Medo invisível

É uma pena que Ugo Giorgetti encontre tantas dificuldades para filmar. Seu longa mais recente, “Uma Noite em Sampa”, foi filmado em agosto de 2013, num esquema rápido (11 noites) e barato (orçado em R$ 1,3 milhão), e ainda assim custou a ser concluído por falta de verba e demora de repasse. Infelizmente, seus filmes são pouco comerciais, mesmo trabalhando com humor e filmando com elegância e clareza. O baixo orçamento, inclusive, parece uma tentativa de superar as dificuldades de se filmar, depois do sofrimento com o anterior “Cara ou Coroa” (2012). Giorgetti volta, assim, às suas origens, com uma trama simplificada, restrita a uma locação, apostando no texto e na encenação – como fizera em “Jogo Duro” (1985) e em “Festa” (1989), entre seus melhores filmes.

Em “Uma Noite em Sampa”, um grupo excursiona até São Paulo para uma noite de teatro e jantar. Porém, ao sair da peça, encontram o ônibus fechado e não há sinal do motorista. Dentro do ônibus, todos os celulares. A noite avança, o local esvazia, as luzes se apagam e apenas o grupo, que saiu da capital em busca de qualidade de vida nesses condomínios de luxo no interior, permanece. A partir dessa situação, Giorgetti esquadrinha, com humor e ironia, os medos da classe média paulista.

O cineasta sempre gostou de filmar personagens marginalizados (desempregados, vigias, jogadores de sinuca etc.), colocando-os no protagonismo de seus longas e assumindo seus olhares sobre o mundo. Foi assim em “Jogo Duro”, em “Festa”, em “Sábado” (1994) e também em seus dois “Boleiros”. São personagens que sofrem por serem socialmente invisíveis e tentam sobreviver como podem e como deixam. Abujamra, em “Festa”, repete sempre “esse é alguém” ao se referir sobre quem pode subir à festa grã-fina que acontece no andar de cima enquanto ele e outros esperam o momento para entreterem quem os contratou. “Uma Noite em Sampa” parte de uma premissa próxima a esses filmes, porém inverte o olhar. O foco é a classe média, que se isolou em fortificações com receio do mundo, mas não abre mão do status da vida cultural que a capital proporciona.

Há um quê de “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, e de “O Anjo Exterminador” (1962), de Luis Buñuel, em “Uma Noite em Sampa”. O grupo vai ao Teatro Ruth Escobar, na Rua dos Ingleses, no centro de São Paulo, visto como uma região perigosa e violenta. Esse medo de qualquer coisa que possa causar uma disrupção no bem-estar os paralisa. Não conseguem andar uma quadra sequer para ver se obtém ajuda, se há um ponto de táxi, de ônibus, qualquer coisa que possa salvá-los de uma noite esperando a salvação. Quando avançam um pouco, algo interrompe a ação, e juntos permanecem, como no filme de Buñuel, citado no longa por um personagem e não entendido por outro.

O ficar parado desse grupo revela também a paranoia urbana que tomou conta das classes mais abastadas. Ninguém consegue agir, fazer algo construtivo, apenas esperam, conversam, fazem planos e criam ideias fabulosas que alimentam o medo.  Não saem de cena por medo de serem assaltados, estuprados, assassinados, por toda sorte de pessoas. Giorgetti é muito hábil em sua construção. Há uma imagem que molda o correto, são eles todos, aquele grupo caucasiano, vestido em roupas novas, elegantes, finas, tidos como bem informados, cultos. Algumas pessoas passam: um senhor também caucasiano se veste mais despojadamente enquanto caminha com o cachorro e é tido como louco; os flanelinhas, de pele escura, são ameaças, especialmente quando acendem um cigarro de maconha; os mendigos, então, são párias. Toda essa gama de pessoas que passam pelo grupo é vista como disrupções, nenhuma delas se enquadra num padrão aceito, não são como eles, como um personagem frequentemente ressalta. Entre eles, relatam histórias sensacionalistas ouvidas de sequestros, mortes e afins contra pessoas de bem, aflorando o medo. Por vezes, um acontecimento mobiliza os excursionistas (onde está o motorista?, está dentro do ônibus dormindo? etc.), mas a tônica é sempre ficarem unidos. Um ex-policial alerta constantemente que não podem confiar em ninguém, que há uma conspiração de pessoas de aparência pobre para lhes roubar seus pertences, tirar deles o que há de mais sagrado, o dinheiro.

Nesses eternos confrontos em que os personagens se encontram, Giorgetti dá a tônica com “O Deserto dos Tártaros”: esperam sempre por algo que aconteça, mas nada ocorre. Uma noite passa e, paralisados pelo medo do invisível, aguardam o mal iminente que nunca parece chegar. O cineasta ainda dá a resposta. A única personagem que consegue aproveitar a situação em que se encontra é uma senhorinha cega, que foi com a filha. Enquanto todos repudiam a presença dos mendigos que se instalam na praça, ela aceita o convite para se aquecer no fogo e conversa com eles. Ela não medeia o mundo pelos olhos, a cor da pele, as vestes não a afastam de outro ser humano – o preconceito está nos olhos da classe média, nos diz Giorgetti. Não parece à toa que o cineasta se debruçou sobre essa classe em seu novo longa, justamente ele que sempre deu voz aos invisíveis: vivemos em tempos que a classe média se impõe como uma extensão dos afortunados, reproduzindo um ranço propagado em voz alta nos extremismos sensacionalistas da era eletrônica e virtual. Giorgetti é um cineasta de nosso tempo, enxerga como poucos no Brasil os discursos da contemporaneidade – e, neles, inflige boa dose de humor para mostrar que o mundo pode ser mais leve dentro do absurdo que vivemos.

Assista ao trailer do filme aqui.

 

Uma Noite em Sampa
Brasil, 75 min., 2016
Direção: Ugo Giorgetti
Distribuição: O2 Play
Estreia: 26 de maio

 

Por Gabriel Carneiro

One thought on “Medo invisível

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.