Sérgio Machado traça linha musical de Xisto Bahia ao Rumpilezz em “A Bahia me Fez Assim”
Foto: Sérgio Machado e Larissa Luz © Manuela Cavadas
Por Maria do Rosário Caetano, de Salvador (BA)
O cineasta Sérgio Machado apresentou e debateu seu mais novo filme, o documentário “A Bahia me Fez Assim”, na vigésima edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema, em Salvador. E o fez no exato dia em que a série “Maria e o Cangaço”, sobre Maria Bonita, da qual é um dos criadores e diretor geral, estreava no streaming (na poderosa Disney).
Ao mesmo tempo, o cineasta cuida do lançamento de “3 Obás de Xangô”, festejadíssimo documentário sobre Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé, agendado para o dia 24 desse mês de abril. Três dias depois, ele disputa, em Madri, na Espanha, o Prêmio Platino de melhor animação, com o longa-metragem “Arca de Noé”, baseado em canções infantis de Vinicius de Moraes. E torce por “Cidade de Deus – A Luta Não Pára”, que concorre, também em solo madrilenho, ao Platino de melhor série.
O Panorama Coisa de Cinema está prestando homenagem à trajetória de Machado, nascido em Salvador há 56 anos. Ele tem vivido suas aventuras cinematográficas entre São Paulo, Rio e capital baiana. Diz que filmar em casa é uma maravilha, pois “as equipes adoram o astral da Bahia e deliram com a comida”.
A homenagem do festival soteropolitano (e cachoeirense) se dá com a exibição de quatro longas documentais por ele concebidos e dirigidos. Além do saboroso e alto astral “3 Obás de Xangô”, que vem acumulando prêmios e é um dos filmes mais procurados pelos festivaleiros, e de “A Bahia me Fez Assim”, foram programados “Onde a Terra Acaba” (2002), seu primeiro longa (sobre o cineasta Mário Peixoto e seu filme-mito “Limite”), e “A Luta do Século” (2016), registro de duelos entre os pugilistas nordestinos Luciano Todo Duro e Reginaldo Holyfield. Um filme que soma boxe, humor desvairado e realidade social. Os dois lutadores vieram das camadas mais pobres da população brasileira. Como diria um velho marxista, do lúmpem-proletariado.
“A Bahia me Fez Assim” é um canto de amor à riqueza musical da terra de origem de Caymmi, João Gilberto, Caetano, Gil, Bethânia, Gal, Novos Baianos, Ilê Aiyê e centenas e centenas de outros compositores e intérpretes. Com o produtor musical Alê Siqueira na retaguarda, Machado regressou à sua Bahia para registrar, com dois fotógrafos, o processo criativo de artistas da nova cena musical baiana. Artistas unidos por encontros inusitados. Ou seja, novos (e nem tão novos assim) talentos recriando sucessos gravados desde 1902.
Foi no alvorecer dos anos 1900 que o ator e intérprete Xisto Bahia gravou a irreverente (e hoje, “politicamente incorreta”) “Isto é Bahia”. Recriada por artistas entre os quais se destacam a atriz e cantora Larissa Luz e a trupe do Àttoxxa. A linha do tempo do filme vai, portanto, do comecinho do século XX até dias recentes, com “Honra ao Rei”, do Maestro Letiéres Leite (1959-2021). Passando por Assis Valente (“Camisa Listrada”), João Gilberto (o sintético compositor de “Bim-Bom” e “Obalalá”), Moraes & Galvão, dos Novos Baianos (“Sorrir e Cantar Como Bahia”), e Raul Seixas (“Como Vovó Dizia”, conhecida também como “Óculos Escuros”).
A sessão de “A Bahia me Fez Assim” lotou a maior sala do Cine Glauber Rocha. Compareceram, além de Sérgio Machado e equipe, representante do grupo Ilê Aiyé, o clarinetista Ivan Sacerdote e três das Ganhadeiras de Itapoã, grupo de senhoras que exercem seu ofício profissional e cantam e encantam.
No documentário de Machado, elas participam da recriação de “Óculos Escuros” (ou “Conselhos da Vovó”, mais um nome para o sucesso malucão de Raul). No palco, as Ganhadeiras arrancaram risos do público devido às altas doses de irreverência e bom humor. Na gravação, nem se fala. “Elas são maravilhosas, bagunceiras, agitaram o estúdio durante os ensaios de ‘Como Vovó Dizia’”, recordou Machado.
A plateia soteropolitana soltou sonoras gargalhadas ao assistir aos registros fílmicos dos ensaios das vovós de Itapoã. E também se divertiu com a “rivalidade” entre as cantoras Xênia França e Melly. Principalmente com as caras de enfado (e desaprovação) de Melly frente às elucubrações musicais de Xênia.
Sérgio Machado relembrou dois momentos de perrengue nas filmagens. “Além dos desentendimentos entre Xênia França e Melly, houve outro — o da Orkestra Rumpillez e Rumpilezzinho, cujos integrantes não quereriam gravar ‘Honra ao Rei’ contando com regência-participação, pré-gravada, do saudoso Maestro Letiéres (ele morreu, três anos atrás, aos 61 anos). Os músicos preferiam homenageá-lo com a composição que iriam interpretar. E gravar a partitura com regente presente no estúdio.
O produtor musical do filme (e de um futuro disco?) votou, sozinho, pela regência digital-imagética do Maestro. Todos os músicos votaram contra. Mas, pelos milagres da Bahia (e do cinema), imagens de Letiéres entraram em cena. E jogaram a sequência lá em cima. Aliás, a inserção de imagens históricas, de arquivo, localizadas pelo craque Antonio Venancio, colocam o filme (como diria Chico César) em “estado de poesia”. Sequências com meninos e meninas da Bahia dançando samba deixaram a plateia em êxtase.
Quem supôs que a união do Ilê Aiyê ao cantor Tinganá Santana e ao clarinetista Ivan Sacerdote resultaria maximalista demais em interpretação de duas composições minimalistas de João Gilberto, enganou-se. O resultado é maravilhoso. Os ensaios, em certa medida, davam a crer que tal resultado não seria possível. Alê Siqueira, inclusive, evocou ditado adotado por muitos artistas: “Deus criou a música; o Diabo, os ensaios”.
Todas os perrengues havidos nos seis dias de gravação (em estúdio com poderosa direção de arte de Marcelo Magalhães) foram neutralizados. A colheita se materializou em saborosos frutos musicais. Tinganá Santana não compareceu à sessão do Panorama Coisa de Cinema, mas foi lembrado, pelo representante do Ilê Aiyê, como “intelectual poliglota, que fala sete línguas, PhD, estudioso dedicado e artista dos mais talentosos”. O mesmo representante do famoso bloco afro elogiou, também, o clarinetista Ivan Sacredote, “outra maravilhosa descoberta”.
Ao ver o filme pronto — e pela primeira vez numa tela grande (depois de passar pelo circuito de festivais, será exibido pelo Canal Curta!) —, Sérgio Machado se declarou muito feliz com o resultado. Todas as intervenções do “Mercúrio retrógrado” (evocado na gravação de Xênia e Melly) foram superadas. Deu tudo muito certo. E a música da velha Bahia, do pioneiro Xisto Bahia ao maestro Letiéres Leite, pôde ser mostrada em toda sua riqueza e poder de sedução.
O público que debateu o filme com a equipe e com os artistas (Ganhadeiras, representante do Ilê e Ivan Sacerdote) solicitou sua rápida transformação em disco e novas sessões em cinemas baianos. E mais, que “A Bahia me Fez Assim” seja sequenciado com novos artistas. Inclusive Ederaldo Gentil e sua “O Ouro e a Madeira”. Aliás, junto aos letreiros finais, são mostradas fotos de diversos artistas da grande canção baiana. Além de Ederaldo e Caetano Veloso (este bem cabeludo, magérrimo, em foto inesquecível), vemos Camafeu de Oxossi, Moa do Catendê, Lazzo, Gal, Margareth e Ivete.
FILMOGRAFIA
Sérgio Machado (Salvador, 19 de setembro de 1968)
Cineasta e roteirista
2025 – “A Bahia me Fez Assim” (doc)
2025 – “3 Obás de Xangô” (doc)
2024 – “Arca de Noé” (animação em parceria com Alois Di Leo)
2022 – “O Rio do Desejo” (ficção)
2021 – “Neojibá – Música que Transforma” (doc)
2016 – “A Luta do Século” (doc)
2015 – “Aqui deste Lugar”, parceria com Fernando Coimbra (doc)
2015 – “Tudo que Aprendemos Juntos” (ficção)
2010 – “Quincas Berro d’Água” (ficção)
2005 – “Cidade Baixa” (ficção)
2002 – “Onde a Terra Acaba” (doc)