Reclusão compartilhada

A certa altura de “Eu e Você”, os dois protagonistas dançam ao som de “Ragazzo solo, ragazza sola”, balada sobre dois jovens solitários, um garoto e uma garota, que, romanticamente, compartilham suas dores. A cena, embalada pela música, parece emblemática e sintética ao que é o longa. Aquele é o momento em que, enfim, percebem a cumplicidade compartilhada, apesar da distância e das diferenças. E, que, assim como na canção, aponta para a continuidade de um estado de incerteza.

“Ragazzo solo, ragazza sola” volta um pouco depois, encerrando o filme, mas em sua versão original, “Space Oddity”. Nesta, David Bowie canta sobre a sensação de alteridade de um astronauta no espaço sideral, encarando os cosmos tanto com perplexidade quanto com indiferença, crente de um não futuro. A diferença no tom das letras parece estar vinculada à condição do personagem, agora sozinho, em seu mundo, da música nos fones de ouvido. Quase como se, na incerteza e no desconsolo, só o outro impede o mundo de ser tão hostil.

Tal temática parece cercear a obra do italiano Bernardo Bertolucci, que voltou a filmar após um hiato de nove anos, vários problemas de saúde e o confinamento em uma cadeira de rodas. Bertolucci parece ter um gosto por histórias que trabalham a autorreclusão como forma de autoconhecimento. Ou seja, filmar personagens que buscam, de alguma forma, isolar-se do mundo, para entender melhor seu papel nele. Em “Eu e Você”, exibido em sessão hors concours do 65º Festival de Cannes, um adolescente com problema de sociabilidade mente para os pais e finge ir a uma viagem escolar.

Durante uma semana, vive no depósito subterrâneo de seu prédio, cercado por livros, música, computador e junk food. Meio que por força do destino, o refúgio é invadido por sua meia-irmã, que não via havia anos. Tentando se livrar da dependência química, ela se força a esse ambiente, frustrando os planos do garoto. O que vem disso são descobertas, não as autodescobertas a partir do isolamento, mas as da convivência. Crescidos, com um erotismo latente – o incestuoso também se faz presente em várias obras do cineasta –, ambos trafegam à égide da tolerância.

Bertolucci, que não fazia um longa inteiramente italiano desde 1981, com “A Tragédia de um Homem Ridículo”, ficou muito conhecido por suas obras políticas, como “Antes da Revolução” (1964), “O Conformista” (1970), “1900” (1976) e “Os Sonhadores” (2003). O cineasta, contudo, também tem uma forte propensão a histórias intimistas, que têm, sim, claro, muitas vezes, questões políticas como pano de fundo. O intimismo narrativo vem do espaço, fechado, isolado, impenetrável. Seus personagens, ainda que transitem em outros espaços, buscam a reclusão, uma espécie de alteridade em si mesmo, onde podem se livrar da dor e do desencanto. É o encontro com outra pessoa no mesmo estado, nesse espaço, que cria os conflitos – na maneira em que tem que conviver com esse outrem. São características que guiam obras-primas como “O Último Tango em Paris” (1972) e “Assédio” (1998).

“Eu e Você” se foca nos jovens contemporâneos e na realidade do século XXI. Os problemas parecem menos estar relacionados a como devem e podem mudar o mundo ao seu redor, e sim em como deveriam lidar com ele. Lorenzo e Olivia parecem buscar escapismos, seja através da tecnologia, seja através da heroína. Não há nada de libertador ali, mas é quase uma condição sine qua non para existirem. Os problemas familiares, a inabilidade social, a raiva descontrolada e sem foco; tudo parece contribuir para retratar a sociedade frenética dos tempos modernos. Bertolucci desacelera tudo, vai de contramão a isso, e não deixa se afetar pela linguagem pop que o cinema importou da televisão, do videoclipe e da publicidade para registrar esses tempos. É um acerto e tem tudo a ver com sua premissa: a cumplicidade vem da observação, do tempo da convivência. A reclusão permite isso; a partir do momento em que seus personagens se colocam nele, só há o tempo morto, das não exigências do mundo moderno.

Seu conto fraternal, que rendeu boa bilheteria na Itália, porém, é um filme menor na carreira do cineasta. Sem a mesma preocupação formal com o uso da cor e com o movimento de câmera, que tanto transformaram seus filmes anteriores, e sem o mesmo vigor, “Eu e Você”, espera-se, será apenas o aquecimento após o longo hiato.

Eu e Você / Io e Te
(Itália, 97 min., 2012)
Direção: Bernardo Bertolucci
Distribuição: Califórnia Filmes
Estreia: 20 de dezembro

 

Por Gabriel Carneiro

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