e Sérgio Borges, ambos fundadores do Coletivo Teia (ao lado de Helvécio Marins Jr), e hoje dedicados a novas criações em novas produtoras — a Anavilhana (dela) e a Fractais (dele).

“Suçuarana” — nome que evoca uma onça parda e, também, o Vale Sussuarana (como a canção telúrica de Heckel Tavares e Luiz Peixoto) — é um filme de imensos valores. A começar por seu elenco, composto com atores profissionais (caso de Carlos Francisco e Sinara Teles) e não-profissionais (como o ouro-pretano Kedson Guimarães), fotografia poética e calorosa de Ivo Lopes Araújo e trilha sonora das mais envolventes.

Quem há de resistir aos versos da citada “Sussuarana”, com Roberto Correia na viola erudita e Inezita Barroso escandindo os versos “Faz três sumana/ Que na festa de Sant’Ana/ O Zezé Sussuarana/ Me chamou pra conversar/ Dessa bocada/ Nóis saímo pela estrada/Ninguém não dizia nada// A noite veio/ O caminho estava em meio/ Eu tive aquele arreceio/ Que alguém nos pudesse ver/ Eu quis dizer/ Sussuarana, vamo imbora (…)”. As cantoras Maria Bethânia e Nana Caymmi estão entre os que não resistiram a tanta formosura (em forma de canção).

E é pelas estradas de Minas Gerais que caminha Dora. Uma moça que sonha encontrar o Vale Sussuarana, onde deve viver (se ainda estiver viva) sua mãe, de quem se afastara. Quem sabe lá encontrará o pedaço de terra que lhes cabia. Neste road movie existencial, Dora abandona o cachorro Encrenca, mas só depois de encontrar quem cuide dele.

Em busca de trabalho e pouso, a moça morena, de cabelos fartos e cacheados, irá se deparar com pessoas hostis. Outras, nem tanto. Caso de Ernesto, que a presenteia com casaco capaz de ajudá-la a enfrentar o frio dos caminhos descampados e as noites ao relento.

O cachorro, porém, acabará, magicamente, localizando Dora. Juntos, eles irão parar num vilarejo distante, onde a moça poderá desfrutar de aconchegante vida comunitária. Gente comum, que, de forma gregária, produz sua comida e divide tarefas cotidianas. Mas as inquietações de Dora e a busca pelo Vale Sussuarana a motivarão a seguir pelas estradas de estado, o das Gerais, que vai esgotando seus recursos naturais e vendo muitas fábricas cerrarem as portas. E transformar os trabalhadores, o proletariado, em ‘precariado’. Ou seja, oficiantes de serviços precários.

A dupla de cineastas, Clarissa e Sérgio, inspirou-se, ao conceber o filme, em “A Fera na Selva”, novela de Henry James. Depois de oito anos de trabalho, nasceu o filme “Suaçuarana”, que dialoga, criativamente, com uma das mais impressionantes realizações de Agnès Varda — “Os Renegados” (“Sans Toi, Ni Loi”, 1985), vencedor do Festival de Veneza.

As personagens de Sandrinne Bonnaire e Sinara Teles têm muito em comum. Clarissa Campolina, codiretora e roteirista de “Suçuarana”, assume o diálogo: “Dirigi, com Helvécio Marins, o curta-metragem ‘Trecho’ (2006), sobre um andarilho. Ao protagonista, Libério José da Silva, nós mostramos o filme da Varda, que conhecemos no Fórum Doc-BH e pelo qual nos apaixonamos. Há, sim, diálogo, pois, como o filme de Varda, nós buscamos o documental, o experimental, um jeito mais livre de construir a narrativa”.

Em oito anos de trabalho, “Suçuarana” foi mudando de caminhos, abandonando entrechos (como uma história de amor) até abraçar por inteiro uma personagem que “não está à espera, mas em busca” de algo. Ou seja, não uma pessoa passiva, que aguarda os lances da vida. Mas uma personagem-sujeito, que percorre caminhos, por mais duros que sejam, empreende suas próprias buscas.

No longo processo de roteirização de “Suçuarana”, Clarice contou com a colaboração de Rodrigo Oliveira. E, durante o debate brasiliense, lembrou que “muito do filme veio do processo de montagem (a cargo de Luiz Pretti)”.

Além do diálogo com Agnès Varda, Clarissa citou, também, a cineasta norte-americana Kelly Reichardt, diretora do instigante “First Cow – A Primeira Vaca da América” (2021). E, ainda, “Arábia”, de Afonso Uchoa e João Dumans, vencedor do Festival de Brasília (assim como o primeiro longa de Sérgio Borges, “O Céu sobre os Ombros”). Dumans, inclusive, atuou como consultor de roteiro de “Suçuarana”.

O curta “Maremoto”, das jovens Juliana Bezerra e Cristina Lima, chegou ao Festival de Brasília direto do Rio Grande Norte. Já “Chibo”, de Gabriela Poester e Henrique Lahude, foi realizado no outro extremo do país, o Rio Grande do Sul.

O primeiro (”Maremoto”) se passa na pequena São Miguel do Gostoso, balneário potiguar, onde as águas atlânticas emolduram vivências urbanas muito semelhantes às praticadas por moradores de grandes cidades. A paixão pelas motos e o prazer de divertir-se ao som de sacudidos “Paredões” são alguns desses hábitos metropolitanos.

A jovem Léo é moça feita, embora com cara de adolescente, que dá duro numa oficina de consertos de quadriciclos e motos. Antes desse ofício, ela acompanhava o pai em mergulhos (por apneia, portanto, sem equipamentos) no mar. Mas parou de mergulhar, pois já não conta com a companhia do pai, agora enfermo. A volta de seu irmão, Maço, de posse do GPS da embarcação, vai alterar a rotina de Léo. Ele tentará convencê-la a fazer novo mergulho em busca de tesouro da família.

O filme resultou do trabalho conjunto de dois coletivos: o Nós do Audiovisual, de Gostoso, e o Oeste, de Assis, interior de São Paulo. E de produção da Heco, empresa de Eugênio Puppo e Matheus Sundfeld, responsáveis pela Mostra de Cinema de Gostoso.

Puppo convidou dois dos integrantes paulistas do Velho Oeste (paulista) a ministrarem oficinas para a moçada de São Miguel do Gostoso. Guilherme Xavier e Daniel Rone ( “Ainda Existirão Robôs nas Ruas do Interior Profundo”) supervisionaram o filme. Xavier assinou a direção de fotografia e a montagem. Rone atuou no roteiro coletivo e na preparação dos atores.

“Chibo” iniciou sua trajetória nos festivais pela cidade de Gramado. Já de saída, ganhou o principal prêmio da Mostra Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

O filme é definido por seus dois realizadores como um documentário em diálogo aberto com a ficção. A trama se desdobra às margens do Rio Uruguai, na fronteira entre o Rio Grande do Sul e a Argentina, onde vive a família Schmitz Oliveira. Pai (ausente), mãe (onipresente) e duas filhas (a mais velha, a adolescente Dani, e a mais nova, Daiane) se valem da prática do “chibo”. Ou seja, da travessia clandestina de mercadorias entre os dois países. Dessa prática retiram seu sustento.

Com grande sensibilidade, Gabriela e Henrique nos mostram a paisagem humana e física da região (cujo epicentro é o município de Tiradentes do Sul). Dani acaba de terminar namoro com um jovem da região de Misiones, na Argentina. Está concluindo o ciclo ginasial e vê chegada a hora de tomar novas decisões.

A irmã mais nova, muito apegada a ela, deseja que Dani fique ali, na beira do Rio Uruguai. Já a mãe, Roselete Schmitz, prefere ver a filha cuidando de seu futuro, estudando e trabalhando na cidade grande. Afinal, para ela, quem moureja em zonas rurais e cidades pequenas são pessoas mais velhas e sem alternativas. Os jovens — sustenta, com firmeza — têm mais é que enfrentar desafios, tentar a vida nas metrópoles.

A dupla gaúcha continua empenhada em mostrar o Brasil que faz fronteira com a América Platina. Por isso, já prepara um primeiro longa-metragem tendo Tiradentes do Sul e seu núcleo de cinema como forças propulsoras.

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