Filmar, cantar, inventar…
Dellani Lima está por toda parte. Para o diretor-ator-escritor-músico, nascido em Campina Grande (PB), fazer de tudo um pouco, sempre de maneiras distintas, evitando se repetir, resume a si e sua trajetória. “Sempre fugi de qualquer moda. Se alguém me diz que está envolvido num projeto e eu acho parecido com aquilo que estou fazendo, no mesmo momento, dou um jeito de trocar o meu”, revela.
Como diretor, Dellani está nos curtas “Aquele Cara” (2013) e “Agreste” (2015) e nos longas “O Tempo Não Existe no Lugar Onde Estamos” (2015), “Trago seu Amor” (2015) e “Planeta Escarlate” (2016, codireção de Jonnata Doll). Como ator, pode ser visto em “Os Residentes” (Tiago Mata Machado, 2010), “Linz – Quando Todos os Acidentes Acontecem” (Alexandre Veras, 2012), “Pingo d’Água” (Taciano Valério, 2014), “Faroeste” (Abelardo de Carvalho, 2014), e “Tropykaos” (Daniel Lisboa, 2015). Na música, mantém desde 2009 o projeto de performance musical Madame Rrose Sélavy, banda de bossa punk citada pelos jornais “The Guardian” e “LA Times”, em 2014, depois de ter a faixa “Só um Beijo” selecionada para a coletânea inglesa Rolê: New Sounds of Brazil.
Dellani (ou Tuca, apelido que carrega desde a infância e como é mais conhecido entre os amigos) é um multiartista, daqueles difíceis de caracterizar. Muita gente conhece seus trabalhos, mas nem ele mesmo consegue se definir dentro da própria versatilidade. Dellani é, acima de tudo, um criador – e é neste lugar que parece ficar mais à vontade. Negar rotulações e se libertar à arte é coerente a este punk-anarquista-romântico, nascido em 1975. Aos 41 anos, vive um momento de efervescência, mas a impressão é de que, por toda sua vida, efervescência sempre foi palavra de ordem a ele.
Conforto para criar, estando à margem
Junto à alegria e carisma característicos de Tuca, existe um forte senso de resignação que lhe serve de combustível à criação. “A arte me alimentou de afeto, mas, para realizar esse sonho de viver dela, precisei abrir mão de muita coisa e enfrentar todo tipo de dificuldades”, comenta, em conversa com a reportagem da Revista de CINEMA. Ele não se vitimiza ao falar do que faz, muito pelo contrário. Assume que obstáculos pessoais e profissionais sempre lhe empurraram adiante. Nunca deixou de ser um artista à margem e, assim, prefere continuar, porque não consegue fazer diferente. “Não adianta, eu sou desse meu jeito, não sei criar de outra forma”, assume.
Passear pela trajetória de Dellani é uma aventura de caminhos imprevisíveis. Você pode ouvir sobre vídeos experimentais que ele aprendeu a fazer quando tomou contato com as câmeras digitais e as ilhas de edição não-linear, no final dos anos 1990, ou saber o quanto filmar pornografia lhe fez compreender nuances de linguagem audiovisual. Pode escutar a empolgação relativa aos projetos de bandas de punk e gargalhar ao saber de sua breve passagem como guitarrista num grupo de forró que tocava em festas e bares para conseguir uns trocados.
Entre a voracidade de inventar e a necessidade de sobreviver, este paraibano, criado em Fortaleza (CE), radicado em Belo Horizonte (MG) desde 2000 e frequentador do eixo BH-SP desde 2014, já passou por uma infinidade de situações. A sensibilidade artística foi maturada a partir dos 14 anos, nas amizades de juventude e nas ilusões da infância. “Meu avô tinha uma câmera 16mm e minha mãe era artesã. Quando criança, eu tinha certeza de que éramos uma família de artistas”, relembra, aos risos. O cinema lhe parecia “coisa de rico, distante demais”. Foi através da música que passou a se relacionar com a arte, inicialmente ouvindo bandas como Legião Urbana e Plebe Rude, até ser arrebatado pela descoberta do punk. “Quando escutei, pensei: caramba, isso eu posso fazer!”. Aos 16 anos, tocou num grupinho cover de punk.
Leitor de poesia, era um garoto sensível e choroso, que absorvia as dores de seu mundo sem saber direito por que estava tão triste – ou talvez soubesse, mas não conseguia explicitar com a clareza necessária que o mundo adulto exigia dele. Gostava de ficar na rua muito mais do que em casa. Tinha amigos e namoradas mais velhas que ele, o que lhe facilitou o acesso e o conhecimento a segmentos artísticos que mal podia imaginar serem tão definidores de sua personalidade. Frequentava saraus literários, leu sobre cinema de vanguarda e cinema marginal, em livros de Arlindo Machado e Jairo Ferreira, e assistiu a vídeos experimentais de Alexandre Veras. Da adolescência aos primeiros anos da maioridade, viveu intensamente cada pedaço de conhecimento e de sensações que lhe chegavam.
Em 1996, em Fortaleza, foi fundado o Instituto Dragão do Mar de Arte e Indústria Audiovisual do Ceará. Capitaneado por Orlando Senna e Maurice Capovilla, tendo por molde a Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba, o instituto durou poucos anos, mas o suficiente para formar talentos na cidade e agitar o meio audiovisual local com aulas de Nelson Pereira dos Santos, Geraldo Sarno, Plínio Marcos e outros nomes. Ali, Tuca se aprimorou ao estudar dramaturgia e realização em cinema e TV. No período, largou cursos de engenharia de produção e de supervisão industrial para se dedicar àquilo que realmente o fascinava.
Fora das convenções
O mergulho no cinema aumentou exponencialmente dali adiante, assim como a desenvoltura junto aos realizadores que o encantavam. O ponto de virada, ao olhar de Tuca, aconteceu no 10º Cine Ceará, em 1998, quando assistiu a trabalhos do gaúcho Gustavo Spolidoro, do pernambucano Camilo Cavalcante e do mineiro Carlosmagno Rodrigues, todos marcados pela quebra de paradigmas e renovação das convenções. Mudando-se para Belo Horizonte no ano seguinte, em busca de oportunidades de trabalho, rapidamente se enraizou na cidade e no ambiente audiovisual dos mineiros. “Conheci a turma da Teia, da Camisa Listrada, o Tiago Mata Machado, o Carlosmagno, o Eder Santos, o Sávio Leite, o pessoal da Associação Curta Minas… Eu era próximo a todos eles muito antes de começarem a se desentender”, conta, referindo-se discretamente a alguns rompimentos que marcaram a produção em Minas nos últimos 15 anos.
Ainda em Fortaleza, Dellani tinha se arriscado a fazer um vídeo. Sobre este primeiríssimo trabalho, inédito e oculto, ele nada revela. “Lembro tudinho, mas não conto não. Era uma ficção pretensiosa e amadora, com ecos das artes visuais e do teatro. Ninguém nunca vai ver isso”, diverte-se. Aquele que considera, de fato, sua estreia como realizador é o curta de cinco minutos “América CTRL+S”, exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2001. A experiência de estar no evento foi intensa, ainda que talvez um tanto desagradável. “O público me vaiou bastante”, relembra. Neste primeiro contato com o ambiente de festivais, estranhou o corpo a corpo e as abordagens. “Muita gente queria saber da minha carreira, quantos filmes eu já tinha feito, um monte de coisas assim”.
Os que o procuraram em Tiradentes mal podiam imaginar a inusitada experiência de Tuca na direção de filmes pornográficos, num breve período de estada em São Paulo. “Não assinei nenhum pornô, porque quem assina é o produtor. Mas cuidei da câmera em vários deles. Cheguei todo cheio de pretensões e quebrei a cara. Descobri que não se faz um pornô em um mês, e sim, cinco filmes num dia. Não tem que ficar inventando”, conta. “Eu trabalhava de quinta a domingo e ganhava muito bem. Treinei muita câmera, muita técnica de decupagem. Meu maior ensinamento foi trabalhar o improviso sem ficar dependendo do viewfinder (visor da câmera). Fui orientado a estar atento aos movimentos fora do enquadramento, para dar o tempo certo e então enquadrar. A autenticidade que fui buscar nos meus filmes eu aprendi no pornô”.
Experimentando tudo
A velocidade na produção dos pornôs também deve ter tido influência em Dellani. Só na década de 2010, ele contabiliza oficialmente 27 filmes, entre longas e curtas-metragens. Entre 2011 e 2016, são outros 16 títulos. Atualmente, há vários em desenvolvimento. Em paralelo, dirigiu diversos videoclipes de grupos ou projetos com os quais se identifica, entre eles, Lê Almeida, Autoramas, Graveola e o Lixo Polifônico, Sara Não Tem Nome, Jonnata Doll & Os Garotos Solventes, Lucy and the Popsonics e Lulina.
O jeito espevitado, elétrico e muito prolífico de trabalhar proporcionou a Dellani alguma fama (especialmente no cinema) de fazer determinados trabalhos sem o acabamento e a pós-produção necessários. Ele assume certas limitações, mas não as enxerga como problemas suficientes para tornar irrelevante qualquer criação sua, nem se vê como artista do improviso ou do descontrole. “Tudo que faço é muito controlado. Uso escaleta, decupo, penso antes de filmar. Se for para chegar ao set e fazer ali, na hora, sem planejamento, eu não consigo. Tem filmes que não tem jeito de esperar edital, de esperar dinheiro. Você dá um jeito de fazer. E aí não dá pra ficar tudo arrumadinho quando não tem grana pra isso”.
Tuca, ao ler a crítica sobre seu longa-metragem “O Céu Está Azul com Nuvens Vermelhas” (2007), exibido na Mostra Tiradentes, decidiu fazer um balanço na carreira de cineasta. Do texto, bastante duro, o cineasta ficou marcado pelo seguinte trecho: “Uma presença ostensiva de um olhar de videoartismo e instalação de galeria, sobretudo, nos pequenos clipes espalhados entre uma sequência e outra, que abstraem, a partir de ações banais dos personagens (podar uma árvore, jogar futebol de moeda num tabuleiro), e não muito mais que isso se pode notar”.
Para Dellani, foi o toque de que ele deveria se afastar do cinema e apostar em outras formas de expressão. “Foi muito importante ler aquilo. Nessa época, eu enveredei pelas artes visuais, fui fazer trabalhos e expor em galerias, deixei os filmes de lado e não sabia se ia voltar”, conta. Tuca não deixou o audiovisual, de fato. Seguiu realizando pequenos vídeos profundamente pessoais e tornou-se curador convidado da seção Cinema de Garagem (entre 2006 e 2010), dentro da programação do Indie, festival independente realizado todo ano em Belo Horizonte.
Vida punk que deu certo
Mais ou menos por essa época, fundou a banda de “eletro frevo bossa punk” Madame Rrose Sélavy, na qual é vocalista, compositor e programador de samplers. Na música e na performance, buscou influências diretas da arte de Marcel Duchamp (inclusive o nome, retirado de um pseudônimo do artista francês) e da cultura queer e trans. Deu bastante certo. Os clipes eram constantemente exibidos na MTV, em diversos países do mundo até 2012, quando a emissora entrou em crise. O disco “Bossa Punk”, de 2014, proporcionou mais um estouro e maior presença do grupo pelo país e mundo afora, dentro da cena musical independente.
As andanças e descobertas com o Madame Rrose Sélavy coincidiram com a epifania de que atuar em ficção era algo que lhe dava prazer. A estreia do Tuca ator se deu em “Os Residentes” (2010), de Tiago Mata Machado, mas foi “Linz – Quando Todos os Acidentes Acontecem” (2012), dirigido pelo velho amigo Alexandre Veras, e no qual interpreta o protagonista, que lhe impregnou a vontade de continuar atuando e também de enveredar na realização de filmes com dramaturgia. “Acompanhar o Veras dirigir, me preparar para o papel, viver intensamente aquele personagem me fez ter a vontade de pesquisar aquilo tudo”, diz ele.
Novos rumos nas incertezas
É perceptível, em trabalhos recentes de Dellani, o viés maior à ficção e à encenação, influenciados pelo trabalho como ator e até então inédito nos filmes de um cineasta que tanto experimentou se filmando e filmando o próprio entorno. Nem por isso, ele acredita estar modificando a maneira essencial de se expressar. “A experimentação continua lá, cara! Muita gente me detonou quando passei pra ficção. Não entendo quem vem dizer que estou fazendo filme careta. O que tem de careta em “Planeta Escarlate?!”, questiona.
Alguns frutos já aparecem. Em 2015, na Mostra Tiradentes, “O Tempo Não Existe no Lugar Onde Estamos” (feito com recursos do edital estadual Filme em Minas) levou o Troféu Barroco de melhor filme da seção Transições segundo o Júri Jovem, formado por estudantes de até 24 anos. Foi o reconhecimento de uma nova geração à atual fase de Tuca.
Seu próximo filme, “Apartamento 420”, já tem orçamento, produção e possibilidades de distribuição. E ainda deverá ser o máximo que ele acredita poder chegar de uma comédia pop. As referências assumidas são o tom e o humor de dois filmes norte-americanos pelos quais sente profundo carinho: “Cortina de Fumaça” (1995), dirigido por Wayne Wang e escrito por Paul Auster, e “Embriagado de Amor” (2002), de Paul Thomas Anderson. “O pessoal vai se surpreender”, adianta.
Por vocação, Tuca acha que nunca seria capaz de fazer um filme para grandes plateias, mas não vê problema algum na existência deles. “Não tenho preconceito, cara. Tem que existir filme comercial sim. Tem que existir filme que dá dinheiro sim, até para os ricos deixarem a grana dos editais pros cineastas pobres que nem a gente”. Para ele, uma comédia a romper as barreiras do cinema industrial foi o cearense “Cine Holliúdy” (2012), do amigo Halder Gomes, que mobilizou quase 500 mil espectadores no circuito, principalmente, em cidades do interior.
Apesar de cheio de ideias e projetos, como sempre, Tuca assume estar um tanto cansado do processo guerrilheiro de produção, pelo menos nos longas-metragens. Que não se espere de Dellani Lima, claro, qualquer tipo de ajuste ou concessão por causa disso. O que ele pretende é inventar dentro daquilo que ele mesmo já estabeleceu. “Vou continuar pirando no curta-metragem, enquanto, nos longas, quero seguir a investigação e a pesquisa de mais formas para a ficção”. Do Tuca se pode esperar tudo, menos o convencional.
Dellani na rede
Confira todos os trabalhos de Dellani Lima, ouça suas músicas e assista a seus filmes no site http://dellanilima.blogspot.com.br/p/bio-portugues.html.
Por Marcelo Miranda