O amazonense “Enquanto o Céu Não me Espera” entra na lista dos favoritos ao prêmio máximo do Festival de Brasília

Foto: Equipe de “Enquanto o Céu Não me Espera” © Humberto Araújo

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

Dois anos atrás, um “ovni acriano” identificado como “Noites Alienígenas” baixou no Festival de Gramado e triunfou na Festa dos Kikitos. O cinema da Amazônia fazia história.

Na quarta noite da quinquagésima-sétima edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, um “ovni amazonense” pousou na Sala Vladimir Carvalho do Cine Brasília. E o fez batizado com título misterioso — “Enquanto o Céu Não me Espera”.

Surgiu, pois, o filme, dirigido pela amazônida Christiane Garcia, que merece disputar os principais troféus Candango com “Suçuarana”, da dupla mineira Clarissa Campolina e Sérgio Borges. A menos que a “A Fúria”, de Ruy Guerra e Luciana Mazzotti, e o queer “Salomé”, de Andre Antonio, cheguem-chegando. E baguncem o quadro de expectativas.

“Enquanto o Céu Não me Espera” marca a vigorosa estreia, na ficção, de Christiane Garcia, nascida e criada na ribeirinha Maués, no interior do Amazonas. Antes, ela havia dirigido filmes documentais.

Seu primeiro longa-metragem se resume em sintéticos (e silenciosos) 80 minutos. Não há trilha sonora construída com temas instrumentais ou cantados. Só ouvimos os sons da floresta e do rio, um louvor evangélico e versão do hit “A Casa do Sol Nascente” (interpretada por Luneta Mágica) durante os créditos finais. Christiane Garcia, também argumentista e roteirista do filme, constrói, com sua profunda vivência das entranhas da Amazônia, seu “Vidas Secas”, ou melhor, seu “Vidas Líquidas”.

Como no filme de Nelson Pereira dos Santos, acompanhamos a história de uma família, que passa por imensas dificuldades materiais. Vicente, o pai (Irandhir Santos), Rita, a mãe (Priscilla Vilela) e os três filhos lutam pela subsistência, colhendo a juta que será transformada em fibra têxtil.

A família graciliânica, vítima da seca, migra do Norte para o Sul brasileiro. A de “Enquanto o Céu Não me Espera” vive numa casa isolada, cercada de água e vegetação por todos os lados, no coração da Amazônia.

Rita quer deixar aquele fim de mundo e migrar para Manaus. Vicente aferra-se à casa, seu único bem material, e à memória dos pais, impressa em fotografia pela qual tem imenso respeito e zelo de filho devotado.

Os três meninos ficam entre os dois desejos. O do pai, obstinado, e o da mãe, desejosa de ver os filhos na escola, e não naquele mundão perdido, sob o império soberano da Natureza. A colheita da juta, sujeita aos desígnios da água, exige esforços descomunais. E um acidente, ocorrido nas águas abundantes, acabará causando profundo abalo a esse isolado núcleo familiar. Que iniciará, então, sua desintegração.

Uma figura solar, a jovem prostituta Geisiane (Ágatha Dinelli), que busca clientes em barco de rabeta (com motor) pelos rios, tentará iluminar aquelas vidas tão dilaceradas pelas privações materiais e afetivas. Mas não será fácil. Mesmo assim, ela cumprirá o papel de um “anjo” naquele mundo de trabalho insano, de desejos reprimidos e em desagregação. E Geisiane será essencial aos destinos dos filhos mais novos, Francisca (Jully Fabielly), cujo maior sonho é frequentar a escola, e Franciney (Cauã Eduardo), que deseja reencontrar a mãe.

A fotografia de “Vidas Secas”, assinada por Luiz Carlos Barreto, de 96 anos, entrou para história do cinema brasileiro. Por sua luz estourada, por suas inovações, por sua ousadia. A de “Enquanto o Céu Não me Espera”, assinada por Ralph Tambke, de 58 anos, constrói-se como um dos esteios do filme. Registra a Amazônia segundo o desejo da diretora Christiane Garcia — sem grandiloquência, portanto, sem a magnitude verde da maior floresta do mundo.

Tambke registra os interiores e as cercanias da casa, rente ao corpo dos atores, próximo, também, dos barcos a remo, que enchem de sangue e feridas as mãos do adolescente Firmino (Maycon Douglas). Filho mais velho, ele será responsável, com sua ausência, por reviravolta na trama. Logo saberemos a razão da dor profunda que tanto desespero traz a Rita. Ele é fruto do primeiro matrimônio dela, decerto com o homem a quem dedicou imenso amor. Bem diferente do teimoso e bruto segundo marido, que faz sexo com ela na lama, como se ela fosse um bicho.

A fotografia de Tambke se constrói na materialidade da casa e dos corpos, mas também nos mistérios das águas, de onde a família ribeirinha retira a juta e o peixe. E onde se vê refletida, como num imenso espelho fluvial.

Como o carioca Tambke foi parar nesse filme tão amazônico?

Christiane Garcia contou, no debate, que não conhecia o diretor de fotografia carioca. Ele chegou ao projeto e à Amazônia por indicação do produtor carioca-amazonense Jean Robert César, morto ano passado, aos 55 anos. Amigo de Tambke, Jean Robert foi peça-chave em “Enquanto o Céu Não me Espera”, por conhecer em profundidade a produção cinematográfica amazônica. Em seu currículo estão filmes e séries como o francês “Le Jaguar”, com Jean Reno, e as superproduções globais “Mad Maria” e “Amazônia, de Galvez a Chico Mendes”.

No debate do filme, Christiane não fugiu das dificuldades enfrentadas ao longo das seis semanas de filmagens, já que as locações, quase todas aquáticas, centram-se no pequeno sítio de Vicente e Rita, cuja sede, uma casa de madeira, vai sendo tomada pela força das águas. Do piso ao teto.

Não escondeu os desentendimentos com Tambke, em especial em plano-sequência que mostraria Rita, tomada pelo desespero, indo encontrar o corpo do filho Firmino, e decidindo dar cabo da própria vida. “A sequência” — rememorou — “envolvia, também, a personagem de Irandhir, que pularia na água para salvar a esposa”.

O diretor de fotografia, zeloso da sofisticada câmara com a qual trabalhava, não queria correr tamanho risco. Christiane bateu pé e todos os riscos foram minimizados pela retaguarda técnica mobilizada por Jean Robert. No final, tudo chegou a bom termo.

Na etapa de montagem, Paulo Cezar Freire cuidou da síntese desejada pela diretora-roteirista. E o público, em seu contato com “Enquanto o Céu Não me Espera”, se verá estimulado a meditar sobre esse filme tão singular, tão harmonioso em seu propósito de revelar uma Amazônia que pouco conhecemos.

Uma harmonia que se constrói com roteiro de grande originalidade e nada palavroso, pois lacunar. E com elenco de imensa força. O pernambucano Irandhir Santos, numa homenagem aos nordestinos (quem sabe Vicente é filho de um Soldado da Borracha?), brilha na pele do submisso (frente ao patrão) e obstinado ribeirinho.

A potiguar Priscilla Vilela também enche a tela com sua sofrida Rita, fixando sua estampa de traços fortes e grande beleza, que nem a vida dura e os figurinos surrados conseguem esconder.

A “balseira” do sexo encarnada por Ághata Dinelli encanta com seus cabelos curtos e ruivos. E os três filhos de Vicente e Rita estabelecem fina sintonia com os mais velhos, em desempenhos impressionantes para suas idades. Destaque também para o patrão, em aparição curta, mas que joga um bolão com o “empregado” Vicente, quando este troca as fibras de juta por míseros víveres.

Dois curtas-metragens completaram a programação da quarta noite da competição pelo Troféu Candango — o rondoniense “E Assim Aprendi a Voar”, de Antonio Fargoni, e o mineiro “Mãe do Ouro”, de Maick Hannder.

A ficção rondoniense (“E Assim Aprendi a Voar”) faz parte de projeto educativo-cinematográfico que o cineasta, roteirista, diretor de fotografia e produtor paulista (de São Carlos) Antonio Fargoni vem desenvolvendo sob a denominação “Cinema Instantâneo”. Além de atuar no interior paulista, Fargoni já trabalhou na Paraíba, no Ceará, em Pernambuco (neste estado, com o longa “No Caminho Encontrei o Vento”) e, agora, em Rondônia. O projeto já soma um total de 30 títulos (27 curtas e três longas).

Rondônia entra no filme com a história narrada, com o ator-protagonista Guilherme Sussuarana, que é cadeirante, e com as locações. Depois de oficinas pedagógicas ministradas pelo Núcleo de Fazimento de Cenas, foi realizada essa trama ficcional (e metalinguística), que gira em torno do jovem Guilherme. Ele perde o emprego e enfrenta, com sua cadeira de rodas, ruas hostis. Quer encontrar um novo trabalho. E se empenha em obtê-lo, mesmo que tenha que envidar esforços estafantes e derramar muito suor.

O mineiro Maick Hannder buscou numa história familiar — traumática perda de uma tia, quando tinha dez anos — a matéria-prima de “Mãe de Ouro”. Tiana (Carlandréia Ribeiro, em desempenho notável) recebe, numa noite sem lua, a notícia da morte inesperada de sua irmã.

O jovem cineasta, diretor dos curtas “Ingrid” e “Looping”, prepara sua estreia no longa-metragem (com “Perto da Meia-Noite”).

A Mostra Brasília, que distribuirá, entre seus vencedores, 240 mil reais em prêmios e o Troféu Assembleia Legislativa do DF, viveu sua noite mais concorrida. Imensa plateia, a maior de todo o festival, abarrotou a Sala Vladimir Carvalho. Só ao palco — dado recorde — subiram 55 integrantes da equipe técnica e artística de “Manual de Herói”, para apresentar este primeiro longa-metragem de Fáuston Silva.

O próprio realizador, responsável pelo festejado curta “Meu Amigo Nietzche”, comandou a galera. Subiu ao proscênio mascarado e com alguns dos “heróis” também portando as máscaras usadas no filme. Houve luta coreográfica movimentada por música altissonante. Para o delírio da plateia, em parte vinda da cidade-satélite de Ceilândia.

Fáuston desfiou anedotas e permaneceu no palco por uma eternidade (o mesmo aconteceria na competição brasileira, quando as equipes dos dois curtas e do longa consumiriam tempo que parecia infinito). Os autores dos curtas falaram por mais tempos que a duração de seus filmes. A equipe de Christiane Garcia, que deu um show de contenção e síntese em “Enquanto o Céu Não me Espera”, foi torrencial em suas intervenções orais.

“Manual do Herói”, destinado ao público infanto-juvenil, dura 103 minutos, reúne dezenas de personagens, história só decifrável por quem vive mergulhado no mundo dos super-heróis hollywoodianos (especialistas garantem que o modelo de Fáuston foi “Kick-Ass – Quebrando Tudo”). Claro que tal matéria-prima cinematográfica foi aclimatada ao Brasil e a Brasília (Plano Piloto e Ceilândia). E temperada com algumas citações à política verde-amarela e com boas doses de autoajuda.

Os mais argutos detectaram no subtexto do filme ideais do evangelismo religioso. Outros espantaram-se com o custo do filme, garantido por editais federais da Ancine e distrital  (FAC-Fundo de Apoio à Cultura-GDF).

Os efeitos especiais, que são muitos, foram realizados pela O2 Pós. A trilha sonora, onipresente, não dá trégua. Mas há muito de artesania no primeiro (e ambicioso) longa de estreia de Fáuston. Os figurinos são eficientes e muito foi obtido sem gastos exorbitantes. Se comparado ao orçamento de um filme da Marvel, “Manual do Herói” deve ter custado uma ninharia.

Ah, o cineasta já anuncia, no final do filme, que vem aí o “Manual do Vilão”. Depois, decerto, virá o “Manual do Omisso”. Sim, o primeiro longa de Fáuston soma heróis improváveis, vilões e “omissos”. Estes, claro, em aliança com as personagens vilanescas.

Um espectador cético — ao deparar-se com a euforia da plateia candanga tomada pelos aplausos e já apontando seus celulares para o QR Code do voto (digital) popular — vaticinou: “Sucesso de festival”.

E justificou sua percepção: “Na hora do frigir dos ovos, o público preferirá, claro, as milionárias produções da Marvel hollywoodiana”.

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