Olhar de Cinema surpreende o público com “Aurora” e “Cais” e apresenta aos melômanos o virtuosismo de Kathleen Parlow

Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba (PR)

O Olhar de Cinema (XIV Festival Internacional de Curitiba), que entrega seus prêmios na noite dessa quarta-feira, já conta com um franco favorito ao troféu de melhor filme — o longa documental baiano-pernambucano-francês “Aurora” (foto), dirigido por João Vieira Torres.

O cineasta, que é também artista plástico, performer e escritor, tem 43 anos e dupla cidadania: brasileira e francesa. Vive em Paris e em permanente contato com o Brasil, onde estão sua mãe, o pai, tios, primos e muitos amigos.

O primeiro longa-metragem de João nasceu de um sonho. O artista acordou tomado por lembranças da avó, Dona Aurora, parteira e curandeira do interior da Bahia, que ele mal conhecera. Mas que povoou seu imaginário, tantas eram as lembranças cultivadas no seio de sua família. João resolveu, então, realizar viagem cinematográfica por sua história de vida, somando lembranças e buscas geográficas e familiares.

Ao longo de densos 130 minutos, o primeiro longa-metragem do recifense, filho e neto de baianos, empreende busca por parentes brasileiros. Principalmente da mãe, tias e primas. Depois de um prólogo na França, onde João vive cercado de livros e de companheiros de vida afetiva, ele desembarca no Brasil. Primeiro na Bahia (Juazeiro e Juá). Depois na pernambucana Petrolina, unida a Juazeiro por ponte sobre o Rio São Francisco. Irá, também, a São Paulo, a grande metrópole brasileira, e ao Recife.

Para realizar “Aurora”, João cercou-se de parceiros de grande experiência. A começar por Marcelo Caetano, realizador de “Corpo Elétrico” e Baby”, que assumiu o posto de diretor-assistente. Na produção, Mariana Meliante, cineasta (“Mormaço”) e amiga de muitos anos. Assinam a fotografia a venezuelano-brasileira Wilssa Esser (“Levante”) e a paulistana Camila Freitas (“Chão”). Para montar o filme, João Vieira Torres somou forças com Deborah Viegas e Karen Akerman.

“Aurora” consumiu dez longos anos em seu processo de construção, do roteiro à cópia final. O diretor, que já realizara alguns curtas-metragens (inclusive “Mal di Mare”, premiado pelo Olhar de Cinema, em 2023), não planejava ser o protagonista do filme. Mas o processo foi exigindo, de tal forma, a sua presença, que ele assumiu tal protagonismo. Sua onipresença, felizmente, enriquece o filme, pois o artista não deseja aparecer mais que os outros familiares. Outro mérito merece destaque: João sabe ouvir, sabe estimular substantivas conversas com seus parentes.

No melhor momento do filme, o cineasta-personagem conversa com o pai, primeiro nas ruínas da casa onde viveram muitos de seus familiares. Depois, os dois saem pelas cercanias rurais daquele lar semidestruído e começam a explorar os arbustos. O que vemos é uma “aula paulo-freiriana” sobre o poder curativo das plantas. O pai raspa cascas de frondosos arbustos e fala do poder de cada uma delas para a cura de males variados. O filho-cineasta presta imensa atenção no que ouve.

Outras conversas vão render muito. Duas parentes radicadas em São Paulo, uma delas cabeleireira, evocarão momentos difíceis e depressão pós-parto, que quase acaba em internação em hospício. Casamento arranjado deixara a jovem, de 14 anos, em pânico. E a maternidade, também precoce, a jogara em estado de permanente sofrimento. O cineasta a tudo escuta, com afeto e cumplicidade.

Uma prima, engenheira agrônoma, reviverá memórias que têm muito a ver com o desenho moral de seus parentes nordestinos. Dos que seguem na região ou migraram para São Paulo. Ela conta que foi mãe solteira e, por isso, discriminada. Lembrará a rejeição dirigida ao primo, agora cineasta, por sua homoafetividade.

João Vieira Torres aparece no filme, desde seu prólogo francês, cercado por seus amores homoafetivos. Nos cativa com seu jeito de ser, suas ideias e crenças, seu interesse pelos livros e plantas (a câmara dedica atenção especial a uma voraz lagarta verde). Não haverá nenhum proselitismo.

Tudo flui serenamente e as histórias familiares irão se compondo. João lembrará um pônei rosa, brinquedo de estimação, que sumira, deixando-o em estado de desalento. Mais tarde, o pônei voltará à narrativa em conversa sincera com a mãe, que preferia que o filho jogasse bola ou brincasse de cowboy. Enfim, se dedicasse a “coisas de menino”.

A relação com essa mãe tão efusiva seguirá próxima e calorosa. Caberá a ela escandir versos de uma canção “cafona”, sucesso de Aguinaldo Timóteo. Cafona ou não, a música evoca dores de amor e saudades de lugares distantes. E serve de fecho à narrativa.

O filme só perderá seu tom sereno e reflexivo, quando mergulhar na trágica história de mulheres que têm em Dona Aurora, a parteira, sua ascendente. Algumas delas foram vítimas de assassinatos brutais. Eram jovens e foram mortas por companheiros possessivos, ciumentos, herdeiros e perpetuadores do catecismo do patriarcalismo. Vítimas de feminicídio por “razões” banais. Tais histórias são narradas no filme, de forma febril, através de recortes de jornais, páginas sangrentas, que tomam as vítimas como mulheres oferecidas ou levianas. Já os assassinos são vistos com tolerante complacência.

“Aurora” fez sua estreia no Visions du Réel (Festival Internacional de Documentários de Nyon), na Suíça. Seu roteiro foi engendrado pelo diretor, em parceria com Marcelo Caetano e a montadora Deborah Viegas. O resultado é notável. Seria ainda mais aliciante se ganhasse agilidade em seu desfecho, algo errático.

Outro filme, também documental e de origem nordestina, o baiano “Cais”, teve ótima acolhida no Olhar de Cinema. Dirigido por Safira Moreira, o longa (de sintéticos 69 minutos) nasceu de uma perda. Quando Angélica, mãe da soteropolitana Safira, morreu, a filha, dedicada à fotografia e ao cinema, sentiu necessidade de revisitar lugares que compunham a geografia de afetos maternos.

A cineasta, que acabara de ser mãe do pequenino Amani, resolveu levar o filho para navegar, com ela, pelas águas de seu “river movie”. De barco, pelo Rio Paraguaçu, que deságua na Baía de Todos os Santos, sem esquecer a Festa da Boa Morte, o Quilombo do Remanso, os lugares onde mãos femininas preparam o dendê ou a farinha de mandioca. Onde um fino artesão esculpe joias. Até chegar às distantes e imensas dunas do Maranhão.

As imagens, assinadas por Bernard Lessa, são de grande beleza. Elas se somam a testemunhos diversos, de senhora idosa, praticante do Jerê; de homem que narra a história de outro homem, envolto em cipós paralisantes pela Caipora, sem esquecer a sabedoria de Mateus Aleluia, de 81 anos, e de Tinganá Santana, de 42.

A música embala “Cais”, às vezes, no ritmo das águas do Rio Paraguaçu. Às vezes com a força dos rituais de matriz africana. Ouvimos os atabaques do Jerê, pontos de candomblé, cantos de trabalho. Até desaguar na filosófica “Copo Vazio”, de Gilberto Gil.

“Cais”, de Safira Moreira

O quinto longa-metragem da carioca Ana Rieper, de 53 anos, carrega título (“Paraíso”) tão sintético quanto o de “Aurora” e “Cais”.  E é, também, banhado em música, como seus trabalhos anteriores (“Vou Rifar meu Coração”, “Na Veia do Rio”, “Clementina” e “Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina”). Dessa vez, Ana realiza, com a ajuda do montador Pedro Bronz, um ‘filmensaio’ sobre o Brasil, esse país tão desigual e injusto. Um país fruto da ação predatória do poder colonial, sedimentado na brutal exploração do trabalho escravo.

Imagens de arquivos são ressignificadas e somadas a “personagens” cujos testemunhos Ana Rieper colheu ao longo dos últimos anos: uma obstetra afro-brasileira, um proprietário de terras e fabricante de cachaças, um casal de pastores evangélicos, Dona Dora, avó de Esther, e a jovem Luciana, devota de São Jorge. Esta, por experiência própria, sabe que a propalada “miscigenação harmoniosa”, tão apregoada no Brasil, não passa de um mito.

A leitura de “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre”, foi um dos pontos de partida do filme. Pesquisa intensa de arquivos mostrou à cineasta que “são raríssimas, senão inexistentes, imagens protagonizadas por famílias negras”. Isso ela pôde comprovar na busca que empreendeu em arquivos audiovisuais do século passado.

Ana Rieper e sua principal colaboradora, Suzana Amado, licenciaram imagens e composições musicais de diversas procedências e encontraram no Lupa-UFF (Laboratório  de Preservação Audiovisual, da Universidade Federal Fluminense), centenas de filmes domésticos, que retratam, em sua quase totalidade,  famílias brancas.

“Paraíso” é por demais ambicioso e exagera na celeridade de suas imagens. Mas serve como estímulo para que reflitamos sobre as mazelas estruturais desse país, que ainda não conseguiu assegurar direitos básicos à maioria de seus 200 milhões de habitantes.

Mais um longa-metragem internacional agregou-se à competição do Olhar de Cinema — o canadense “Medidas para um Funeral”, de Sofia Bodhanowicz, protagonizado pela atriz Deragh Campbell.

Comparado a seus concorrentes, o filme de Sofia parece, à primeira vista, um clássico do cinemão. Ao longo de 142 minutos, a realizadora canadense narra parte da história da violonista Kathleen Parlow (1890-1963), que divide com o pianista Glenn Gloud (1932-1982) a glória da música erudita made in Canadá. Gould se tornou uma lenda mundial. O filme dirá, que além do imenso talento, o pianista pôde contar com imensa ajuda de empresário capaz de projetá-lo planetariamente.

Já Parlow não desfrutou de tamanho reconhecimento. Em “Medidas para um Funeral”, veremos uma jovem doutoranda, que se entrega, de corpo e alma, ao resgate da vida e obra da violonista. Irá à Inglaterra e à Noruega em busca dos vestígios da prodigiosa artista. Carregando nas costas um violino raro, a moça acabará mimetizando fragmentos da vida de sua fonte de estudos. Em meio a imagens de recorte clássico, o espectador irá se deparar com pequenas trangressões de linguagem e com valioso enriquecimento da parte ficcional com imagens documentais. A principal delas nos mostrará Kathleen Parlow, já septuagenária, em entrevista a um bem-informado interlocutor. Registro em preto-e-branco.

Suportes primitivos de gravação — como os rolos (cilindros fonográficos) de Thomas Edson — serão vistos na ficção, pois ajudaram a perpetuar o violino tocado por Parlow. E, para enriquecer seu filme, que dá imenso destaque a personagens femininas, Sofia convocou a jovem violonista espanhola María Dueñas, 23 anos, de beleza arrebatadora, para atuar atriz e solista de concerto sinfônico. Concerto que repetirá, num palco de Montreal, o virtuosismo de sua antecessora.

“Medidas para um Funeral” resulta num filme que todos os melônamos hão de apreciar. E no qual as feministas encontrarão muitos motivos de identificação. Afinal, sua pesquisa traz ao mundo contemporâneo a arte de uma virtuose do violino, que não pôde desfrutou em vida da glória que caberia ao ilustre  Glenn Gould.

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