Por Maria do Rosário Caetano

O Brasil enviará três longas-metragens à vigésima-nona edição do Fespaco (Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão), que acontece em Uagadugu, capital de Burkina Faso, o antigo Alto Volta.

O país de 15 milhões de habitantes, terra natal  do cineasta Idrissa Ouedraogo (1954-2018) – diretor de “Tilai” e  incentivador histórico do evento – orgulha-se de sediar o Fespaco, considerado por muitos “o mais importante da África”.

A abertura do Fespaco acontecerá nesse sábado, 22 de fevereiro, no Estádio Nacional (espaço dedicado a competições esportivas, locação que revela seu alcance popular), e prossegue até o dia primeiro de março. Acorrem à festa – além dos convidados nacionais e internacionais – populares de diversas faixas etárias (adultos, adolescentes e até crianças).

O drama histórico “Malês” (foto), de Antônio Pitanga, que recria a rebelião de escravizados de origem muçulmana, na Bahia do século XIX, representará o Brasil na competição de longas ficcionais (produções da diáspora). Ou seja, criações de diretores de origem africana, mas realizadas fora do território continental de Lumumba e Mandela. E de cineastas da grandeza de Ousmane Sembene, Djibril Diop Mambéty e Souleymane Cissé.

Mais dois longas – ambos documentais – completam o quadro representativo do cinema afro-brasileiro: “Othelo, o Grande”, de Lucas Rossi, e “Quem é essa Mulher?”, de Mariana Jaspe. A cinebiografia do ator de “Rio Zona Norte” e “Macunaíma”, de alta carga poética e imagética, participará da secção Panorama. O longa sobre Maria Odília Teixeira, reconhecida como “a primeira médica negra do Brasil”, tem importância mais temática que estética. Participará da Semana da Crítica.

No terreno do curta, Mariana Jaspe marca presença com “Deixa”, ficção protagonizada por Zezé Motta, que vive relacionamento banhado em erotismo com um jovem (Dan Ferreira), no dia em que seu companheiro (Wilson Rabelo) regressará ao lar, depois de anos de cárcere. Completam o time de filmes de curta duração o ficcional “Zion”, de Licínio Januário, e a animação “Jussara”, de Camila Ribeiro. Os dois estão em mostra competitiva.

O produtor Flávio Tambellini está feliz com a seleção de “Malês” para o festival burquinense. “Antônio Pitanga estará no Fespaco para exibir seu segundo longa-metragem, que tive a satisfação de produzir”. Será “muito importante para a equipe técnica e artística, que realizou esse filme, ver Pitanga num festival que lhe permitirá reconectar com suas raízes africanas”. Como produtor, Tambellini torce para que “possamos conseguir distribuição nos países da África”.

“Othelo, o Grande”, de Lucas Rossi

“Othelo, o Grande”, vencedor na categoria melhor documentário do Festival do Rio e detentor de muitos outros reconhecimentos, se fará representar por seu diretor, Lucas Rossi, e pela pesquisadora Beth Formaggini. Também cineasta, Beth conta que sempre sonhou conhecer o Fespaco.

“Desde que soube de sua existência (o festival foi criado em 1969) quis estar lá”. A oportunidade surge agora. “Fico feliz em representar este documentário maravilhoso, de um realizador jovem e muito criativo, que me convidou para ajudá-lo na pesquisa. Afinal, trata-se de filme que trabalha com imagens de arquivo”.

“É um reconhecimento e tanto para nós, pesquisadores de imagens”. E, avisa, “Lucas e eu vamos aproveitar nossa participação no Fespaco para sensibilizar emissoras de TV, que possam se interessar por nosso filme e comprá-lo para exibição em emissoras na África”. E, claro, “para ver a reação dos espectadores africanos a um filme que registra o trabalho criativo de um artista da diáspora. Um mineiro-carioca genial, o grande, imenso, Othelo”.

O Brasil já participou de muitas edições do Fespaco, evento bienal, com filmes de Zózimo Bulbul (“Abolição”), Raquel Gerber (“Ori”), Jeferson De (“Bróder”), Paulo Betti (“Cafundó”, protagonizado por Lázaro Ramos), Joel Zito Araújo (com o documentário “Fela Kuti”, sobre o grande músico nigeriano), entre outros. Mas o interesse da mídia brasileira pelo Festival Pan-Africano de Cinema e TV burquinense continua muito reduzido.

Paulo Betti não se esquece da primeira vez que foi ao Fespaco. “Fui sozinho e fiz um documentário para o Canal Brasil, ‘Tão Longe, Tão Perto’, de 63 minutos”. O ator-diretor lembra o que viu e sentiu: “os atabaques soavam antes de cada sessão! Na entrada do cinema principal havia uma jaula com uma onça! Vi filmes incríveis. Emprestei pra Joel Zito (Araújo) uma coleção de DVDs com vinte desses filmes”.

“Tão Perto, Tão Longe”, que Paulo Betti realizou em parceria com Vik Birkbeck, começa com brasileiros comuns que, de forma errante, buscam na memória seus conhecimentos possíveis sobre a África. Alguns nem se lembram dos nomes dos países que compõem o continente. Outros, sim! Embora numericamente minoritários, guardam informações sobre a África e contam que gostariam de conhecê-la”.

Já no território burquinense, Betti conversa com pessoas nas ruas e, principalmente, com cineastas do Marrocos, de Burquina Faso, da África Portuguesa e da França, a metrópole europeia. Entre os brasileiros, estabelece diálogo com Zózimo Bulbul (que, emocionado, lembra o Estádio Nacional lotado para a abertura do Fespaco), Raquel Gerber, Carmen Luz e Jeferson De”.

Uma estrela aparece, generosa, no documentário: o afro-americano Danny Glover, ator famoso e militante político-cultural, casado com uma brasileira. Vemos muitos trechos de filmes que passaram pelo Fespaco. E a cerimônia de encerramento, de 2003, com fogos de artifício e entrega do Étalon d’Or (Garanhão de Ouro) para o malinês Abderhamane Sissako (“Heremakono – Esperando a Felicidade”).

Num trecho de “Tão Perto, Tão Longe”, um dos cineastas africanos diz que “a câmara (seu instrumento de trabalho) é a lembrança do agora”.

O diretor do filme, Paulo Betti, segue na condição de grande entusiasta do Fespaco: “Eu achava que a África fosse uma continuação da Vila Leão, bairro negro, quase um quilombo, onde fui criado em Sorocaba, interior de São Paulo”. Antes de viajar, o (diretor de fotografia) Lauro Escorel me perguntou se eu havia me vacinado? Só aí caí em mim e vi que ia me deslocar até outro continente”.

O diretor de “Cafundó”, longa ficcional sobre João Camargo, um “espírito de cura” do interior paulista, evoca suas lembranças recorrentes do Fespaco: “fiquei muito impressionado com a abertura e encerramento do festival, realizada num estádio de futebol”. E com a cidade de Uagadugu toda tomada pela temática do cinema, com sua Praça do Cineasta, onde estão colocadas estátuas em homenagem a grandes nomes do audiovisual africano”.

O documentário de Paulo Betti pode ser acessado no endereço https://vimeo.com/1037589835/5f8e0f55c8?share=copy.

O Brasil no Fespaco:

LONGAS-METRAGENS

. “Malês” (RJ), de Antônio Pitanga (competição de longas ficcionais)
. “Othelo, o Grande”, de Lucas Rossi (Mostra Panorama)
. “Quem é Essa Mulher?” (BA), de Mariana Jaspe (Semana da Crítica)

CURTAS-METRAGENS

. “Deixa”, de Mariana Jaspe (competição de curta- ficção)
. “Zion”, de Licínio Januário (competição de curta – ficção)
. “Jussara”, de Camila Ribeiro (competição curta de animação)

SÉRIE DE TV

. “Origem”, de Emília Sanchez (série, no segmento Fespaco VR – Realidade Virtual)