“A Mais Preciosa das Cargas”, animação de Michel “O Artista” Hazanavicius, chega aos cinemas dosando encantamento e horror
Por Maria do Rosário Caetano
“Era uma vez, numa grande floresta, um pobre lenhador e uma pobre lenhadora”… Assim começa a narração de Jean-Louis Trintignant para o belo e apavorante “A Mais Preciosa das Cargas”, décimo longa-metragem de Michel Hazanavicius.
Esta primeira incursão do cineasta francês no gênero desenho animado — ele que foi consagrado pela Academia de Hollywood, treze anos atrás, por “O Artista”, com o Oscar de melhor filme e direção (e, também, ator para Jean Dujardin) — chega aos cinemas brasileiros. A estreia acontece nessa quinta-feira, 17 de abril, com distribuição da Paris Filmes.
A voz aliciante de Trintignant prossegue na mobilizadora narrativa da Preciosa Carga: “O frio, a fome, a miséria, e, por toda parte, a Segunda Guerra tornavam a vida bem difícil”. Não nos esqueçamos que o ator, ao registrar sua voz, já somava 91 anos (e aquele seria seu último trabalho no cinema, pois morreria em 2022). Não ouviria, portanto, sua voz na sessão nobre do Festival de Cannes, dois anos depois, quando o filme disputou a Palma de Ouro. Disputaria, também, três prêmios César, o “Oscar francês”.
Ainda na voz de Trintignant ouviremos narrativa aterradora: “Um dia, a pobre lenhadora recolhe um bebê. Um bebê jogado de um dos numerosos trens que atravessavam, sem cessar, a floresta”.
Quem imaginaria que, “protegido a todo custo, esse bebê, esta pequena mercadoria, iria transformar a vida dessa mulher, de seu marido, e de todos aqueles que cruzassem seu destino, inclusive o homem que a jogou do trem”. E, com distanciamento crítico, a voz de Trintignant anunciará: “Essa história vai revelar o pior e o melhor do coração dos homens”.
O roteiro de “A Mais Preciosa das Cargas” foi escrito por Hazanavicius, de 58 anos, um parisiense, filho de pais judeus-lituanos, em parceria com Jean-Claude Grumberg, ficcionista de 85, judeu de origem polonesa. Embora não haja insistência na definição do cenário dessa trágica história, à qual assistiremos comovidos, alguns indícios nos dirão tratar-se de um país do Leste Europeu. Mesmo que o filme seja falado em francês, língua materna de Hazanavicius, o livro que lhe deu origem se passa – concluímos – numa floresta da Polônia ocupada pelos nazistas (não veremos nenhuma suástica). Essa dedução nos chega por fato histórico: os poloneses foram libertados do domínio nazista pelo Exército Vermelho, simbolizado por sua tradicional e rubra estrela.
As crianças, público-alvo de Hazanavicius e Grumberg, não terão, óbvio, essa memória da Segunda Guerra. Mas estarão – caso atingidas pelo filme – mais preocupadas (terrificadas) com o destino do bebê (uma bebezinha), que toma leite de cabra, cresce, ri, brinca com o cachorro dos lenhadores, faz carícias nas barbas do velho pai e nas faces da dedicada e acolhedora mamãe, também idosa.
No momento mais belo do filme, veremos “O Grito”, o mais famoso dos quadros de Munch, multiplicar figuras esquálidas de judeus que sobreviveram à barbárie do campo de concentração de Auschwitz.
A primeira animação de Hazanavicius nasceu de livro best-seller e homônimo, escrito por Grumberg, amigo fraterno dos pais do cineasta. Juntos, eles se dedicaram à reflexão sobre as trágicas consequências do anti-semitismo. Em seus livros e roteiros cinematográficos (escreveu com Truffaut, “O Último Metrô, além de três filmes com Costa-Gravras, entre eles, “Amém”) Grumberg recriou histórias comoventes. Sem jamais apelar para o sentimentalismo.
“A Mais Preciosa das Cargas” soma mortes e mais mortes. Fome e outras privações também se multiplicam. Ameaças constantes apavoram até a nós, os adultos. E isto acontece porque os roteiristas do filme conhecem bem os contos infantis. Há coisa mais apavorante que uma rainha (ou bruxa má) mandar matar sua enteada, sendo esta mais bonita que ela, e pedir ao assassino que traga o coração da jovem como prova de missão cumprida? E João e Maria serem presos numa gaiola e submetidos à provação da mais absoluta falta de alimento? E o lobo devorar a vovózinha de Chapeuzinho Vermelho?
Hazanavicius e Grumberg acreditam, pois, que os infantes estão preparados para fruir narrativa capaz de evocar um dos mais trágicos acontecimentos da História humana. Um acontecimento desenhado, sem nenhum sensacionalismo, mas com muita coragem. Estão lá as chaminés que espargem densas nuvens de fumaça, vindas dos fornos crematórios. Estão lá os homens que têm a firme convicção de que judeus eram “gente sem coração”, dedicada a fazer o mal. Inclusive “haviam matado Jesus Cristo”. Enfim, só queriam “prejudicar os pobres trabalhadores da floresta”.
Um fato que merece registro: em entrevista à jornalista Elaine Guerini (Valor, 11/04/2025), realizada durante o Festival de Cannes, Hazanavicius relembrou a dificuldade de se representar, em filmes, o horror do extermínio promovido pelos campos de concentração.
Filmes, “mesmo os muito bons, levantaram polêmica”. Para, em seguida, lembrar caso pouco conhecido e comentado: o do filme “The Day the Clown Cried”, rodado por Jerry Lewis, no começo dos anos 1970. Nesse filme, Lewis era visto na pele de um palhaço que, ao ser preso por nazistas, começa a entreter as crianças no caminho para a câmara de gás. O enredo controverso “seria uma das razões para o filme nunca ter sido lançado”.
Já o longa de Hazanavicius (respaldado pela dura história do livro infantil de Grumberg), além da vistosa vitrine de Cannes, vem sendo distribuído por muitos circuitos internacionais. Só na França, vendeu 610 mil ingressos.
“A Mais Preciosa das Cargas” é um longa-metragem de compleição apavorante. Ele mais nos inquieta que consola. Não foi premiado em Cannes, nem no César (que preferiu o aliciante “Flow”, também laureado com o Oscar de melhor longa de animação). Há que se registrar que terminamos de ver o filme de Hazanavicius com a alma em desalinho. Por isso, por não apostar na catarse, ele continua conosco, não sai de nossos pensamentos.
A Mais Preciosa das Cargas | La Plus Précieuse des Marchandises
França, Bélgica, 2024, 81 minutos
Direção: Michel Hazanavicius
Roteiro: Jean-Claude Grumberg e Michel Hazanavicius
Vozes: Jean-Louis Trintignant (narrador), Dominque Blanc (mulher do lenhador), Gregory Gadebois (o lenhador), Denys Podalydés (o homem da cara cortada)
Direção musical: Alexandre Desplat
Montadores: Michel Hazanavicus e Laurent Piovani
Produtores: Patrick Sobelman, Florence Gastaud e Michel Hazanavicius
Distribuição: Paris Filmes
FILMOGRAFIA
Michel Hazanavicius
Diretor e roteirista francês, nascido em Paris, em 29 de março de 1967
2024 – “A Mais Preciosas das Cargas”
2022 – “Corte Final”
2020 – “O Príncipe Perdido”
2017 – “Temível”
2014 – “A Busca”
2012 – “Infidèles” (episódio de “La Bonne Conscience”)
2011 – “O Artista” (Oscar de melhor filme)
2008 – “OSS 117 à Rio”
2006 – “OSS 117: Le Caire, Nid d’Espions”
1999 – “Mes Amis”
1993 – “La Classe Américaine” (telefilme)
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