Centro MariAntonia-USP exibe dez filmes sobre o período ditatorial e debate “Cachorros” com Marcelo Godoy

Foto: “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil”, de Carol Benjamin

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta Walter Salles destacou, em entrevista ao Canal Bob Fernandes, três filmes brasileiros com os quais dialogou durante os sete anos de realização do festejado “Ainda Estou Aqui”: a ficção “Nunca Fomos Tão Felizes”, de Murilo Salles, e os documentários “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil”, de Carol Benjamin, e “Setenta”, de Emilia Silveira.

Em conversa digital com o jornalista e crítico Sérgio Augusto, Walter Salles, que ainda não recebera o Oscar internacional da Academia de Hollywood, destacou o quanto estes três filmes ajudaram, a ele e a sua equipe, a reconstituir o tempo histórico vivido pelo ex-deputado Rubens Paiva, encarcerado, torturado e morto por forças militares, em 1971, e por sua companheira, a dona de casa (depois advogada) Eunice Paiva.

Dois dos filmes lembrados pelo cineasta oscarizado – o de Emilia Silveira e o de Carol Benjamin – fazem parte da mostra Memórias Encontradas: Entre a Solidariedade e a Perseguição, organizada pelo Centro Universitário MariAntonia, da USP, em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, o coletivo Linhas de Sampa e a Comissão pela Memória, da Argentina. Coube a este organismo, sediado em Buenos Aires, ceder acervo de imagens e documentos para importante exposição, que ocupará as dependências do centro universitário (visitação gratuita até 30 de março). A abertura do evento se dará nessa sexta-feira, 13 de março.

Marcos Napolitano, professor da Universidade de São Paulo, por sua vez, lembrou – em “live” promovida pelo Departamento de História da USP – que o cinema tem funcionado como poderoso “amplificador de memória”. Por sua capacidade de dialogar com o grande público e ser exibido em cinemas e emissoras de televisão, tem alcance bem mais amplo, por exemplo, que estudos de natureza acadêmica ou livros. Basta comparar o número de brasileiros atingidos pelo texto memorialístico de Marcelo Rubens Paiva, base do roteiro do filme, com as bilheterias de “Ainda Estou Aqui”. Até a segunda-feira, 10 de março, o Boletim Filme B, banco de dados sobre o mercado audiovisual brasileiro, registrava 5.676.776 ingressos vendidos no circuito brasileiro. Um espanto para um drama político.

Antes de promover aguda análise de “Ainda Estou Aqui” e chamar atenção para o significado da fixação do olhar de Eunice, já vítima de Alzheimer (Fernanda Montenegro), sobre imagem mostrada fugazmente na TV, Napolitano registrou que longas-metragens brasileiros realizados sobre o período ditatorial (1964-1984), concretizaram-se, num primeiro momento, na perplexidade do intelectual diante do golpe (destaque para “O Desafio”, de Paulo Cezar Saraceni, e “Terra em Transe”, de Glauber Rocha).

Numa segunda fase, foram realizados “filmes inseridos na modernização conservadora”. Daí, partiu-se a terceira fase – aquela que registrou a “luta armada”. Até chegar às produções que passaram a se ocupar do “trauma”.

Boa parte dos filmes programados como complemento da exposição Memórias Encontradas: Entre a Solidariedade e a Perseguição, do Centro MariAntonia, insere-se no período da Luta Armada.

“Setenta”, de Emília Silveira, recupera a história de 70 presos políticos, oriundos de diversas organizações de esquerda, libertados do cárcere e exilados no Chile, em troca do embaixador (sequestrado) suíço, Giovanni Enrico Bucher. Quarenta anos depois, Emilia entrevistou muitos dos que partiram rumo ao Chile de Allende e construiu sólido painel das experiências vividas. Vale lembrar que o exílio chileno foi breve, pois o governo da Unidade Popular, liderada por Salvador Allende, foi deposto por golpe comandado pelo General Pinochet. E os exilados tiveram que buscar novo acolhimento em outros países.

A atriz (de “Henry & June” e “Pulp Fiction”) e cineasta (“Capitães de Abril”) luso-francesa Maria de Medeiros, assina o documentário “Repare Bem”. Que registra a prisão, agonia e morte de Eduardo Leite, o Bacuri, depois de 109 dias de tortura no DOPS paulistano, comandado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Sua história é lembrada pela companheira Denise Crispim, presa e torturada grávida, e pela filha Eduarda, que o pai não viu nascer.

“Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil”, de Carol Benjamin, é, sem dúvida, o mais premiado dos filmes escalados pela Mostra da MariAntonia. Representou o Brasil no IDFA, o influente Festival de Documentários de Amsterdã, do qual recebeu menção honrosa (mesma láurea recebida do Festival É Tudo Verdade). Foi, ainda, eleito o melhor filme documental do Indian Cine Film Festival e o escolhido do público no Festival Infinitto, realizado nos EUA. Passou, também, pela programação oficial do Festival de Lima, no Peru, de Direitos Humanos, na Suíça, e pelo Festival Tempo, na Suécia.

A jovem Carol Benjamin revela história de três gerações de sua família, atravessadas pela ditadura militar brasileira. Seu avô era coronel do Exército. Seu pai, o militante político César Benjamin, preso aos 17 anos, foi mantido em cela solitária por três anos e meio (somados a mais dois em prisão comum). Graças ao incansável ativismo de sua mãe (avó de Carol), a dona de casa Iramaya Benjamin, o prisioneiro acabaria saindo do cárcere brasileiro rumo ao exílio na Suécia. Transformada em incansável defensora da anistia, Dona Iramaya conseguiu sensibilizar a Secção Sueca da Anistia Internacional para o caso do jovem César Benjamin, reconhecido como prisioneiro de consciência.

Foi em arquivos suecos que Carol encontrou parte das imagens e documentos revelados por seu filme. Inclusive registros do encontro dos irmãos César e Cid Benjamin, também militante (e exilado) político. Há muito em comum na luta de Dona Iramaya e Eunice Paiva.

Silvio Tendler, incansável documentarista dedicado a desvendar zonas sombrias da história contemporânea brasileira, participa (da Mostra da MariAntonia) com “Jango”, apaixonante retrato do presidente derrubado pelo golpe militar de 1964, e com substantivo registro (130 minutos) da luta de advogados progressistas que enfrentaram o arbítrio.

Outro cineasta de importante trajetória no documentário político – o paraense-paulista Renato Tajapós, ele mesmo combatente da luta armada – mostra, na mesma rua em que se deram os fatos febris de 1968 (e agora sedia a expô-mostra), o longa “A Batalha da Maria Antônia”. Não confundir com a ficção de Vera Egito (“A Batalha da Rua Maria Antônia”), vencedora do Festival do Rio 2023, com lançamento previsto no circuito comercial no final desse mês (27 de março).

“Água, Açúcar e Sal”, de João Paulo Jabur

Entre os curtas-metragens, um filme que renasceu do oblívio (já que foi feito amadoristicamente, em Super-8, “bitola perecível”) pode, agora e felizmente, chegar aos espectadores. Trata-se de “Água, Açúcar e Sal”, de João Paulo Jabur, realizado com coletivo de presos e apoiado, em seu renascimento, pelo Centro de Pesquisas “Práticas de Contra-Arquivo” da PUC-RJ.

A história deste filme constitui-se em argumento privilegiado de um possível e fascinante longa-metragem.

Confiram: em 1979, vésperas da votação da Lei da Anistia, equipe mínima filma, no Presídio Frei Caneca-Rio, greve de fome de 14 presos políticos (entre eles, Nelson Rodrigues Filho e Alex Polari). Tudo se tornou possível graças a uma artimanha: Jabur, sob o pretexto de festejar o aniversário de um dos encarcerados, introduziu uma câmara Super-8 no presídio. E o que filmou nada tinha a ver com o “Parabéns a você!”, mas sim com ato de protesto dos 14 encarcerados (a greve durou 32 dias). Eles se insurgiam contra as limitações do projeto de anistia, que então mobilizava amplas camadas da sociedade brasileira.

O título do filme — raro entre os que evocam o período — evoca os ingredientes da composição do soro ingerido pelos grevistas (água, acúcar e sal). O documentário agora resgatado dura 15 minutos.

 

Memórias Encontradas: Entre a Solidariedade e a Perseguição
Mostra de Filmes sobre o Período Ditatorial e Exposição de fotografias e documentos
Data: 13 a 30 de março
Local: Centro MariAntonia – Rua Maria Antônia, 294, Vila Buarque, São Paulo/SP – Próximo às estações Higienópolis e Santa Cecília do metrô
Visitação: terça a domingo e feriados, das 10h às 18h (acesso gratuito)
Informações: https://www.mariantonia.prceu.usp.br/ditadura-chilena-sao-tema-de-exposicao-gratuita ou pelo telefone (11) 3123-5202

 

PROGRAMAÇÃO

Sexta-feira, 13 de março

Abertura às 16h, com exibição do filme “Memórias e Exílio”, de Silvio Tendler, e de vídeo com depoimentos de ex-exilados

17 horas – Mesa de apresentação da exposição “Memórias Encontradas: Entre a Solidariedade e a Perseguição”, seguida de visita guiada

8h30 – Debate sobre o livro do projeto “Heroínas dessa História” (coordenação do IVH – Instituto Vladimir Herzog)

Dia 17 (segunda-feira)

15h – “15 Filhos” (1996, 19 minutos), documentário de Maria Oliveira e Marta Nehring, seguida de mesa-redonda “Tortura, Extermínio e Desaparecimento na Ditadura”, com o jornalista e pesquisador Marcelo Godoy, autor do livro “Cachorros”, e da diplomata aposentada Silvia Wihtaker, autora de “Relações Exteriores: Representações Diplomáticas a Serviço dos Órgãos de Informação e Repressão”.

Dia 18 (terça-feira)

15h – “Jango”, de Silvio Tendler (documentário, 1984, 117 minutos)

17h – “A Batalha da Maria Antônia”, de Renata Tapajós (documentário, 2013, 76 minutos)

Dia 19 (quarta-feira)

15h – “Repare Bem”, de Maria de Medeiros (documentário, 2012, 95 minutos). Com participação presencial da atriz e cineasta Ana Petta

17h – “Setenta”, de Emilia Silveira (documentário, 2013, 96 minutos). Com participação presencial da realizadora carioca

Dia 20 (quinta-feira)

15h – “Cadê Heleny?”, de Esther Vital (documentário, 2022, 29 minutos)

15h30 – Roda de Bordados com o Coletivo Linhas de Sampa

17h – “Advogados Contra a Ditadura”, de Silvio Tendler (documentário, 2014, 130 minutos)

Dia 21 (sexta-feira)

15h – “Fico Te Devendo Uma Carta sobre o Brasil”, de Carol Benjamin (documentário, 2019, 88 minutos)

16h30 – “Água, Açúcar e Sal”, de João Paulo Jabur, com coletivo de presos e o Centro de Pesquisas “Práticas de Contra-Arquivo” da PUC-RJ (documentário, 1979, 15 minutos)

17h – “Deslembro”, de Flávia Castro (ficção, 2018, 105 minutos)

EXPOSIÇÃO

A expô “Memórias Encontradas: Entre a Solidariedade e a Perseguição” traz a história de homens e mulheres que, devido ao golpe de Pinochet (11 de setembro de 1973), buscaram refúgio na Embaixada da Argentina, em Santiago do Chile. Entre os perseguidos estavam muitos brasileiros. A mostra de fotos conta com curadoria da Comissão pela Memória, organismo público autônomo e autárquico, criado na Argentina, para promover e implementar políticas públicas de memória e Direitos Humanos. A Comissão é presidida pelo Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel e pela historiadora Dora Barrancos.

Linhas de Sampa – Este coletivo, dedicado ao ‘bordado ativista’, reúne mulheres que lutam por democracia e Direitos Humanos. O grupo se formou em abril de 2018, devido à perseguição aos movimentos progressistas e ao crescimento do número de assassinatos de ativistas e lideranças (como Marielle Franco). O Coletivo atua nas ruas de São Paulo promovendo rodas (e oficinas) de bordado para, enquanto exercem o ofício, debater temas da atualidade social e política brasileira.

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