Corisco e Dadá: um resgate do imaginário e da cultura popular

Por Diego Benevides Nogueira

Rosemberg Cariry é, essencialmente, um poeta formado por uma base filosófica incontestável. É um exímio pensador-criador que, mediante a gentileza que o caracteriza, nos conduz a mergulhar nas possibilidades narrativas do povo brasileiro. Em todas as suas obras, sejam elas literárias ou audiovisuais, Cariry se dedica a olhar com atenção para as estruturas que dão forma aos movimentos culturais e populares, em especial os que marcaram o sertão profundo do Nordeste de onde vem e, por isso, conhece tão bem.

O lançamento original de “Corisco e Dadá”, em 1996, alçou a carreira de Cariry à projeção internacional após a exibição no programa Contemporary World Cinema do Toronto International Film Festival, em um momento muito importante para o cinema brasileiro que vivia a sua tão sonhada retomada após um período sombrio de destruição do mercado. O relançamento da restauração, em 2024, coincide com mais um momento crucial para a nossa cinematografia. Após um período de trevas, sobretudo para a arte e a cultura, testemunhamos o cinema nacional reivindicar o seu lugar de prestígio como um dos melhores do mundo.

Se há uma obra clássica e épica que representa as nossas potencialidades, sobretudo nas que foram realizadas às margens de um eixo privilegiado de produção, é “Corisco e Dadá”. Isso porque, no intervalo de quase 30 anos de um lançamento para o outro, o longa-metragem de Cariry se consolida não apenas por sua relevância histórica, mas pela crença em um tipo de cinema que inspira e confronta a si mesmo, internamente em sua própria narrativa, ao mesmo tempo que confronta o espectador sequência após sequência. Ao imaginar e reimaginar o período do cangaço, o diretor não apenas contextualiza a existência desses personagens, mas justifica a situação que eles viviam e por quais motivos aquele cenário era tomado por luta, violência e rebeldia[1].

Estamos falando sobre um sertão utópico, que não se resume ao simples simulacro e adquire dimensões universais pela substância de sua abordagem. Não temos um olhar estrangeiro especulativo e, sim, a visão interna de várias frestas desse cenário sanguinolento de perturbações. Em “Corisco e Dadá”, o Nordeste não é apenas mirado pelo encantamento poético de suas narrativas rimadas, secas e ensolaradas, mas principalmente por se colocar como um espaço substancial que contorna o seu próprio exotismo e evoca, sempre que possível, a vivência política e afetiva daquelas pessoas. Corisco, Dadá e todos que formam o bando de cangaceiros se devoram o tempo todo diante dessa metafísica da morte.

Cariry consegue unir a sabedoria popular em torno do mito, do herói e do vilão a uma pesquisa autoral consistente sobre a experiência em si do cangaço, que chega a partir de um depoimento de Sérgia da Silva Chagas, a Dadá. A volta de “Corisco e Dadá” ao circuito, com imagens e sons estonteantes captadas dos negativos originais da obra, possibilita que novas gerações acessem um material fundamental para o cinema e para a história do país. Aqui, não há uma fórmula ultrapassada de fazer cinema justamente porque há uma forma de pensar o filme em toda a sua dimensão filosófica, além de referenciar produções que vieram antes e pavimentar o caminho de outras que vieram em seguida.

Outro interesse de Cariry é tratar a experiência das mulheres nesse universo viril de masculinidades, a partir das violências reais e simbólicas no cangaço, no sentido de apontar para a influência das figuras femininas na transformação nos modos de vida estabelecidos naquele cenário[2]. Os relatos de Dadá (a Sérgia, intensamente incorporada por Dira Paes) viram uma poesia tão dolorosa quanto saudosa na composição da narrativa, e colaboram para a reconstituição do imaginário de um sertão cruel que castiga os passantes dessa paisagem seca e hostil, desse inimigo imbatível e adverso[3].

No ano em que o cinema cearense completa 100 anos e se estabelece como um dos mais pulsantes da cinematografia nacional, o retorno de “Corisco e Dadá” aos holofotes simboliza a resistência à passagem do tempo e o cultivo de memórias dos espaços políticos que habitamos, e é justo aí que está a pertinência artística de Rosemberg Cariry. A ideia é que outros longas-metragens do realizador também sejam relançados em suas versões restauradas para serem redescobertos. Os próximos são o documentário “O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto” (1986), primeiro longa-metragem de Cariry, e “Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio” (2002), dois exemplares de um cinema que bate em muitas frequências.

 

Sugestões de leitura:

[1] DÍDIMO, Marcelo. O cangaço no cinema Brasileiro. São Paulo: Annablume, 2010. 219 p.

2 DEBS, Sylvie; CARIRY, Rosemberg (org.). Corisco e Dadá: apontamentos sobre o filme. Fortaleza: Interarte Editora, 2016. 610 p.

3 NOGUEIRA, Diego Benevides. A Trilogia da Morte de Petrus Cariry: narrativas da dor, perda e luto familiar no cinema. 2020. 175 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Instituto de Cultura e Arte, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2020.

 

Diego Benevides Nogueira é jornalista, pesquisador, crítico e curador de cinema. Doutorando e mestre em Comunicação pelo Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC), com pesquisa em cinema brasileiro na linha de Fotografia e Audiovisual. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e estudante de Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Atualmente integra o grupo de pesquisa IMAGO – Laboratório de Estudos de Estética e Imagem (PPGCOM/UFC). Atua como crítico de cinema desde 2006 e é membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e sócio-fundador da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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