Aicha, “A Mulher que Nunca Existiu”, busca sua libertação em thriller policial ambientado na Tunísia pós-Primavera Árabe
Por Maria do Rosário Caetano
Já na abertura de “A Mulher que Nunca Existiu” — estreia dessa quinta-feira, 22 de maio, nos cinemas brasileiros — somos avisados por um letreiro que a trama se passa na Tunísia, “depois da Primavera Árabe”.
Nunca é demais lembrar que os movimentos populares contra governos autoritários, dominantes na África magrebiana, começaram justo na terra de origem do cineasta Medhi M. Barsaoui – a Tunísia. O país de 12 milhões de habitantes divide com o Marrocos (37 milhões) a condição de “território mais avançado (na área dos costumes) do mundo muçulmano”. Isto se comparados com outros países da região.
Cidades como Túnis, a capital tunisiana, e Casablanca (a maior e mais conhecida metrópole do Marrocos) assemelham-se a capitais ocidentais, com suas jovens sem véu e suas baladas banhadas em neon e regadas a bebidas alcóolicas.
A Primavera Árabe teve curta duração. Tudo começou na Tunísia, em 2010, quando o vendedor de frutas Mohamed Bouazizi se autoimolou (incendiando o próprio corpo) “em protesto contra a corrupção e a situação econômica de seus país”.
Dali em diante, como um rastilho de pólvora, os protestos se espalharam por outros países do Magreb e houve queda de governos autoritários. Em janeiro de 2011, o presidente da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, renunciou.
“Aicha”, o nome original do quarto longa-metragem de Barsaoui — que a Imovision trocou pelo chamativo “A Mulher que Nunca Existiu” — não vai se referir, de forma explícita, à Primavera Árabe. Sua história se desenvolverá em 2022, 18 anos depois de seu principal personagem masculino (o policial Feres) martirizar-se com a perda de um irmão, morto por atropelamento. Os responsáveis, gente influente, não foram condenados pelo poder judiciário.
No centro luminoso da narrativa de Barsaoui está a “Mulher que Nunca Existiu”. Tudo gira em torno dela. A moça vive numa pequena e provinciana cidade do sul da Tunísia, junto com os pais, e trabalha como arrumadeira em hotel de luxo. Todos os dias ela deixa sua casa, rumo ao emprego, e toma um micro-ônibus, que recolhe os funcionários. O motorista se responsabiliza pela lista de quem pode entrar no veículo.
Em casa, a vida da jovem é difícil. Os pais, endividados, querem que ela seja a solução do problema. Que se case com um homem mais velho, divorciado e rico. A proposta já fôra apresentada a ela. Mas a moça sonha com dias melhores e mais livres em Túnis.
Num dos deslocamentos rumo ao hotel, uma mulher implora por carona no micro-ônibus. O motorista se nega a acolhê-la, mas os passageiros insistem que ela seja acolhida. Um grave acidente na estrada acabará matando todos os funcionários do hotel. Menos Aicha, que escapa milagrosamente. Como havia uma mulher sem presença registrada no grupo embarcado, todos concluirão que a moça foi devorada pelo fogo. Seus pais, inclusive, receberão a indenização paga pelo hotel.
Aicha resolve, incógnita, mudar-se para Túnis. Reinicia sua vida compartindo apartamento com uma jovem, bonita como ela, que se diz universitária. Começa a vestir-se com roupas vermelhas e minúsculas, coladas ao corpo. E a frequentar baladas regadas a vodka. Até que, numa delas, troca olhares com um jovem. Que acabará, naquela mesma noite, assassinado em condições nebulosas. Aicha será convocada pela polícia. Afinal, o rapaz a teria assediado.
Desse momento em diante, o que parecia um drama feminista, transforma-se no que os franceses chamam de “polar” (drama policial aparentado ao “film noir”). Em ritmo ágil acompanharemos as dificuldades enfrentadas pela “moça que nunca existiu”. Pressionada, a fugitiva terá que assinar seu depoimento, prestado aos investigadores, com seu nome verdadeiro (Aya Dahoui). Não será desmascarada graças à morosidade burocrática da Justiça tunisiana. Sua morte ainda não fôra registrada pelos computadores.
A trama engendrada por Medhi M. Barsaoui, um tunisiano de 40 anos, é sedutora, embora inclua ingredientes folhetinescos (mesmo que o filme se inspire em fato real). A beleza de Aisha, interpretada com muito talento por Fatma Sfar, enche a tela. Ela brilha na pele da moça provinciana do começo do filme. Brilha como a jovem que começa a viver uma nova vida na cidade grande. E convence como a jovem encurralada por dilema moral: deve contar a verdade aos policiais ou, para safar-se, manter a “narrativa” fabricada pelo verdadeiro assassino?
Soluções fáceis (folhetinescas) interferem na narrativa em dois momentos – quando Aicha perde todo seu dinheiro na balada (quem leva toda a grana de que dispõe a uma boate?) e na amizade incondicional que criará com outra mulher, a dona de uma confeitaria. E qual é a base de tamanha sororidade?
Certo dia, na vizinhança de sua residência, Aicha defenderá uma mulher, dona da confeitaria do bairro, durante briga desta com o marido agressivo. Tomada por sentimento fraterno de tom paroxístico, a confeiteira acabará transformando-se em ombro-amigo de Aicha. Para o que der e vier.
Vários temas vão agregar-se à narrativa. Prostituição de jovens vindas do interior e pais egoístas, que querem decidir o destino das filhas, são os mais relevantes. E o filme terá um de seus melhores momentos quando Aicha receber, a contragosto, os pais (um motorista a vira em Tunis e a denunciara aos familiares). Ela dirigirá à mãe e ao pai omisso dolorosas verdades.
Dos personagens coadjuvantes, só um ganha perfil mais elaborado – o policial Feres, atormentado pelas falhas intencionais da Justiça, que acobertou os responsáveis pela morte de seu irmão. E que depara-se com o mesmo acobertamento no caso do jovem assassinado na balada.
Os outros personagens são “tipos” que só parecem existir para servir de suporte à jornada da jovem Aicha. Mesmo assim, ninguém há de desgrudar o olho da tela. São tantos os acontecimentos, que não vemos o tempo passar.
A fotografia de Antoine Hérberlé é calorosa, viva, inquieta. As imagens da Tunísia, país localizado entre o Mediterrâneo, ao norte, e o Deserto do Saara, ao sul, são reveladoras. E o contraste entre a cidade sulista, com suas formações rochosas, praticamente sem árvores, e a capital, à beira-mar, é bem valorizado pelo filme. O espaço urbano dá vida e verdade à envolvente trama judicial.
A solução para o imbróglio vivido pela moça interiorana é convincente. O final, quase feliz. Quando a narrativa de 123 minutos finda, ficamos com a impressão de que dois personagens do filme nos envolveram por suas sólidas construções e pelo talento de Fatma Sfar e Nidhal Saadi (interpretado com sensibilidade, longe do estereótipo dos policiais grosseiros de tantos filmes).
“A Mulher que Nunca Existiu” participou da mostra Horizonte, do Festival de Veneza, ano passado. Depois, foi exibido no Festival do BFI, em Londres, e em diversos festivais europeus e africanos. No Brasil, ele participou do Panorama Internacional do Festival do Rio.
Desfrutar, no circuito brasileiro, de um filme vindo da África Setentrional é uma experiência obrigatória e enriquecedora. É animador ver a pequena Tunísia produzindo (e exportando) uma produção com as qualidades de “A Mulher que Nunca Existiu”. Os efeitos especiais do acidente em estrada que corta montanhas desérticas (e termina em fogo) nada ficam a dever às superproduções norte-americanas e europeias.
A tunisiana Aicha e o guineense (de Conacri) Souleymane, protagonista de “A História de Souleymane” chegam, no mesmo dia, essa quinta-feira, ao nosso circuito de arte, para provar que a África tem muitas histórias para contar. Seja em solo africano, seja em solo francês.
A Mulher que Nunca Existiu | Aicha
Tunísia, França, Itália, 2024, 123 minutos, 16 anos)
Direção e roteiro: Medhi M. Barsaoui
Elenco: Fatma Sfar, Nidhal Saadi, Yasmine Dimassi, Hela Ayed, Ala BenHamad, Badis Galoui, Saoussen Maalej
Fotografia: Antoine Hérberlé
Montagem: Camille Toubkis
Música: Amine Bouhafa
Direção de arte: Sophie Abdelkafi
Figurinos: Randa Khedher
Efeitos especiais: Nassim Rejichi
Distribuição: Imovision
FILMOGRAFIA
Medhi M. Barsaoui (Tunísia, 23 de maio de 1984)
2024 – “A Mulher que Nunca Existiu” (“Aicha”, ficção)
2019 – “Um Filho” (ficção)
2017 – “A Bela e os Cães” (ficção)