Apesar do tema difícil, “Uma Bela Vida” traz leveza e alegria ao cinema do politizado Costa-Gavras

Por Maria do Rosário Caetano

A revista Cahiers du Cinéma atribuiu três estrelas ao filme “Uma Bela Vida”, vigésima produção da longa carreira do diretor Konstantin Costa-Gavras, francês de origem grega.

“Le Dernier Souffle” (‘o último suspiro’, no original) chega aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 17 de julho. Como se vê, dessa vez, sua distribuidora, a Filmes do Estação, preferiu apostar em título otimista, contrário ao do livro que lhe deu origem e traz as assinaturas do médico Claude Grange e do jornalista, ensaísta e ex-guerrilheiro Régis Debray. Livro e filme, na França, têm o mesmo título – “Le Dernier Souffle”.

Por que destacar as três estrelas atribuídas pela bíblia da cinefilia francesa ao novo filme de Costa-Gavras? O que tal cotação tem de excepcional? Afinal, numa escala de “une à cinq étoiles”, três símbolos cintilantes não passam de cotação mediana.

Mesmo assim, Costa-Gavras deve ter ficado satisfeito. Afinal, seus filmes políticos, aqueles que lhe renderam fama planetária (caso da trilogia “Z”, “A Confissão” e “Estado de Sítio”; tetralogia se chegarmos ao palmaré e oscarizado “Missing, O Desaparecido”), nunca estiveram entre os preferidos dos críticos da Cahiers du Cinéma. Para eles, as realizações do grego, radicado em Paris desde os 18 anos, nunca passaram de thrillers narrados à moda do cinemão.

O realizador greco-parisiense, hoje com 92 anos, é mais francês que o Arco do Triunfo. Estudou no Idhec (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, hoje Femis), na capital francesa, e produziu todos os seus filmes (os falados em inglês ou francês) a partir de sua produtora baseada em Paris. Hoje, ele ocupa a respeitável função de presidente da Cinemateca Francesa (desde 2007) e vem fazendo respeitado trabalho em defesa da preservação do cinema da era silenciosa até tempos mais próximos. E ainda encontra ânimo para dirigir filmes pequenos como o quase documental “O Capital”, baseado em livro homônimo de Stéphane Osmont, e este que agora nos chega.

“Um Bela Vida” estreou no Festival de San Sebastián, na Espanha basca, e dali em diante somou muitos admiradores. Sua narrativa deveria, em princípio, causar espécie. Afinal, une dois protagonistas – um médico especializado em cuidados paliativos, o Dr. Augustin Masset (Kad Merad), a um renomado filósofo e escritor, Fabrice Toussaint (Denis Podalydés), envolvido com exames que podem lhe revelar diagnóstico indesejável.

Vale aqui um registro: Merad nasceu, 61 anos atrás, na Argélia. Radicou-se em Paris e tornou-se um dos mais festejados atores cômicos da França. Protagonizou um dos maiores sucessos da história cinematográfica do país dos irmãos Lumière – “Bienvenue Chez Les Ch’tis” (algo como “Benvindo à Casa dos Provincianos do Norte”, que entre nós chamou-se “A Riveira Não é Aqui”).

Em “Uma Bela Vida”, Merad interpreta um médico humanista, tolerante, que faz de sua profissão um sacerdócio. Ele faz questão de ministrar cuidados paliativos a seus pacientes terminais. Não mede esforços para atingir seu maior objetivo – dar tratamento digno e reconfortante aos que vivem seus últimos dias, semanas ou meses.

Denis Podalydés, nascido em Versailles, na França, há 62 anos, é ator de comédias e dramas, tanto no teatro (já ganhou seu Molière) quanto no cinema. Os filmes e séries nos quais atuou (são dezenas e dezenas) trazem na direção nomes prestigiados com Alain Renais, Tavernier, Goretta, Deville, Raoul Ruiz, Deplechin, Honoré, Amelio, Polanski, Assayas, Michel Haneke, Amalric, Noémie Lvovsky, Anne Fontaine, Valéria Bruni Tedeschi e Diane Kurys. Sem esquecer seu irmão, o diretor Bruno Podalydés, dois anos mais velho.

A escolha de Merad e Podalydés para protagonizar “Uma Bela Vida” foi muito bem sucedida. Os dois atores, sem nenhum histrionismo, conseguem transformar histórias que poderiam gerar um rio de lágrimas em delicada comédia.

Costa-Gavras desejou que assim fosse. E cercou seus protagonistas, que nada têm de galãs, de coadjuvantes muito conhecidos no cinema europeu – a espanhola Angela Molina (como uma líder cigana), a palestina Hiam Abbass (de “Lemon Tree”), a anglo-francesa Charlotte Rampling (très chic, mesmo à beira da morte), Karin Viard, Georges Corraface, entre muitos outros, incluindo vários membros da família Costa-Gavras (Romain, Nina, Maud, Romy e Julie Costa-Gravras, esta, a diretora do delicioso “A Culpa é do Fidel”). Cabe a Marilyne Canto interpretar Florence, a doce e prestativa esposa do filósofo Fabrice Toussaint.

O filme começa em Boston, nos EUA, onde o renomado intelectual Toussaint faz exames, os mais complexos, em aparelhos de alta sofisticação e precisão. Não recebe diagnóstico definitivo, mas as autoridades médicas norte-americanas recomendam que siga fazendo exames regulares em Paris. Tomado pelo temor de um tumor, o filósofo vai procurar o Dr. Augustin. Propõe que conversem sobre cuidados paliativos, a especialidade do novo amigo. Este, generoso como ele só, veste um jaleco branco no inusitado parceiro, de forma que ele possa acompanhar a reação dos doentes e, em muitos casos, das famílias (em especial esposas), que teimam em contrariar ordens médicas. Estas exigem transfusão de sangue, muita alimentação, enfim, tudo que os leigos julgam ser recursos salvadores, capazes de prorrogar a vida de seus amados maridos, esposas, pais ou filhos.

O filme ganhará ritmo e poder de sedução com as mais impressionantes e inesperadas histórias. Como a de um homem louco por potentes Harley-Davidson e feliz por receber, no pátio do hospital, antes do momento derradeiro, horda de amigos motoqueiros. Ou a que mostra uma festa cigana comandada pela veterana Angela Molina (de apenas 69 anos, mas aparentando bem mais). A velha zíngara quer partir sem trazer dor aos que tanto ama. Por isso, recorre a muitos cantos e danças.

As histórias humanas desses pacientes servirão de matéria-prima para o novo livro do filósofo Fabrice Toussaint. Ele, afinal, também vive a preocupação com sua própria saúde, a ponto de irmão, médico, levá-lo a hospital de ponta nos EUA. Sua experiência ao lado do Dr. Augustin o levará a descobrir diferentes formas de lidar com a vida e com a morte.

Costa-Gavras realizou — com “Uma Vida Feliz” — seu filme mais amoroso e gentil. Ninguém sairá triste da sala de cinema. Pena que o projeto de tratamento paliativo francês não tenha similar em nosso país. Mesmo na França, os dados são preocupantes. De cada 40 mil pacientes só dois mil podem ser atendidos por equipes como as comandadas pelo Dr. Augustin Masset. E olhe que a França tem um dos sistemas de saúde mais avançados do mundo (vide o filme “A Guerra Está Declarada”, de Valérie Donzelli, de 2010).

A situação dos idosos é preocupante no mundo inteiro. Com o envelhecimento da população, maior na Europa que nos países do Terceiro Mundo, a situação torna-se cada vez mais urgente. Um dos personagens de Costa-Gavras comentará: “Na época de Cristo, uma pessoa vivia, em média, 35 anos. Na Idade Média, subiu para 45. Hoje, os homens vivem em média 80 anos e as mulheres, 85”.

O nonagenário diretor greco-francês voltou sua atenção aos que, ao contrário dele, não estão fazendo filmes (e dos bons), mas sofrendo, com suas famílias, por estarem enfermos, vivendo seus derradeiros momentos. Quis (e conseguiu) dar “uma bela vida” — ou “desfecho sem sofrimentos” — aos seus contemporâneos. E fez muito bem em colocar os rituais ciganos na parte final. Se há um povo cheio de vida, danças, músicas e cores, eles são aqueles que presentearam a França com o grande guitarrista Django Reinhardt (1910-1953). Estrela máxima do gypsy jazz (ou jazz manouche).

Se tivesse assistido a esse “Último Suspiro”, Django decerto veria nele um similar (no quesito alegria) de suas composições que ainda hoje encantam o mundo. E que encantaram, em especial, Woody Allen, a ponto desse diretor tão inspirado dedicar a ele o delicioso “Poucas e Boas” (“Sweet and Loundown”, 1999).

 

Uma Bela Vida | Le Dernier Souffle
França, 2024, 100 minutos
Direção e roteiro: Costa-Gavras
Elenco: Kad Merad, Denis Podalydès, Charlotte Rampling, Hiam Abbass, Ángela Molina, Georges Corraface, Karin Viard, Agathe Bonitzer, Marilyne Canto, Namory Bakayoko, Jade Phan-Gia, Virginie Sibalo, Maria McClurg e vários membros da Família Costa-Gravras (Romain, Nina, Maud, Romy e Julie Costa-Gravras)
Fotografia: Nathalie Durand
Edição: Costa-Gavras e Loanne Trevisan
Produtores: Costa-Gavras, Alexandre Gavras, Michèle Ray e Michèle Ray-Gavras
Música: Armand Amar
Design de Produção: Catherine Werner Schmit
Distribuição: Filmes do Estação

 

FILMOGRAFIA
Konstantin Costa-Gavras
Cineasta, roteirista, montador e gestor da Cinemateca Francesa desde 2007. Nasceu em 12 de fevereiro de 1933, em Lutrá Iréas, Arcádia, Grécia

2024 – “Uma Bela Vida”
2019 – “Adults in the Room”
2012 – “O Capital”
2009 – “L’Éden à L’Ouest”
2005 – “O Corte”
2002 – “Amém”
1997 – “O Quarto Poder”
1993 – “O Pequeno Apocalipse”
1989 – “Music Box – Muito Mais que um Crime” (Urso de Ouro em Berlim)
1988 – “Atraiçoados”
1986 – “Conselho de Família”
1983 – “Hanna K”
1982 – “Missing – O Desaparecido – Um Grande Mistério” (Palma de Ouro em Cannes, dividido com “Yol”, do turco Yulmaz Guney; Oscar de melhor roteiro)
1979 – “Um Homem, Uma Mulher, Uma Noite” (Clair de Lune)
1975 – “Sessão Especial de Justiça” (melhor diretor em Cannes)
1972 – “Estado de Sítio”
1970 – “A Confissão”
1968 – “Z” (Prêmio do Júri, em Cannes, Oscar de melhor filme estrangeiro)
1967 – “Um Homem a Mais”
1965 – “Crime no Carro Dormitório”

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