Ecofalante reúne 125 filmes e presta homenagem a Hermano Penna, um dos roteiristas de “Iracema” e diretor do green movie “Fronteira das Almas”
Por Maria do Rosário Caetano
A Mostra Ecofalante de Cinema chega à sua décima-quarta edição empenhada em colaborar com a ampliação da cidadania ambiental e engrossar as fileiras dos que buscam soluções para a emergência climática. Serão exibidos – de 28 de maio até 11 de junho, em 49 salas de cinema e espaços culturais-educativos paulistanos – 125 filmes oriundos de 33 países.
O grande homenageado dessa edição, dedicada ao “cinema verde”, é o cearense Hermano Penna, que acaba de completar 80 anos, boa parte deles dedicada ao audiovisual e à defesa da natureza. Nome, portanto, dos mais qualificados.
A Ecofalante cultiva largueza conceitual. Por isso, seleciona produções que abordam, além do “ativismo verde”, temas como “a contaminação de solos, do ar e das águas, a economia e emergência climática, a migração, povos e lugares, povos originários, cidades e tecnologia”. Esses temas reverberam nas telas dos espaços culturais e educativos, que lhe servem de palco, e são enriquecidos com importantes e mobilizadores debates.
Ao reconhecer Hermano Penna como digno de tributo e mostra retrospectiva, a Ecofalante valoriza a trajetória desse realizador que deixou seu Crato natal rumo a Brasília, passando por Sergipe e Bahia, até sentar praça em São Paulo.
O comando do festival, liderado por Chico Guariba, selecionou sete realizações do homenageado. De todos os títulos escolhidos, o que mais dialoga com um “festival verde” é o longa-metragem “Fronteira das Almas”, de 1986. Afinal, ele se passa na Amazônia brasileira e tem parentesco com “Iracema – Uma Transa Amazônica”, de Bodanzky e Senna (1974-1980), que Hermano ajudou a escrever.
Segundo longa ficcional do realizador cearense, “Fronteira das Almas” conta duas histórias, escritas por Hermano, em parceria com o grande jornalista Murilo de Carvalho, responsável pela secção “Cenas Brasileiras”, do jornal Movimento (1975-1981). Uma das histórias é ambientada num assentamento, em Rondônia. A outra, no Sul do Pará.
Na primeira delas, Cassiano (Antônio Leite) recebe um pedaço de terra do Incra. Tudo fará para cultivá-la, ao lado de alguns amigos, mas os problemas serão imensos. Ele não tem dinheiro para investir. Até para comprar sementes lhe faltam recursos. E há a malária, mal que a muitos abate. Para tornar tudo ainda mais difícil, sua mulher, Luciana (Marcélia Cartaxo) e o filho pequeno estão longe dele. A companheira aceita deixar a cidade para viver a precariedade do assentamento. Mas as dificuldades se tornam cada dia mais concretas e desafiadoras.
A outra história, a que se passa no Sul do Pará, zona conflagrada, é protagonizada por Tião (Fernando Bezerra), irmão de Cassiano, e por sua mulher, Dalvina (Suzana Gonçalves, irmã da atriz Suzana Vieira). Aqui vale um registro: Suzana Maria Vieira Gonçalves, seu nome civil, acabou emprestando o prenome à irmã mais velha, a consagrada atriz Suzana Vieira (nascida Sônia). Depois faria telenovelas na Globo (“O Primeiro Amor”) e filmes (como “Os Inconfidentes”, de Joaquim Pedro de Andrade). Mas deixaria sua carreira artística para casar-se com o também ator Paulo Sack (o Serginho, de “Toda Nudez Será Castigada”).
Hermano Penna trouxe Suzana de volta ao cinema. Sua Dalvina passa por momentos difíceis, ao lado do marido Tião. A situação dela, do esposo e dos filhos é ainda pior que a de Cassiano e Luciana. Pois não contam com um lote cedido por projeto de reforma agrária do Incra. São posseiros que ocupam terras devolutas. Têm que enfrentar ataques constantes de grileiros, que não querem vê-los ali na região.
O quadro geral será trágico para os dois irmãos e suas famílias. Eles terão que decidir que rumo tomar. Além do dois casais, o filme conta com nomes conhecidos no elenco. Caso de Joel Barcellos, que interpreta um gaúcho alucinado pela malária, Claudio Mamberti, em participação especial como gerente de banco, o sergipano Orlando Vieira (de “Sargento Getúlio”), a atriz de muitas novelas de Dias Gomes, Ilva Niño, o convincente Manfredo Bahia, o afro-brasileiro Paulão e o ator-cineasta Julio Calasso.

“Fronteira das Almas” não conseguiu a consagração obtida por “Sargento Getúlio”, o mais festejado dos filmes do cearense-paulistano. Vencedor do Festival de Gramado de 1982, este filme, baseado em romance homônimo de João Ubaldo Ribeiro, encontrou em Lima Duarte o intérprete ideal. Aquele que, com paixão e fúria, entregou-se ao sargento encarregado de levar um preso de Paulo Afonso, na Bahia, até Barra dos Coqueiros, ilha defronte a Aracaju. O faz a serviço de um político do PSD. O preso pertence à rival UDN. Em estado de possessão e disposto a cumprir a tarefa recebida, custe o que custar, ele não aceitará contra-ordem recebida. Seguirá em sua obstinada missão, pois perseguido e abandonado, vê na viagem (e em sua meta original) o único sentido de sua existência.
Se, na TV, Lima imortalizou o pistoleiro Zeca Diabo e o Coronel Sinhozinho Malta, no cinema, ele imortalizou o brutal (e inesquecível) sargento Getúlio. O incrível é que o filme foi rodado em 1978, com apenas US$85 mil. Em 16 milímetros. Só seria concluído em 1982, com apoio tardio da Embrafilme. O triunfo em Gramado lhe traria o reconhecimento merecido.
Aos 95 anos, Lima Duarte sairá de seu sítio, no interior de São Paulo – onde vive cercado de árvores e alimentado pela prosa poética de Guimarães Rosa – para conversar com o público da Ecofalante, ao lado de Hermano Penna. Dono de mente ágil e grande contador de “causos”, o ator deve encantar a todos. Foi assim em Gramado, quando lançaram o filme. E, também, nos festejos – na mesma Serra Gaúcha – dos 30 anos de sua consagração (2012). O novo encontro entre diretor, ator e público acontecerá no domingo, primeiro de junho, no Reserva Cultural (Av. Paulista, 900), logo após a sessão de “Sargento Getúlio”, agendada para às 16h.
Completam a homenagem a Hermano, os filmes “Vôo Cego Rumo Sul”, “A Mulher no Cangaço”, “CPI do Índio”, “Smetak” e “Folia do Divino”. Destes, vale destacar o híbrido “A Mulher no Cangaço”, realizado em 1976, para o Globo Repórter. Justo na fase em que o programa vivia, sob o comando do cineasta baiano Paulo Gil Soares (1935-2000), seus anos de ouro. E mobilizava profissionais da grandeza de Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr, Geraldo Sarno, João Batista de Andrade e Maurice Capovilla.
Coube a Hermano Penna mudar o foco nas abordagens do fenômeno do cangaço, sempre masculino. Calculam-se que mais de 400 homens integraram bandos de cangaceiros. Alguns ganharam notoriedade, motivaram centenas de folhetos de cordel e foram protagonistas de filmes do gênero “Nordestern”, o western cangaceiro. Caso de Antônio Silvino, Jesuíno Brilhante, Lampião, o “governador do sertão”, e Corisco, “o diabo loiro”.
Para o Globo Repórter, narrado por Sérgio Chapelin, Hermano Penna construiu híbrido de ficção e documentário, ao qual só interessavam as mulheres. As moças que foram sequestradas ainda adolescentes (caso de Dadá), ou escolheram, por vontade própria, a vida ao lado de cangaceiros. Caso de Maria Bonita, que deixou o marido, que não amava, para ser a mulher de Virgulino Ferreira.
Hermano reconstituiu ficcionalmente fragmentos da vida dessas mulheres e os intercalou com depoimentos de duas famosas cangaceiras: Dadá e Sila. E mobilizou outras bandoleiras, menos famosas. Uma destas conta que optou pelo cangaço para fugir da vigilância castradora da família. Para experienciar vida mais livre, com o direito de passar “batom nos beiços”, fazer, enfim, o que tivesse vontade.
Em reveladores 45 minutos, “Mulheres no Cangaço” documentará a dura vida das cangaceiras nordestinas. Poderiam viver bons momentos junto aos companheiros fora-da-lei. Mas não encontrariam vida fácil. Na hora dos embates entre os cangaceiros e as volantes, tinham que se envolver em fugas inesperadas (algumas, poucas – mostrará o filme – pegaram em armas). O pior viria com a gravidez num tempo em que não existia pílula anticoncepcional. E, após o nascimento da criança, a dor de entregá-la a parentes ou coiteiros. Havia também momentos de privação. Fome e, principalmente, sede nos momentos mais adversos.
A pernambucana Dadá, que foi levada da família, aos 12 anos, por Corisco (e acabaria se apaixonando por ele), relembra, em “Mulheres no Cangaço”, a sede que passou, no Raso da Catarina, em território baiano, sem dispor de um cantil de água. Obrigados a buscar o líquido nos gravatás, o que obtinham era insuficiente para matar a sede.
Ainda hoje, depois de tantos longas, curtas e médias, ficcionais e documentais do gênero “Nordestern”, ninguém superou Hermano Penna na abordagem da presença feminina no Cangaço. Seu filme foi, claro, fonte de inspiração de “Maria e o Cangaço”, a série da Disney+, dirigida por Sérgio Machado. Outro baiano, embora nascido em Sergipe, José Umberto Dias, dirigiu um eficiente virta-metragem sobre Dadá, a cangaceira que lutou o quanto pôde para defender Corisco, já com os braços destruídos pelas balas. Mas o resultado do embate está sintetizado no verso glauberiano (musicado por Sérgio Ricardo): “Mataram Corisco e balearam Dadá”. Ela perdeu a perna e usou muleta até o fim de seus dias. Morreu, depois de longa vida como costureira, em fevereiro de 1994 (em abril, completaria 79 anos).

A Ecofalante compõe-se com diversas mostras. Uma delas reúne filmes selecionados por festivais internacionais (como Berlim e Sundance). Para a noite inaugural foi escolhido o documentário “O Efeito Casa Branca”, produção norte-americana, inédita em São Paulo, dirigida pelo trio Bonni Cohen, Jon Shenk e Pedro Kos, este de nacionalidade brasileira.
O filme aborda tema momentoso: o aquecimento global. E o faz retornando ao passado. Exatamente ao Governo George H. W. Bush (1988-1992), portanto há mais de três décadas, quando o mundo parecia empenhado e pronto para deter o aquecimento global. Porém, jogo de interesses – naquele momento em que as ideias de Reagan, Margareth Tatcher e Bush pai ganhavam a dianteira no debate ambiental – venceram a batalha. E mudaram o curso da história.
Outra mostra da Ecofalante que deve chamar atenção é a que apresentará “produções marcadas pelo engajamento político-feminista de um grupo de cineastas” que realizou seus filmes a partir do Ano Internacional da Mulher (1975) e nos anos subsequentes (até 1985).
Elas estão reunidas na retrospectiva “1975/85, do Ano Internacional da Mulher à Década do(s) Cinema(s) Feminista(s)”. Passadas cinco décadas da data instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Ecofalante selecionou títulos de diretoras internacionais e brasileiras. Destaque para a húngara Márta Mészáros, a georgiana Lana Gogoberidze, a alemã Helke Sander, as estadunidenses Lizzie Borden, Joyce Chopra e Claudia Weill. E as cariocas Helena Solberg, Ana Maria Magalhães e Eunice Gutman.
A Ecofalante valoriza mais a exibição de filmes do presente (sem esquecer o passado), seja em segmentos informativos ou retrospectivos, que mostras competitivas. Mas não deixa de distribuir prêmios (até R$ 20 mil) a obras brasileiras de produção recente. Os 14 longas e 22 curtas-metragens da mostra Territórios e Memória, que aglutina produções vindas de diversas regiões do país, serão avaliados e os melhores, laureados. Outro segmento – o Concurso Curta Ecofalante – que reúne 20 títulos realizados por estudantes de cursos audiovisuais brasileiros, também inclui distribuição de prêmios.
Como faz todos os anos, além de convidados e homenageados brasileiros, a Mostra Ecofalante conta com convidados internacionais. Nessa décima-quarta edição, dois deles chegam da França. O cineasta, escritor e ativista Cyril Dion acompanhará a exibição de dois longas – “Amanhã” e “Animal”. Ele também participará de Encontro com o Público para discutir “o potencial do cinema na construção de narrativas capazes de sensibilizar cidadãos para a luta pela sustentabilidade”.
O segundo convidado, Bernard Kuhn, é programador do Festival Internacional do Filme de Educação (FIFE), evento francês parceiro da Ecofalante. O FIFE assina a curadoria de sessão especial de curtas infanto-juvenis destinada à audiência brasileira. Kuhn apresentará a sessão e conversará com o público após a exibição.
14ª Mostra Ecofalante de Cinema
Data: 28 de maio a 11 de junho
Local: Reserva Cultural (duas salas), Circuito Spcine Lima Barreto (Centro Cultural São Paulo) e Cine Satyros Bijou, além de 45 espaços culturais e educacionais, como Fábricas de Cultura, Casas de Cultura, unidades dos CEUs (Centros Educacionais Unificados), universidades e outras instituições de ensino superior
Mais informações: www.ecofalante.org.br
Filme inaugural
. “O Efeito Casa Branca” (EUA), direção da dupla Bonni Cohen e Jon Shenk em parceria como brasileiro Pedro Kos
Mostra Homenagem a Hermano Penna
. “Sargento Getúlio” (1982, longa ficcional), seguido de debate com Hermano e o ator Lima Durate (Reserva Cultural, primeiro de junho, 16h)
. “Fronteira das Almas” (1987, longa ficcional)
. “Vôo Cego Rumo Sul” (2004, longa ficcional)
. “A Mulher no Cangaço” (45 minutos, Globo Repórter, 1976)
. “CPI do Índio” , “Smetak” e “Folia do Divino”
Programas Especiais
. “Um Olhar Inquieto: O Cinema de Jorge Bodanzky”, de Liliane Maia e Jorge Bodanzky (Brasil, 2025)
. “Slumlord Millionaire” (EUA): O documentário focaliza a luta entre proprietários e incorporadores de Nova York, em bairros que mais rapidamente vêm sofrendo processos de gentrificação. Vencedor do prêmio do público no festival DOC NYC. (Debate no dia 30 de maio)
. “O Jogo da Mente”: Filme acompanha um dos principais laboratórios de IA no mundo, liderado por Demis Hassabis, em sua busca por desenvolver tecnologias capazes de ampliar — ou até superar — as habilidades humanas (Debate 5 de junho)
Pré-Estreias Brasileiras
. “Antes do Último Voo” – Sessão acompanhada de debate (dia 6 de junho) sobre o tema Migração. O filme registra o drama da sul-africana Nduduzo Siba, que vê sua promissora carreira musical ameaçada por processo de expulsão do Brasil
. “Amazônia Azul” – Investigação sobre questões polêmicas nos mares brasileiros
. “Comida para Quem Precisa” – Documentário sobre o combate à fome no Brasil
. “O Monstro de Ferro Contra o Sul da Bahia” – O filme registra o impacto causado pela construção de porto (destinado ao escoamento de minérios) sobre o meio-ambiente no litoral sul da Bahia
Filmes selecionados ou premiados em festivais internacionais
. “Favoriten”, de Ruth Beckermann (Áustria) – Premiado no Festival de Berlim com o ‘Peace Film Award’
. “Democracia Noir” (Canadá) – Sobre o governo de Viktor Orbán, dirigente de extrema-direita da Hungria
. “Made in Ethiopia” – Menção Especial do Júri no Festival de Tribeca (EUA)
. “Rigoroso Escrutínio” (EUA) – Selecionado pelo Sundance, o filme acompanha as batalhas judiciais de advogado defensor dos Direitos Civis contra leis transfóbicas e em favor dos direitos de pessoas trans
. “Yintah” – Laureado com o Prêmio do Público no festival Hot Docs
. “Neve Negra” (EUA-Dinamarca) – Direção de Alina Simone. Prêmio Futuro Sustentável do Festival de Sydney, melhor documentário no Festival de Boston
. “Feitos de Plástico” (Canadá) – Selecionado para o Festival SXSW, o documentário acompanha investigação sobre o impacto dos microplásticos nos corpos humanos (Exibição seguida de debate no dia 3 de junho)
. “Nossa Terra, Nossa Liberdade” – Este documentário revela as atrocidades do colonialismo britânico no Quênia e como ativistas contemporâneos se organizam para buscar reparação histórica e recuperar suas terras ancestrais (seguido de debate sobre o tema “Povos & Lugares”, dia 10 de junho)
Memórias e Povos Originários
. “Memória Implacável” – Acadêmica Mapuche descobre em arquivo de Berlim testemunhos de prisioneiros de sua etnia expulsos de seus territórios ancestrais durante invasões que fundaram a Argentina e o Chile
. “Desterrar” (EUA) – Pescadores e membros de conselhos tribais indígenas enfrentam a ameaça da maior mina de cobre da América do Norte. O filme levanta reflexões sobre a resistência dos povos originários diante das grandes empresas mineradoras (debate debate no dia 29 de maio)
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