Arnaud Desplechin presta tributo às salas de cinema e aos filmes que conformaram sua sensibilidade de espectador!
Por Maria do Rosário Caetano
O prolífico cineasta francês Arnaud Desplechin, de 64 anos, autor de filme memorável – “Reis e Rainha”, com Emmanuelle Devos e Mathieu Amalric, seus atores-fetiche –, está de volta ao circuito exibidor brasileiro. E dessa vez com um canto de amor ao mundo das imagens. A começar pelo título: “Loucos por Cinema!”. Com ponto de exclamação e tudo, seja no título original (“Spectateurs!”), seja na recriação da distribuidora Filmes do Estação.
Filho espiritual e estético dos formuladores do “Cinema de Autor”, Desplechin esclarece que deixou de lado, mesmo que temporariamente, os mestres, para buscar “uma representação do que acontece com os espectadores comuns”. E, assim, propor reflexão sobre questões que o estimulam: “O que significa para nós assistir a filmes? Frequentar salas de cinema “nos afeta inconscientemente?”
“Loucos por Cinema!” estreia nessa quinta-feira, 13 de março, no circuito de arte brasileiro. O filme iniciou sua trajetória no Festival de Cannes, ano passado. Nascera de proposta documental, mas seu diretor-roteirista convenceu seus produtores que o ideal seria incorporar também a ficção. E, como não poderia deixar de ser, convocou para o elenco o mais fiel de seus parceiros — Mathieu Amalric, intérprete de seu alter-ego, Paul Dédalus. O ator empresta sua voz e faz participação especial (e fugaz) na trama.
O diretor de “Roubaix, une Lumière”, filme ambientado em sua cidade natal, lembra que “todos nós temos nossos próprios hábitos” como frequentadores de salas escuras: “alguns preferem sentar-se na frente, outros atrás; alguns choram no cinema, outros preferem ficar com os olhos secos. No entanto, formamos uma comunidade”. A dos cinéfilos.
Ele, que tem em Alain Resnais e François Truffaut suas referências maiores, detecta nos habitués de salas de cinema “uma (certa) solidão” e confessa o cultivo de “algumas idiossincrasias”.
Ao realizar “Loucos por Cinema!”, Desplechin quis “acolher e permitir que qualquer inclinação do espectador fosse projetada na imagem”. Escolheu, para cumprir sua “mission spectateurs!”, uma plêiade de filmes (“cults” ou blockbusters), que ajudaram a construir sua sensibilidade artística e sua imensa paixão pelo cinema.
Desde a infância, o garoto, como seus contemporâneos franceses, só pensava em filmes, cineclube, leituras e debates cinéfilos. Por isso, o veremos no cinema, ainda de calças curtas, ao lado da irmã, conduzidos ambos pela amorosa avó. O filme escolhido – “Fantomas” (André Hunebelle, 1964) – o encantou, mas o prazer foi interrompido pelo medo da irmã. O jeito foi ir embora, contrariado, já que a avó nada pôde fazer para convencer a neta a permanecer na sala.
Noutra sequência, o jovem alter-ego de Desplechin paquera uma colega, que se faz acompanhar de simpática amiga. A possível futura namorada, tímida, não deixa o namoro engatar. Ele acabará encontrando na amiga o par ideal, com quem trocará beijos e impressões sobre filmes.
Ao celebrar as salas exibidoras, Desplechin nos oferecerá flashes da história do seu amadurecimento como cinéfilo. Às vezes, com maestria e encantamento. No momento mais belo do filme, ele decupa uma das onipresentes paisagens parisienses de “Os Incompreendidos” (Truffaut, 1959), tendo a Torre Eiffel como referência.
O cineasta e roteirista nos encantará, também, com deliciosa sessão, no Cineclube escolar, do vanguardista “As Pequenas Margaridas”, da tcheco-eslovaca Vera Chytilová. Comédia em dose dupla. No filme de 1968 e no doc-fic desplechiniano.
Para Ingmar Bergman e “Gritos e Sussurros”, o filme erguerá um altar de adoração. O adolescente mentirá a idade (tem 14 e o filme sueco era indicado a maiores de 16), pois não admite perder o filme por nada desse mundo. Por sorte, contará com a cumplicidade da moça da bilheteria. E, claro, evocará também outra lenda do cinema escandinavo — o mestre Carl Dreyer.
Georges Sadoul (1904-1967), o maior defensor (e difusor) do cinema do Leste Europeu nas telas da França, será citado como fonte de algumas das descobertas do jovem cinéfilo. “O Homem com a Câmara”, o megaclássico soviético de Dziga Vertov, terá replicadas algumas de suas mais geniais sequências.
E, claro, haverá espaço para os documentários pioneiros dos Irmãos Lumière. E, para a igualmente pioneira do cinema feminino, a francesa (e estadunidense) Alice Guy (com “Baignade dans un Torrent”, de 1897).
O Brasil marcará presença com breve citação, impressa no cartaz de “Antônio das Mortes” (“O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, que rendeu a Glauber Rocha o prêmio de melhor direção em Cannes, 1969).
O cinema negro, vindo de sua matriz, o continente africano, e personagem afro-francês terão espaço significativo na narrativa. Na tela, com “Samba Traoré”, de Idrissa Ouedraogo. E, na encenação, com o ator Salif Cissé, que incorpora um cinéfilo apaixonado, que encaminha-se para o métier cinematográfico. E, sendo Deplechin um cineasta de origem judaica, ele – além de referenciar o monumental “Shoah”, de Claude Lanzman (1925-2018) – irá entrevistar a filósofa Shoshana Felman.
Os mais cabeçudos hão de gostar da presença de Felman, e também da evocação ao intelectual norte-americano Stanley Cavell (1926-2018), autor de livros de cinema cultivados por Desplechin, em especial, o que estuda o “recasamento” em diversos filmes made in USA (“Em Busca da Felicidade: A Comédia Hollywoodiana do Novo Casamento”). Esse estudo cavelliano foi uma das matrizes conceituais de “Os Fantasmas de Ismael”, no qual Mathieu Amalric vive variante do “recasamento”, em trama que conta com a presenças do onipresente Mathieu Amalric e das atrizes Marion Cottilard e Charlotte Gainsbourg.
Claro que filosofia e reflexão podem (e devem) fazer parte de filmes que pretendem ir além do mero entretenimento. Mas faltou ao cineasta, em sua declaração de amor à cinefilia, encontrar forma mais, digamos, cinematográfico-cativante para esses momentos de sua híbrida narrativa. Soluções capazes de nos envolver, a nós os “Espectadores!”, cúmplices dessa viagem empreendida por tantos “loucos por cinema!”.
“Spectateurs!” perde, nesses momentos — o das conversas “cabeçudas” — a cadência, o ritmo. O que não significa que os cinéfilos irão se arrepender de ter saído de casa, enfrentado a violência urbana, pagado ingresso, pipoca e estacionamento caros. Não! Apesar desses senões, eles desfrutarão de verdadeiro banquete de imagens ao longo de 88 minutos. Imagens — lembrou Desplechin — que custaram muitos esforços e grana para a devida compra de Direitos Autorais.
Loucos por Cinema! | Spectateurs!
França, 2024, 88 minutos
Direção e roteiro: Arnaud Desplechin
Elenco (atores e entrevistados): Louis Birman, Dominique Païni, Clément Hervieu-Leger (leitor de Barthe), Françoise Lebrun, Sandra Laugier, Olga Milshtein, Milo Machado-Graner, Sam Chemoul, Marilou Poujardie, Salomé Rose Stein, Micha Lescot, Shoshana Felman, Kent Jones, Salif Cisse e Mathieu Amalric
Fotografia: Noé Bach
Música original: Grégoire Hetzel
Edição: Laurence Briaud
Distribuição: Filmes do Estação
FILMOGRAFIA
O cineasta Arnaud Desplechin nasceu em Roubaix, no norte da França. Formou-se em cinema no IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, hoje Femis). Além de dirigir mais de uma dezenas de longas-metragens, dirigiu peças, como “Angels in America” (para a Comédie Française) e séries de TV (“Em Terapia” e “The Forest”). Matteu Amalric atuou em nove de seus filmes e Emannuelle Devos, em sete.
• 2024 – “Loucos por Cinema!”
• 2022 – “Brother and Sister”
• 2021 – “Deception”
• 2019 – “Oh Mercy!”
2017 – “Os Fantasmas de Ismael”
• 2015 – “Três Lembranças de minha Juventude” (My Golden Days Jacques Prévert)
• 2012 – “Jimmy P. (Psychoterapie d’un Indien des Plaines)”
• 2008 – “Um Conto de Natal”
• 2007 – “L’Aimée” (documentário)
• 2004 – “Reis e Rainha” (Prêmio Louis Deluc, em Veneza)
• 2003 – “Dans la Compagnie des Hommes”
• 2002 – “Roubaix, une Lumière
• 2000 – “Esther Kahn”
• 1996 – “Como Eu Briguei por minha Vida Sexual”
• 1992 – “A Sentinela”
• 1991 – “La Vie des Morts” (média-metragem, premiado com o Troféu Jean Vigo, na Semana da Crítica, em Cannes)
ALGUNS DOS FILMES CITADOS POR DESPLECHIN
. “Arrivée Train à la Ciotat”, “Champs Elysées” e “Passage d’un Tunnel em Chemin” – Acervo do Instituto Lumière
. “Dickson Experimental Sound Film” e “Caicedo With Pole”, ambos de W.K-L Dickson, e “My Irwin Kiss”, de Edison Manufacturing
. “Iola’s Promise”, de D.W. Griffith
. “Napoleón”, de Abel Gance
. “Safety Last”, de Newmeyer e Taylor (com Harold Loyd)
. “Sigmund Freud at Grundlsee (1930-1932)
. “O Tigre de Bengala”, de Fritz Lang
. “Crepúsculo de uma Raça”, de John Ford
. “Paraiso Infernal”, de Howard Hawk
. “Mouchette”, de Robert Bresson
. “Déjà S’Envolve la Fleur Maigre”, de Paul Meyer (Cinemateca Belga)
. “Persona”, de Ingmar Bergman
. “Le Petit Soldat”, de Godard
. “La Bataille du Rail”, de René Clement
. “Voltando para Casa”, de Zhang Yimou
. “A Touch of Zen”, de King Hu
. “Ran”, de Akira Kurosawa
. “Intriga Internacional”, de Hitchcock
. “Falstaff”, de Orson Welles
.”Les Enfants Terribles”, de Jean Pierre Melville
. “Cotton Club” e “Drácula”, ambos de Coppola
. “Exterminador 2”, de James Cameron
. “Killer of Sheep”, de Charles Burnett
. “Journey into Light”, de Stuart Heisler
. “O Franco Atirador”, de Michael Cimino
. “A Época da Inocência”, de Scorsese
. “Aliens”, de James Cameron
.“Broken Arrow”, de John Woo
. “Duro de Matar”, de John McTierna
. “Point Break” (Caçadores de Emoção), de Kathryn Bigelow
. “Minority Report”, de Spielberg
. “King Kong”, de John Guillermin (com Jessica Lange)