Prêmio César, o Oscar francês, promove duelo entre “Anatomia de uma Queda” e “blockbuster autoral”

Foto: “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet

Por Maria do Rosário Caetano

Não tem para ninguém! Este é o ano de Justine Triet e de seu “Anatomia de uma Queda”, imenso sucesso nacional (e internacional) do cinema francês contemporâneo.

O filme, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, uma penca de Europa Awards, dois Globo de Ouro e cinco indicações ao Oscar de Hollywood, deve “passar o rodo” na noites do César, o mais respeitado prêmio atribuído ao cinema da pátria dos Lumière.

A festa do audiovisual francês acontecerá no Olympia de Paris, na sexta, 23 de fevereiro, com transmissão pelo Canal Plus, e deve mobilizar a nata da sociedade artística parisiense. E um convidado especial, o britânico Christopher Nolan, que receberá um César especial por sua triunfante trajetória. E ele poderá ganhar, também, a estatueta de melhor produção internacional, já que “Oppenheimer” é um dos cinco concorrentes da categoria.

“Anatomia de uma Queda” recebeu 11 indicações, uma a menos que a fantasia “O Reino Animal”, de Thomas Cailley, definido como “um blockbuster autoral”. Este filme fez jus a excelentes cotações das mais importantes publicações francesas, incluindo Cahiers du Cinéma, Positif, L’Humanité, Libération, Le Monde, Bande à Part e Les Inrock. Somou, o que não é muito comum, sucesso de público e de crítica.

Na lista dos longas-metragens que disputam o principal prêmio figuram, ainda, “Je Verrai Toujours vos Visages”, de Jeanne Henry, filha da atriz Miou-Miou (9 indicações), “O Caso Goldman”, de Cédrik Kahn (8), e “Cão Danado” (“Chien de la Casse”), de Jean-Baptiste Durand (7).

Só uma zebra das mais listradas vai tirar o prêmio principal de “Anatomia”. Até porque a Academia Francesa não deseja ser alvo das virulentas críticas dirigidas à comissão do Oscar (designada pelo Ministério da Cultura), que selecionou o culinária movie “Sabor da Vida” (“La Passion de Dodin Bouffant”), protagonizado por Juliette Binoche e Benoît Magimel, e dirigido por Tran Anh Hung (realizador nascido no Vietnã).

Se a França tivesse indicado o filme de Justine Triet para representá-la junto à Academia de Hollywood, o drama judicial somaria seis e não cinco possibilidades de ganhar o Oscar. Em pelo menos uma categoria – melhor roteiro original – Justine Triet e o marido Arthur Harari são os franco-favoritos.

No cerimônia do César, o talentoso Harari, diretor de “Onoda, 10 Mil Noites na Selva”, conta com mais uma chance de sagrar-se, pessoalmente, vencedor – melhor ator coadjuvante (por “O Caso Goldman”, outro drama de tribunal de imensa força). Este filme causou ótima impressão na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro do ano passado.

O terceiro filme com mais indicações à quadragésima-nona edição do César é “Je Verrai Toujours vos Visages”, dirigido pela filha de Miou-Miou, estrela de “Corações Selvagens” (Les Valseuses), que também integra o elenco. Aliás, a se julgar pelas indicações, Jeanne Henri, de 45 anos, é uma grande diretora de atores. Quatro de suas nove indicações estão concentradas numa única categoria: melhor atriz coadjuvante. Além de mamãe Miou-Miou, foram indicadas Leila Bekhti, Elodie Bouchez e Adèle Exarchopoulos.

O filme aborda tema momentoso: o contato de vítimas com seus algozes. Em 2014, a França criou a “Justiça Restaurativa”, processo que consiste em colocar, por exemplo, frente a frente o ladrão (que fez uso da violência) e a pessoa roubada-agredida. Houve caso até de vítima de violação incestuosa, que ficou frente a frente com o agressor. Em “Eu Verei Sempre vosso Rosto” (tradução livre), três grandes atores se somam ao time de atrizes indicadas ao César – Jean-Pierre Darroussin, onipresente nos filmes de Robert Guédiguian, Gilles Lelouch e Denis Podalydès.

A polêmica Catherine Breillat conseguiu boas indicações para “Culpa e Desejo”(“L’Été Dernier”) sua recriação do poderoso drama nórdico “Rainha de Copas”, de May el-Toukhy (2019), protagonizado pela formidável Trine Dyrholm. Apaixonada por temas fortes (e eróticos), Breillat causou furor em 1999, quando escalou o ator pornô Rocco Siffredi para seu filme “Romance”. Agora, revisita a história de Anne (Léa Drucker, indicada ao César), uma advogada de imenso prestígio, especializada em crimes de violência sexual contra menores. Só que ela vai envolver-se sexualmente com o enteado, de apenas 17 anos. Se for descoberta, sua carreira, prestígio (e matrimônio) irão por água abaixo. Les Inrock e Band à Part atribuíram 5 estrelas ao filme; Cahiers du Cinéma, 4. Le Figaro, apenas uma.

“O Reino Animal”, de Thomas Cailley

Há um fato curioso na seleção de atrizes do César. A oscarizada Marion “Piaf” Cotillard concorre a melhor atriz por um “documentário” de nome vistoso “Little Girl Blue”, produção franco-belga dirigida por Mona Achache. O filme mergulha no enigmático desaparecimento da mãe da cineasta, a fotógrafa e escritora Carole Achache, e em rico acervo deixado por ela (milhares de fotografias, cartas e gravações).

A postura aberta e porosa da Academia permite, portanto, que o filme concorra a melhor atriz e a melhor documentário. Nesta categoria, ele enfrentará os poderosos “No Adamant”, de Nicolas Philibert, premiado com o Urso de Ouro em Berlim, e “As Filhas de Olfa”, de Kaouther Ben Hania, que ganhou o Olho de Ouro, em Cannes, e é finalista ao Oscar. Completam a seleção os longas “Notre Corps”, de Claire Simon, e ”Atlantic Bar”, de Fanny Molins.

As sessões de “No Adamant” foram, também, muito concorridas na Mostra de Cinema de São Paulo. Além do Urso de Ouro, outro motivo mobilizou o público paulistano. O Adamant do título é um barco que navega pelo Senna, em Paris, carregando pessoas com distúrbios psíquicos. Os embarcados frequentam atividades de arte-terapia e convivem uns com os outros. Enfim, um belo exemplo de tratamento acolhedor e humanizado.

No campo do cinema de animação, a Academia Francesa preferiu indicar apenas três filmes. Tal economia acabou por excluir “Meu Amigo Robô” (Robot Dreams), do basco Pablo Berger, realizado em parceria com produtores franceses. O filme é um dos cinco finalistas ao Oscar. Os votantes da Academia, em torno de 4.700, farão sua escolha entre o ótimo “Linda Veut de Poulet!” (“Linda Quer Frango”), de Chiara Malta e Sébastien Laudenbach, exibido pela Mostra de São Paulo, e “Proibido para Cães e Italianos” (“Interdit aux Chien et aux Italiens”), de Alain Ughetto, que integrou o Festival 8 ½ de Cinema Italiano (no Brasil) e conta com música do craque Nicola Piovani. “Mars Express”, ficção científica de Jérémie Périn, completa a lista de concorrentes.

Na categoria melhor filme internacional, foram reunidos quatro pesos-pesados. Além do recordista de indicações ao Oscar – “Oppenheimer”, de Christopher Nolan – a Academia Francesa indicou o mais novo filme do mestre Marco Bellocchio (“Rapto”, Itália), o finlandês “Folhas de Outono”, de Aki Kaurismaki, e o japonês “Perfeitos Dias”, de Wim Wenders.

O filme de Bellocchio – um drama histórico baseado em fato real ocorrido no século XIX – mostra o rapto de criança italiana, de origem judaica, pela Igreja Católica. O menino, integrante de numerosa família seguidora dos preceitos do judaísmo, teria sido batizado, escondido, por iniciativa de sua babá, religiosa e temerosa de que a criança adoentada morresse e fosse parar no limbo. A partir desta circunstância, até o Papa entrou no esquema para “catolicizar” a criança. O diretor de “Vincere” e “O Traidor” dá mais uma aula de cinema.

“Perfeitos Dias”, do alemão Wim Wenders, é um filme 100% japonês. Afinal, sua história, ambientação e atores são essencialmente nipônicos. Destaque para seu protagonista absoluto, o soberbo Kôji Yakusho, Palma de Ouro em Cannes por seu desempenho. Antes, ele magnetizara o público com “Dança Comigo”, “A Enguia”, “Memórias de uma Gueixa” e “Babel”.

O filme de Wenders tirou a vaga de “Monster”, de Hirokazu Kore-eda, em cartaz há dez semanas nos cinemas brasileiros. Mas não houve protestos, pois o diretor de “Asas do Desejo”, apaixonado pela cultura japonesa, presta seu tributo a Yazujiro Ozu (1903-1963), num filme de imensa sensibilidade. Seu protagonista é um homem que limpa banheiros numa Tóquio moderna e tecnológica. Ele aprecia os pequenos milagres da Natureza e não se envergonha de seu ofício. Pelo contrário, dedica-se a ele com fervorosa devoção e muito zelo.

“Folhas de Outono”, parte da “tetralogia proletária” de Aki Kaurismaki, transformou-se em imediato “cult movie”. Caiu realmente nas graças dos cinéfilos e foi indicado ao Globo de Ouro (assim como sua protagonista a melhor atriz) e pré-indicado ao Oscar. Acabou fora dos cinco “estrangeiros” da Academia hollywoodiana, mas segue encantando quem o vê. Afinal, parece impossível resistir ao humor único de Kaurismaki e ao desempenho do esquisito (e cativante) par amoroso formado por Alma Poysti e Jussi Vatanen.

Completa a lista do César internacional um patinho feio – o canadense “Simple Commme Sylvain”, de Monia Chokri. Vindo do Québec, e, portanto, de expressão francesa, causa estranhamento que esteja na categoria dedicada a filmes que, via de regra, falam outros idiomas.

Por fim, há que se constatar que “Sabor da Vida – La Passion de Dodin Bouffant” levou um gelo da Academia Francesa. Só cravou três indicações, uma importante (melhor fotografia) e duas secundárias (direção de arte e figurino). Melhor saíram as duas primeiras partes da trilogia “Os Três Mosqueteiros” (“D’Artagnant” e “Milady”) que receberam seis indicações.

Confira os finalistas:

Melhor filme

. “O Reino Animal”, de Thomas Cailley (12)
. “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet (11)
. “Je Verrai Toujours vos Visages”, Jeanne Henry (9)
. “O Caso Goldman”, de Cédrik Kahn (8)
. “Cão Danado (“Chien de la Casse”), de Jean-Baptiste Durand (7)

Melhor diretor

. Justine Triet (“Anatomia de uma Queda”)
. Catherine Breillat (“Culpa e Desejo”)
. Cedric Kahn (“O Caso Goldman”)
. Thomas Cailley (“O Reino Animal”)
. Jeanne Henry (“Je Verrai Toujours vos Visages”)

Melhor filme de diretor estreante

. “Bernadette, de Léa Domenach”
. “Chien de la Casse”, de Jean-Baptiste Durand
. “Falcon Lake”, de Charlotte Le Bon
. “Le Ravissement”, de Iris Kaitenbäch
. “Vermines”, de Sébastien Vanicek
. “Vincent Doit Mourrir” de Stéphan Casting

Melhor longa documentário

. “No Adamant”, de Nicolas Philibert
. “As Filhas de Olfa”, de Kaouther Ben Hania
. “Little Girl Blue”, de Mona Achache
. “Notre Corps”, de Claire Simon
.”Atlantic Bar”, de Fanny Molins

Melhor filme estrangeiro

. “Rapto” (Rapito), de Marco Bellocchio (Itália)
. “Folhas de Outono”, de Aki Kaurismaki (Finlândia)
. “Perfeitos Dias”, de Wim Wenders (Japão)
. “Simple Commme Sylvain, de Monia Chokri (Canadá)
. “Opperheimer”, de Christopher Nolan (EUA)

Melhor longa de animação

. “Linda Veut de Poulet!” (“Linda Quer Frango”), de Chiara Malta e Sébastien Laudenbach
. “Mars Express”, de Jérémie Périn
. “Interdit aux Chien e aux Italiens”, de Alain Ughetto

Melhor atriz

. Sandra Hüller (“Anatomia de uma Queda”)
. Marion Cotillard (“Little Girl Blue”)
. Lea Drucker (“Culpa e Desejo”)
. Virginie Éfira (“L’Amourt et les Forêts”)
. Hafsia Herzi (“Le Ravissement”)

Melhor ator

. Roman Duris (“O Reino Animal”)
. Arieh Worthalter (“O Caso Goldman”)
. Melvil Poupaud (“L’Amourt et les Forêts”)
. Raphaël Quenard (“Yannick”)
. Benjamin Lavernhe (“L’Abbe Pierre – Une Vie de Combats”)

Melhor atriz coadjuvante

. Miou-Miou (“Je Verrai Toujours vos Visages”)
. Leila Bekhti (“Je Verrai Toujours vos Visages”)
. Elodie Bouchez (“Je Verrai Toujours vos Visages”)
. Adèle Exarchopoulos (“Je Verrai Toujours vos Visages”)
. Galatea Bellugi (“Chien de la Casse”)

Melhor ator coadjuvante

. Arthur Harari (“O Caso Goldman”)
. Swann Arlaud (“Anatomia de uma Queda”)
. Antoine Reinartz (“Anatomia de uma Queda”)
. Pio Marmaï (“Yannick”)
. Anthony Bajon (“Cão Danado”)

Melhor “Esperança Feminina”

. Rebecca Marder (De Grandes Espérances)
. Ella Rumpf (“Le Théorème de Margerite”)
. Céleste Brunnquell (“La Fille de Son Père”)
. Suzanne Jouannet (“La Voie Royale”)
. Kim Higelin (“Le Consentement”)

Melhor “Esperança Masculina”

. Milo Machado Graner (“Anatomia de uma Queda”)
. Julien Frison (“Le Théorème de Margerite”)
. Raphaël Quenard (“Cão Danado” – Chien de la Casse)
. Paul Kircher (“O Reino Animal”)
. Samuel Kircher (“Culpa e Desejo”)

Melhor roteiro original

. Justine Triet e Arthur Harari (“Anatomia de uma Queda”)
. Nathalie Hertzberg e Cedrik Kahn (“O Caso Goldman”)
. Thomas Calley e Pauline Munier (“O Reino Animal”)
. Jean Baptiste Durand (“Chien de la Casse”)
. Jeanne Henry (“Je Verrai Toujours vos Visages”)

Melhor roteiro adaptado

. Catherine Breillat (“Culpa e Desejo”)
. Vanessa Filho (“Le Consentement”)
. Valerie Donzeli e Audrey Diwan (“L’Amour et les Forêts”)

Melhor fotografia

. Jonathan Ricquebourg (“Sabor da Vida” – La Passion de Dodin Bouffant)
. Simon Beaufils (“Anatomia de uma Queda”)
. Patrick Ghiringhelli (“O Caso Goldman”)
. David Calley (“O Reino Animal”)
. Nicolas Bolduc (Os 3 Mosqueteiros – Parte 1 – D’Artgnant, e Parte 2 – Milady)

Melhor montagem

. Laurent Sénechal (“Anatomia de uma Queda”)
. Yan Dedet (“O Caso Goldman”)
. Lilian Corbeille (“O Reino Animal”)
. Valérie Loiseleux (“Little Girl Blue”)
. Francis Vesin (“Je Verrai Toujours vos Visages”)

Melhor figurino

. Pascaline Chavanne (“O Crime é Meu”)
. Traan Nuyen Khe (“Sabor da Vida” – La Passion de Dodin Bouffant)
. Jürgen Doering (“Jeanne du Barry”)
. Ariane Daurat (“O Reino Animal”)
. Thierry Delettre (“Os 3 Mosqueteiros – Parte 1 – D’Artgnant, e Parte 2 – Milady”)

Melhor direção de arte

. Emmanuelle Duplay (“Anatomia de uma Queda”)
. Toma Baquéni (“O Sabor da Vida – La Passion de Dodin Bouffant”)
. Angelo Zamparutti (“Jeanne du Barry”)
. Julia Lemaire (“O Reino Animal”)
. Thierry Delettre (“Os 3 Mosqueteiros – Parte 1 – D’Artgnant, e Parte 2 – Milady”)

Melhor música original

. Gabriel Yared (L’Amour et les Forêts)
. Vitalic (“Disco Boy”)
. Andrea Lazlo (“O Reino Animal”)
. Delphine Malausséna (“Chien de la Casse”)
. Guillaume Roussel (“Os 3 Mosqueteiros – Parte 1 – D’Artgnant, e Parte 2 Milady”)

Melhor som

. “Anatomia de uma Queda”
. “O Caso Goldman”
. “O Reino Animal”
. “ Je Verrai Toujours vos Visages”
. “Os 3 Mosqueteiros” – Parte 1 (D’Artgnant) e Parte 2 (Milady)

Melhores efeitos visuais

. Thomas Duval (“Acid”)
. Lise Fischer, Cédric Fayolle (“La Montagne”)
. Bonjean, Sommier e Autret (“O Reino Animal”)
. Léo Ewald (“Vermines”)
. Olivier Cauwet (Os 3 Mosqueteiros – Parte 1 – D’Artgnant, e Parte 2 – Milady)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.