Othon Bastos, que foi Corisco, Bentinho, Honório e Tancredo, reafirma “Eu Não me Entrego, Não!” e saúda La Barraca
Por Maria do Rosário Caetano
O ator baiano Othon Bastos, de 91 anos, vem lotando teatros por onde passa, com o monólogo “Eu Não me Entrego, Não!”, escrito e dirigido por Flávio Marinho. A peça permanece em cartaz no Sesc 14 Bis, em São Paulo, até o dia 20 de abril. Depois segue para Belo Horizonte e muitas outras cidades. Haverá, claro, temporada em sua Bahia natal (ele nasceu no município de Tucano, em 23 de maio de 1933). Todo mundo quer ver o cangaceiro Corisco em ação.
Quem assistir à montagem, na qual ele se faz presente ao longo de 100 minutos, sem intervalo, verá que duas expressões artísticas são suas razões de viver – o cinema e o teatro. O cenário, eficiente e de grande beleza, traz o Corisco de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” em lugar privilegiado. E Shakespeare, impresso em grandes dimensões. Sem esquecer imagem de “Um Grito Parado no Ar”, de Gianfrancesco Guarnieri, e o andaluz Federico García Lorca, visto sob o logotipo do coletivo teatral uruguaio La Barraca.
O segundo filme mais destacado no painel, que enriquece o cenário é “São Bernardo” (1973), em potente transcriação de Graciliano Ramos, empreendida por Leon Hirszman. O ator dirá que Paulo Honório, o homem bruto que levou Madalena (Isabel Ribeiro) ao suicídio, foi seu melhor desempenho cinematográfico. E o definirá como “um sertanejo humilde, introspectivo, mergulhado em suas angústias e inquietações”.
Claro que Othon sabe que sua projeção nacional se deu com o cangaceiro Corisco. O protagonista do filme era (e continua sendo) o vaqueiro Manuel (Geraldo del Rey). Quem há de esquecer a cena em que o ator – baiano como Othon – sobe de joelhos (e carregando pedra compacta), a imensa escadaria de Monte Santo, até chegar ao “padrinho”, o Beato Sebastião?
Mas “Deus e o Diabo”, que disputou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, transformou o cangaceiro Corisco em seu mais poderoso símbolo. Foi a imagem dele que brilhou, ensolarado, no famoso cartaz criado por Rogério Duarte. Foi ele, o cangaceiro, quem roubou a cena. É dele a primeira imagem devolvida às nossas retinas, quando pensamos no filme que divide com “Terra em Transe”, o pódio criativo do baiano Glauber.
Quando “Eu Não me Entrego, Não!”, por fim, encerrar sua função, estaremos, os espectadores, em estado de epifania. A evocação da montagem que o La Barraca, de Montevideo, fez de Lorca (“A Sapateira Prodigiosa”) — e apresentou em palco madrilenho — gerou perplexidade em seus encenadores. Aos invés de palmas, ouviram-se pés que batiam no chão, em estado de fúria. O que significava aquilo? Algum tipo de descontentamento? A resposta viria em seguida: ovação consagradora. Os madrilenhos estavam em estado de comoção. Othon oficia, em palco brasileiro, um ato de amor ao teatro como poucas vezes nos foi possível ver.
Mas as lembranças mais recorrentes do monólogo do ator são cinematográficas. Perto dos 92 anos, ele se dá o direito de destacar seus quatro personagens preferidos – além de Corisco e Paulo Honório –, o Bentinho de “Capitu” (Paulo Cezar Saraceni, 1968) e o Tancredo em sua agonia final (“O Paciente”, de Sérgio Rezende, 2018). Faltou um quinto filme em suas rememorações: “Os Sermões” (1990), de Júlio Bressane, no qual desenvolveu original e protagônica encarnação do Padre Antônio Vieira. Aqueles das prédicas que viraram peças literárias.
Sobrarão para Laís Bodanzky (“Bicho de Sete Cabeças”, 2000) e Walter Salles (“Central do Brasil”, 1998) duas cutucadas. Ambos o escalaram para papéis de “coadjuvante de luxo”. No primeiro caso, coadjuvante do protagonista Rodrigo Santoro. No segundo, da amiga Fernanda Montenegro.
Abro, aqui, um parêntese, para mostrar que Othon Bastos está com “Deus e o Diabo” no couro. Ou melhor, na língua. Em entrevista ao Correio Braziliense (10/11/2024), principal jornal da capital brasileira, o ator revelou mágoa ao repórter Ricardo Daehn.
— “Tudo que é bom você absorve da outra pessoa, das conversas, fosse com o Leon, com o Glauber, com o Walter. O encontro com Fernanda no filme ‘Central do Brasil’ foi lindo”. Mas “aconteceu algo lá: o Walter Salles nem sei se sabia disso (…), fui chamado e me colocaram diante de uma câmera e conversaram comigo, como se eu estivesse fazendo um teste. Quando eu percebi que era um teste, perguntei por que vocês não falaram que era um teste? O Marlon Brando fez teste para ‘O Poderoso Chefão’. Grandes atores podem fazer (teste). Não precisa esconder, e humilhar”. E arrematou sua resposta: “Disseram: ‘Queríamos saber como seria sua figura perto da Fernanda Montenegro…’ Pelo amor de Deus, não é assim!”
Voltemos ao espetáculo que acaba de render a Othon Bastos o Prêmio Shell de melhor ator e que está registrado em livro recém-lançado pela editora Cobogó. Quando pensamos em um monólogo teatral, supomos um espetáculo simples, com uns 70 minutos de duração, calcado na palavra.
“Eu Não me Entrego, Não!” inovou. Como seu protagonista tem mais de 90 anos, poderia ter lapsos de memória. Othon pensou em contar com a ajuda do Google, caso se esquecesse desta ou daquela passagem. A solução foi muito bem sucedida e fiel a uma das grandes tradições do teatro de outrora – contar com o auxílio de um “ponto”, prestativo na hora de lembrar o que fosse necessário.
Um “ponto” escondido no fosso do teatro?
Nada disso, a atriz (e diretora assistente) Juliana Medella, interpreta um “ponto” presente o tempo todo no palco, em diálogo permanente com Othon, muito divertida e brincalhona. Até massagem nas costas do ator ela faz. A plateia se diverte com o jogo da dupla.
Em sua evocação de 70 anos de teatro, depois cinema, e 91 de vida, o ator lembrará os tempos em que foi morar no Rio de Janeiro e tornou-se integrante da trupe de Paschoal Carlos Magno. Depois evocará a ida a Londres, onde se aperfeiçoaria nas lides teatrais. Afinal, estaria na terra do Bardo, homenageado em seu cenário (com uma instigante intervenção sobre seus olhos). Acabou reduzido a figurante. Sempre lhe cabia o papel de “um guarda, parado, mudo, que só ouvia”. Por sugestão realista de Sérgio Viotti, percebeu que era hora de “A Inglaterra perder a figuração mais muda de todos os tempos”.
Regressou ao Brasil. E foi parar, algum tempo depois, na sua Bahia natal. Salvador fervia. A Universidade Federal da Bahia era uma usina de invenções. No teatro, na música, na dança, nas artes plásticas. E no Cinema que se revelaria Novo. Afinal, lá vivia o arauto do movimento, o filho de Vitória da Conquista, Glauber Rocha.
Coube, porém, ao comunista Alex Viany introduzir Othon Bastos no cinema. No filme “Sol Sobre a Lama” coube a ele interpretar personagem sem nome. Responderia pelo apelido de “Moreno”. E logo atuaria também em “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte. Nesse filme interpretaria um jornalista inescrupuloso.
Depois viria o Corisco de “Deus e o Diabo”. E a promessa de Glauber de escalá-lo para ambiciosa trilogia. Mas o primeiro revés se verificaria no filme seguinte do amigo baiano – “Terra em Transe”. Glauber avisou ao amigo que ele seria substituído por Paulo Autran, o Porfírio “Diáz”. O cineasta achava Othon muito jovem para interpretar o désposta.
Foram quatro anos sem nenhum papel no cinema. Só o chamavam para incorporar cangaceiros sanguinários. Não aceitou. Quando Saraceni o convidou para interpretar o machadiano Bentinho, em “Capitu”, a alegria voltou. E, logo em seguida, o profeta cinemanovista o convocaria para seu segundo e último papel glauberiano – o professor de História de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”.
Depois viriam “Os Deuses e os Mortos”, de Ruy Guerra, e dezenas e dezenas filmes. A muitos deles, todos documentários, Othon emprestaria sua voz cristalina. Vladimir Carvalho e Silvio Tendler estão entre os que o queriam como narrador.
Quem concluir que está dispensado de ver o espetáculo depois de tantos “spoilers” não saberá o quanto estará perdendo. Assistir a dois momentos do espetáculo – aquele em que Othon e seu descolado “ponto” encenam as filmagens do beijo de Corisco em Rosa (Yoná Magalhães) e o tão evocado momento do La Barraca em palco madrilenho – é ser testemunha de momentos de antologia do teatro brasileiro.
O que se contou aqui não passa de um pobre resumo de alguns dos muitos (e comoventes) momentos da carreira cinematográfica-teatral de Othon Bastos (a TV não vai ao proscênio!). Corra para o Sesc 14 Bis. E, aos que moram nas cidades que, em breve, receberão “Eu Não me Entrego, Não!”, um conselho: comprem, tão logo possam, os seus ingressos.
Eu Não me Entrego, Não!
100 minutos, 12 anos
Elenco: Othon Bastos e Juliana Medella
Texto e direção: Flávio Marinho
Direção de arte: Ronald Teixeira
Trilha sonora: Liliane Secco
Iluminação: Paulo César Medeiros
Produção: Gávea Filmes
Local: Teatro Raul Cortez (Sesc 14 Bis) – Rua Dr. Plínio Barreto, 285, São Paulo/SP
Ingressos: 70 reais (inteira), 35 reais (meia) e preço reduzido para comerciários