Festival de Vitória abre espaço nobre para filmes capixabas e homenagens à atriz Verônica Gomes e ao cantor-ator Ney Matogrosso
Foto: Ney Matogrosso © Lucas Landau/Acervo Galpão IBCA
Por Maria do Rosário Caetano
A trigésima-segunda edição do Festival de Cinema de Vitória exibe, a partir de sábado, 19 de julho, quase cem filmes distribuídos por onze mostras.
O cantor e ator Ney Matogrosso é o grande homenageado dessa edição. Ele receberá o Troféu Vitória por sua rica contribuição ao cinema brasileiro, no qual sonhou fazer carreira desde a juventude. Antes de ser cantor, Ney fez teatro e, nos seus desejos de juventude, se imaginava representando personagens cinematográficos.
Tudo começou em 1988, com “Sonho de Valsa”, fecho da delirante trilogia de Ana Carolina, iniciada com “Mar de Rosas” e sequenciada com “Das Tripas Coração”. Depois, atuou em “Caramujo Flor”, de Joel Pizzini, e não parou mais. O mesmo Pizzini construiria, décadas depois, um telúrico e mágico retrato do artista (“Olho Nu”, 2012). E produziria a animação seriada “O Menino que Engoliu o Sol”, de Patrícia Alves Dias, recriação de livro de Ricardo Câmara, inspirado na infância nômade de Ney (ver abaixo texto de Joel Pizzini sobre suas parcerias com o conterrâneo).
Até chegar ao exitoso “Homem com H”, de Esmir Filho, cinebiografia do cantor e performer vista por quase 650 mil espectadores (sem contar o streaming), Ney Matogrosso atuou em quase 20 curtas, médias e longas-metragens.
Para a quinta-feira, 24 de julho, dia em que ele receberá o Troféu Vitória, foi programado o longa ficcional “Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha”, de Helena Ignez e Ícaro Martins. Ney interpreta o brandido sganzerliano (papel original de Paulo Villaça), já entrado nos anos e encarcerado.
O festival capixaba vai festejar Veronica Gomes, prata-da-casa. Ela é atriz, diretora, produtora e militante de causas culturais. Nos últimos anos, Veronica estabeleceu relação de proximidade com o audiovisual. Primeiro, atuou no longa-metragem “Os Primeiros Soldados”, de Rodrigo de Oliveira (2022). Em seguida, atuou em “Margeado”, de Diego Zon, ainda inédito no circuito comercial. Esse filme será apresentado em sessão hors concours, nesse sábado, no Cine Teatro Sesc Glória. Depois da sessão, a atriz terá encontro com a imprensa e a comunidade artística para relembrar sua trajetória. Os dois homenageados terão suas vidas narradas em publicação (o Caderno do Homenageado) produzida e editada pelo próprio festival.

Ano passado, o grande vencedor da competição vitoriana foi um longa 100% capixaba, o instigante “Presença”, de Erly Vieira. Esse ano, o representante do estado será “O Deserto de Akin”, de Bernard Lessa, que disputará o Troféu Vitória com os cariocas “Insubmissas”, de quinteto feminino (Ana do Carmo, Carol Benjamin, Julia Katharine, Luh Maza e Tais Amordivino), e “Brasiliana: o Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo”, de Joel Zito Araújo; o cearense “Centro Ilusão”, de Pedro Diógenes, e o goiano “Mambembe”, de Fábio Meira.
Para mostrar que a produção do Espírito Santo cresce a cada ano (se continuar assim, em breve haverá competição de “Longas do Capixabão”, nos moldes do que acontece no Gauchão, em Gramado, no Candangão, em Brasília, e no Olhar Ceará, no Festival de Fortaleza) serão exibidos quatro longas e um média-metragem com DNA local.
Os filmes made in Espírito Santo são “Meu Pai e Eu”, de Thiago Moulin, “Prédio Vazio”, de Rodrigo Aragão,“Game Girls”, de Saskia Sá (todos de longa duração), “Margeado”, de Diego Zon, e o média “Mercúrio Cromo – A Vida e a Obra de Aprígio Lyrio”, de Tati Rabelo e Rodrigo Linhales.
O primeiro deles – “Meu Pai e Eu” – participou da competição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, dedicada a filmes que valorizam o uso de arquivos audiovisuais. Moulin cativou o público com a sensível história de um filho (ele mesmo), já adulto, que reencontra a memória do pai, já falecido, guardada numa mala, que ele deixara fechada em sua residência. A cada item encontrado (uma foto, um poema, um bilhete), o longa-metragem revela as dores que atormentaram o pai, um bancário que se alimentou de muitos sonhos. Mas frustrou-se por não poder realizá-los.
“Prédio Vazio” é o oposto de “Meu Pai e Eu”. E não é para menos. Seu diretor, Rodrigo Aragão, de 48 anos, capixaba da gema, é louco por filmes de terror. E especializou-se em dirigi-los, tornando-se nome respeitado na criação de maquiagem e efeitos especiais (para monstros e similares).
Aragão cultiva, ardorosamente, sagas sangrentas e com personagens que voltam do além, aqueles de olhos vazados. E, com persistência, fez de seu estado natal uma espécie de “capital do terror brasileiro”. Já dirigiu seis filmes e não deve parar tão cedo. O balneário de Guarapari, sua cidade natal, conhecida como a “praia dos mineiros”, ambienta sua novíssima narrativa terrorífica. No elenco, uma das musas do cinema alternativo brasileiro, a ótima Gilda Nomacce.
Curioso que Aragão tenha escolhido a ensolarada Guarapari e o coloridíssimo Carnaval brasileiro como cenário e festa deflagradora de sua trama macabra. O senso comum diz que cada um vê o que quer. A fértil imaginação do cineasta-roteirista enxergou, na orla atlântica de seu estado natal, um prédio decadente e habitado por zumbis. Criado com recursos digitais, o edifício tornou-se o habitat de “almas atormentadas”, prontas a pregar, ao longo de 80 minutos, muitos sustos nos espectadores.

“Game Girls”, de Saskia Sá, de sintéticos 70 minutos, se propõe a mostrar o universo dos jogos digitais do ponto-de-vista feminino. Suas personagens são meninas que jogam e outras que se enquadram na categoria “desenvolvedoras”. Por isso, seu documentário acompanha jogadoras de E-sports, mostrando suas vidas cotidianas como fio condutor da narrativa.
As garotas são vistas em sua dedicação aos jogos, tidos como diversão de meninos. E a diretora, como esse filme, se propõe a mostrar a evolução histórica da participação das mulheres multiplicada em funções de jogadoras-criadoras-e-
“Margeado”, de Diego Zon (estrelado pela homenageada capixaba Veronica Gomes) aborda as consequências do rompimento de barragem, que passará a verter lama tóxica em uma vila de pescadores capixaba (qualquer semelhança com os desastres de Mariana-MG não será mera coincidência).
O filme centra-se nas vidas da família de Yara e Dingue, todos forçados a deixar suas casas por causa do desastre ambiental. O realizador vai explorar, em elásticos 150 minutos, a perda, o deslocamento e a memória de seus personagens silenciosos. E construirá um filme sensorial, que transita do litoral rumo às montanhas. Entre as locações de “Margeado”, que participou da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, estão diversas localidades do Espírito Santo. Uma delas, Alegre, assistirá a exibição especial do filme durante o festival.
O média-metragem “Mercúrio Cromo – A Vida e a Obra de Aprígio Lyrio” acompanha a trajetória do cantor e compositor capixaba, Aprígio Lyrio, artista queer, dedicado à música e à contracultura na década de 1970. Ele atuava junto à banda Os Mamíferos e próximo a Ester Mazzi e Afonso Abreu. Levou vida intencionalmente desregrada e morreu cedo (em 1983, aos 33 anos).
No documentário, que incorpora inserções ficcionais, Lyrio é visto na infância, na juventude e na maturidade. Nesta fase, a mais intensa do filme, ele é interpretado pelo cantor Juliano Gauche. No currículo do artista capixaba, uma curiosidade: ele atuou no obscuro “Paraíso no Inferno”, longa-metragem dirigido, em 1977, pelo ator Joel Barcellos.
O mais tradicional festival do Espírito Santo soma à sua competição principal — a de longas-metragens — oito curtas capixabas e doze brasileiros, em sessões que costumam abarrotar o Cine-Teatro Glória, mantido pelo Sesc.
Os longas ainda não conseguiram apresentar tamanho poder mobilizador. Os curtas, bem numerosos (dois terços da programação são dedicados a eles), constituem a alma da festa capixaba. Por isso, o festival reúne, além dos curtas nacionais e capixabas, dezenas de curtas divididos em mostras que qualquer leigo consegue identificar. Caso de “Cinema e Negritude”, “Mulheres no Cinema”, “Cinema Fantástico” e “Cinema Ambiental”. Já os nomes de outras competições soam por demais abstratos: “Quatro Estações”, “Corsária”, “Outros Olhares”. Todos eles poderiam ser abrigados nesta última mostra, a Outros Olhares, não?
Vale destacar a competição de Videoclipes, uma das peças de resistência da festa capixaba. Inscrevem-se centenas de títulos. Este ano, foram selecionadas 15 produções sendo dez nacionais (duas com parceiros estrangeiros) e cinco do Espírito Santo. Afinal, o estado viu nascer Nara Leão, Roberto Carlos e Sergio Sampaio.
MOSTRA COMPETITIVA NACIONAL (longas-metragens)
. “Insubmissas “, de Ana do Carmo, Carol Benjamin, Julia Katharine, Luh Maza e Tais Amordivino (ficção. RJ, 72’)
. “O Deserto de Akin”, de Bernard Lessa (ficção, ES, 78’)
. “Centro Ilusão” (Pedro Diógenes, ficção, CE, 85’)
. “Mambembe”, de Fábio Meira, documentário, GO, 98’)
. “Brasiliana: o Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo”, de Joel Zito Araújo (documentário, MG-RJ, 83’)
MOSTRA CAPIXABA (longas-metragens)
. “Meu Pai e Eu”, de Thiago Moulin (longa)
. “Prédio Vazio”, de Rodrigo Aragão (longa)
. “Game Girls”, de Saskia Sá (longa)
. “Margeado”, de Diego Zon (estrelado pela homenageada capixaba Veronica Gomes – longa).
. “Mercúrio Cromo – A Vida e A Obra de Aprígio Lyrio”, de Tati Rabelo e Rodrigo Linhales (média-metragem)
FOCO CAPIXABA (curtas-metragens)
. “Nosso Tempo a Sós”, de Júlio Costa (ficção, 12’)
. “Castelos de Areia”, de Giuliana Zamprogno (experimental, 14’)
. “A Última Sala”, de Gabriela Busato e Júlio Cesar, documentário, 20’)
. “Os Cravos”, de Renan Amaral (ficção, 15’)
COMPETIÇÃO NACIONAL (curtas-metragens)
. “A Nave que Nunca Pousa”, de Ellen de Morais (doc, PB, 15’)
. “O Tempo é um Pássaro”, de Yasmin Thayná (fic, RJ, 18’)
. “Arame Farpado”, de Gustavo de Carvalho (fic, SP, 21’)
. “Na Volta Eu Te Encontro”, de Urânia Munzanzu,(doc, BA, 13’)
. “Carne Fresca”, de Giovani Barros (fic, RJ, 24’)
. “Fenda”, de Lis Paim (fic, CE, 23’)
. “Aparição”, de Camila Freitas (doc, SP-RJ, 20’)
. “Entre Corpos”, de Mayra Costa (fic, AL, 17’)
. “Sola”, de Natália Dornelas (fic, ES, 23’)
. “O Panda e o Barão”, de Melina Galante (fic, ES, 16’)
. “Waldo”, de Fabricio Fernandez e Diego Nunes, Doc, ES, 16’)
. “A Invenção do Orum”, de Paulo Sena (fic, ES, 18’)
MOSTRA NACIONAL DE VIDEOCLIPES
. “Kel Dia”, de Luiza Botelho. Artista: Zubikilla Spencer (São Paulo-Cabo Verde)
. “Intuir”, de Beatriz Nominato e Matheus Vinhas. Artista: João Donato e Donatinho (Acre)
. “Me Proteja Orixá”, de Fernanda Medeiros e Lucas Marinho. Artista: Marinho e Nébula78 (Goiás)
. “Atemporal”, de Gui Cavalcanti. Artista: Flávio Marciano (Goiás)
. “Ensolarada”, de Bruna Sozzi. Artista: Rachel Reis (Bahia)
. “Carta”, de Enzo Rodrigues e Jessica Roberts. Artista: Jessica Roberts (Espírito Santo)
. “João Bananeira”, de Patrick Gomes e Hecthor Murilo. Artista: Gastação Infinita (Espírito Santo)
. “Cena de Cinema”, de Luiza Grillo Rabello. Artista: Vitu feat Luiza Dutra (Espírito Santo)
. “Salve”, de Antônio Carlos Jesus e Evelyn Vicente do Carmo. Artista: DoCarmo (Espírito Santo)
. “Dialeto Marginal”, de Luiz Eduardo Neves. Artista: JR Conceito (Espírito Santo)
. “Bigode”, de Bianca Souza. Artista: Carulina (São Paulo)
. “To Stumble” (Upon confusion), de Mooluscos. Artista: gabre (São Paulo-Portugal)
. “Mercenários do Amor”, de Pedro Capello. Artista: Doce Delix (Rio de Janeiro)
. “Filme Trash”, de Lucas Sá. Artista: Frimes. (Maranhão)
. “Meu Desenho”, de Giovanni Venturini. Artista: Gio Elefante (Paraná-RJ-SP)
Joel Pizzini dirigiu Ney Matogrosso em “Caramujo Flor” e “Olho Nu”
Por Joel Pizzini
Ney está no imaginário sul-matogrossense desde os Secos & Molhados, e quando criança, em Dourados, era motivo de orgulho saber que ele vinha de Bela Vista, fronteira com o Paraguay, onde nascera. Num cenário conservador, imperava um certo mal-estar entre os homens mais velhos, sobretudo por sua postura libertária e androgenia, mas as mulheres e crianças sobretudo, amavam aquele ser livre e saltitante que nos fazia dançar o “Vira” e sonhar.
Anos mais tarde, já na universidade, em Curitiba, estudante de Comunicação, decidi entrevistá-lo para “O Progresso”, um jornal de Dourados, no qual exercitava meus primeiros textos. O show chamava-se “Matogrosso” e isso era uma razão a mais para investigar suas relações com o estado.
Estávamos em 1982, pós-anistia e pré-democratização do país e Ney me contava sobre seu vínculo mítico com o velho Mato Grosso, depois dividido, a inspiração para os cenários e figurinos e um espírito “marginal” que era típico da fronteira que se espelhava nos banhos que tomava nu no Rio Apa e os primeiros conflitos com o pai militar.
Seis anos depois fui realizar “Caramujo-Flor” e, diante da recusa de Manoel de Barros aparecer no filme, convidei o Ney para incorporar a persona do poeta, o que no ato ele aceitou, especialmente por que iria expressar no corpo a poética do chão. “Caramujo-Flor” estreou no Festival de Brasília com a presença do Ney, que abraçou o filme a ponto de cancelar uma excursão pela Europa para fazer o meu primeiro curta. Extrapolei nas filmagens, rodando muito mais o que estava previsto no argumento, afinal Ney no seu apogeu oferecia cenas incríveis no Pantanal, onde interagia “promiscuamente” com a natureza.

Carreguei por anos essas latas que guardavam as sobras do filme até que, duas décadas mais tarde, quando começamos a produzir “Olho Nu”, a primeira pergunta que Ney me fez foi: onde estão as cenas que não entraram no “Caramujo”?
Deu a sensação que eu antevia essa nova oportunidade para reciclar esse material bruto, que entrou na íntegra em “Olho Nu”. Fiquei impressionado como Ney tinha, como dizia Glauber, a consciência de sua proporção cultural, ao armazenar em sua casa inúmeras fitas de vídeo VHS e rolos de Super 8, que hoje alimentam vários filmes e especiais a seu respeito. Ney se desnudou em “Olho Nu”, abriu seu baú e revelou aspectos desconhecidos de seu processo criativo e personalidade. Falou, para meu espanto, que “não sabia improvisar” (precisa ensaiar muito e dominar primeiro o conceito) e que a disciplina, herdada do pai militar, de certa forma o salvou e se reflete no rigor de seu trabalho.
Nas mais de 500 horas de material de arquivo que reunimos de seu acervo, descobrimos talvez a única imagem em movimento de seu pai Antônio, num relato da reconciliação. O pai admitindo sua revolta quando viu Ney “rebolando” mas, com o passar do tempo, “aderiu” ao jeito do filho, respeitando sua escolha.
Nas filmagens, Ney nos presenteou com números de performance. Acessando o universo de sua mãe Dona Beita, 103 anos, ela nos confidenciou passagens da infância do filho e nos ajudou a convencer o Ney a voltar para Bela Vista para filmar sua paisagem originária.
Em 2022, produzimos a série de animação “O Menino que Engoliu o Sol”, a partir de um livro de Ricardo Câmara e inspirada na infância nômade de Ney, com direção de Patricia Alves Dias. Ney se identificou com o personagem e narrou a série. Brincando com a voz, cantarolou uma guarânia de autoria de seu avô, de quem adotou o nome artístico Matogrosso.
Ney sempre conviveu com a mística do eterno retorno, de um dia voltar para Mato Grosso (do Sul) até o dia em que ele adquiriu um sítio em Saquarema e me contou que, ao olhar no mapa, percebeu que seu refúgio natural se situa na Serra do Mato Grosso.