100 melhores documentários brasileiros
Por Maria do Rosário Caetano
A Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) mobilizou – depois da enquete e livro “Os 100 Melhores Filmes Brasileiros” (Editora Letramento, 2016) – cem críticos e pesquisadores de cinema para compor lista com os 100 Melhores Documentários Brasileiros. A seleção anterior tinha no cinema ficcional sua força dominante.
O resultado da enquete dedicada ao cinema documental consagra, de forma avassaladora, o documentarista Eduardo Coutinho (1933-2014). Além de conquistar o primeiro e o segundo lugar (com “Cabra Marcado para Morrer” e “Jogo de Cena”, respectivamente), o mestre paulistano posicionou-se com mais um título entre os dez mais: “Edifício Master” (em quarto lugar). E ocupou seis vagas entre os outros 90 eleitos: “Santo Forte” (19º lugar), “Peões” (39º), o belo e tocante “O Fim e o Princípio” (52º), o irresistível “Theodorico, o Imperador do Sertão” (63º), o controvertido “Moscou” (80º) e “As Canções” (84º).
Nove merecidas vagas no total. O poderoso média-metragem “Boca do Lixo” poderia substituir “As Canções”. Mas o conjunto de votantes preferiu um dos últimos filmes do cineasta que começou sua carreira como ficcionista e roteirista e, depois, fez do documentário um verdadeiro sacerdócio. E fez dos roteiros (pelo menos para documentário) peça totalmente inadequada, anacrônica. Como – gostava de provocar – inscrever um roteiro de documentário em edital público? Com sua lucidez e franqueza desconcertante, Coutinho lembrava que quem escreve-assina roteiros de documentários é a vida, com suas surpresas constantes.
A lista (dos 100 Melhores Documentários) resultante da votação da Abraccine é surpreendentemente boa. Melhor que a que foi, anteriormente, dedicada ao longa-metragem ficcional (com espaço para alguns curtas e documentários). Antes de registrar os acertos da lista, vale destacar algumas ausências e alguns de seus problemas (toda lista é fonte de divergência, ainda mais num tempo de posições acirradas/polarizadas).
Como ocorrera na primeira lista (a que hegemonizou o cinema de ficção), mais uma vez, o cinema feminino mereceu pouca atenção. Dos 100 escolhidos, poucos trazem assinatura feminina. Sete com direção solo: “Elena”, de Petra Costa, “Justiça” e “Juízo”, ambos de Maria Luíza Ramos, “Que Bom te Ver Viva”, de Lúcia Murat, “Diário de uma Busca”, de Flávia Castro, “Um Passaporte Húngaro”, Sandra Kogut, e “Os Dias com Ele”, de Maria Clara Escobar (seis realizações solo). No terreno da parceria, mais quatro: “Notícias de um Guerra Particular”, de João Salles & Kátia Lund, “A Música segundo Tom Jobim”, de Nélson Pereira dos Santos e Dora Jobim, “Lixo Extraordinário”, de João Jardim, Lucy Walker e Karen Harley, e “Dzi Croquettes”, de Rafael Alvarez e Tatiana Issa. Total: onze títulos em 100.
Os varões assinalados poderão argumentar que não há produção feminina qualificada. Há, e muita. Estão ausentes da lista realizadoras com filmes importantes como Ana Carolina (“Lavra-Dor”, com Paulo Rufino, “Pantanal”, “Getúlio Vargas”), Helena Solberg (“Carmen Miranda: Bananas is my Business”, “Palavra EnCantada”), Tetê Moraes (“Terra para Rose”), Renata Pinheiro (“Praça Walt Disney”), Débora Diniz (“Solitário Anônimo”), Lina Chamie (“São Silvestre”), Emília Silveira (“Setenta”), Anita Leandro (“Retratos de Identificação”), Leandra Leal, com o surpreendente e maduro “Divinas Divas”, e Camila Pitanga (com o ótimo e alto astral “Pitanga”, que dirigiu com Beto Brant). Lúcia Murat poderia ter ocupado mais uma vaga com o excelente “Uma Longa Viagem”, poético e politizado retrato de família.
Mais grave ainda, na lista, é que realizadores negros passaram batido. Pelo menos, um longa documental black merecia boa colocação na lista: “A Negação do Brasil”, de Joelzito Araújo, que desempenha, na nossa cinematografia, papel similar ao do transgressor “Bamboozled – A Hora do Show”, de Spike Lee. No terreno do curta-metragem, nomes como Zózimo Bulbul (“Alma no Olho”) não fariam feio.
Outras ausências dignas de nota na Lista Abraccine: de Adrian Cooper (“Chapeleiros”), de Edgard Navarro, com seu delicioso “Talento Demais” (“Tá Lento Demais”), e de Aurélio Michiles, com o inventivo “Que Viva Glauber”. Se vivo fosse, o realizador (e profeta) baiano assistiria a este documentário com imenso prazer e emoção. Vale acrescentar à lista outros (injustamente) esquecidos: Sérgio Bernardes, com o desmedido e instigante “Tamboro”, Lírio Ferreira, com o vibrante “O Homem que Engarrafava Nuvens” (sobre Humberto Teixeira), Joel de Almeida, com o impressionante “Penitência”, Jean-Claude Bernardet com os ensaísticos “Sobre Anos 60” e “São Paulo, Sinfonia e Cacofonia”, Zelito Viana (com “Terra dos Índios”), Henrique Dantas, com “Admirável Mundo Novo”, sobre os Novos Baianos, e Hermano Penna, que merecia boa classificação com o moderno e envolvente “A Mulher no Cangaço”, seu melhor filme, junto com “Sargento Getúlio”.
Acertos dignos de louvor
A presença de Vincent Carelli com dois dos mais sólidos torpedos do projeto Vídeo nas Aldeias – “Corumbiara” e “Martírio” –só engrandece a lista. Os índios, que agora começam a fazer, com frequência, seus próprios filmes, estão – como tema – magnificamente representados na seleção. Que o digam os essenciais “Serras da Desordem”, de Tonacci, e “Mato Eles?”, de Sérgio Bianchi.
Registre-se, aliás, que o cinema de temática social e política tem espaço nobre e merecido na seleção. Destaque para os substantivos “Cidadão Boilesen”, “Linha de Montagem”, “Diário de uma Busca”, “Notícias de uma Guerra Particular”, “Ônibus 174”, e o arrebatador “O Prisioneiro da Grade de Ferro”.
O espaço do documentário experimental – como bem observou o crítico Amir Labaki, em sua coluna “O Panteão do Real”, no Valor Econômico (24-03-2017) – mostrou-se reduzido na lista. Arthur Omar só aparece com o longa-metragem “Triste Trópico”. Carlos Adriano não emplacou nem um título. Joel Pizzini só aparece no final da lista. Mas o inquieto Carlos Náder, único documentarista brasileiro a vencer três vezes o Festival É Tudo Verdade, está muito bem representado na lista.
A presença de “33”, documentário “noir” de Kiko Goifman, é estimulante. Assim como são estimulantes as presença de joias raras como “Nelson Cavaquinho”, de Leon Hirszman, e “O Poeta do Castelo”, de Joaquim Pedro.
A nova lista da Abraccine, que dará origem a um livro-álbum com ensaios temáticos e análise dos filmes, servirá, com certeza, como vistosa vitrine a jovens interessados em conhecer alguns dos mais luminosos momentos do documentário made in Brazil.
Abaixo, a lista dos “100 Melhores Documentários Brasileiros”, à qual dei meu voto (embora alguns de meus escolhidos não tenham sido contemplados pelo coletivo). Faz parte do jogo.
E detalhe final: por mais complexas e permeáveis que sejam as fronteiras entre o cinema de ficção e o documental, eu jamais votaria em “Iracema, uma Transa Amazônia” como documentário. Mesmo caso de “Branco Sai, Preto Fica”. Na minha opinião, estes filmes dialogam, sim e profundamente, com o cinema documental, mas são obras ficcionais.
OS ELEITOS – LISTA COMPLETA
1. Cabra Marcado para Morrer, Eduardo Coutinho
2. Jogo de Cena, Eduardo Coutinho
3. Santiago, João Moreira Salles
4. Edifício Master, Eduardo Coutinho
5. Serras da Desordem, Andrea Tonacci
6. Ilha das Flores, Jorge Furtado
7. Notícias de uma Guerra Particular, João Moreira Salles e Kátia Lund
8. Ônibus 174, José Padilha
9. Di, Glauber Rocha
10. Aruanda, Linduarte Noronha
11. O Prisioneiro da Grade de Ferro, Paulo Sacramento
12. O País de São Saruê, Vladimir Carvalho
13. Viramundo, Geraldo Sarno
14. ABC da Greve, Leon Hirszman
15. Jango, Silvio Tendler
16. Garrincha, Alegria do Povo, Joaquim Pedro de Andrade
17. Imagens do Inconsciente, Leon Hirszman
18. Estamira, Marcos Prado
19. Santo Forte, Eduardo Coutinho
20. Janela da Alma, João Jardim e Walter Carvalho
21. Conterrâneos Velhos de Guerra, Vladimir Carvalho
22. A Opinião Pública, Arnaldo Jabor
23. Martírio, Vincent Carelli
24. Cidadão Boilensen, Chaim Litewsky
25. Entreatos, João Moreira Salles
26. Maioria Absoluta, Leon Hirszman
27. Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos, Marcelo Mazagão
28. São Paulo – Sinfonia da Metrópole, Alberto Kemeny & Rex Lustig
29. Uma Noite em 67, Renato Terra e Ricardo Calil
30. Corumbiara, Vicent Carelli
31. Elena, Petra Costa
32. Justiça, Maria Luíza Ramos
33. Peões, Eduardo Coutinho
34. Cinema Novo, Eryk Rocha
35. A Música segundo Tom Jobim, Nélson Pereira dos Santos e Dora Jobim
36. Memória do Cangaço, Paulo Gil Soares
37. Arraial do Cabo, Paulo Cezar Saraceni
38. O Poeta do Castelo, Joaquim Pedro de Andrade
39. Que Bom te Ver Viva, Lúcia Murat
40. A Paixão de JL, Carlos Náder
41. Terra Deu, Terra Come, Rodrigo Siqueira
42. Carro de Bois, Humberto Mauro
43. Socorro Nobre, Walter Salles
44. Mato Eles?, Sérgio Bianchi
45. Lixo Extraordinário, Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley
46. A Cidade É uma Só?, Adirley Queirós
47. Soy Cuba, o Mamute Siberiano, Vicente Ferraz
48. Os Anos JK – Uma Trajetória Política, Silvio Tendler
49. Tudo É Brasil, Rogério Sganzerla
50. Iracema, uma Transa Amazônica, Jorge Bodanzky & Orlando Senna
51. Loki – Arnaldo Baptista, Paulo Fontenelle
52. O Fim e o Princípio, Eduardo Coutinho
53. Nelson Freire, João Moreira Salles
54. Doméstica, Gabriel Mascaro
55. Braços Cruzados, Máquinas Paradas, Roberto Gervitz & Sérgio Toledo
56. Dzi Croquettes, Rafael Alvarez e Tatiana Issa
57. Brasília – Contradições de uma Cidade Nova, de Joaquim Pedro de Andrade
58. Triste Trópico, Artur Omar
59. O Dia que Durou 21 Anos, Camilo Tavares
60. Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei, Micael Langer, Caíto Ortiz e Cláudio Manoel
61. Pan Cinema Permanente, Carlos Náder
62. Diário de uma Busca, Flávia Castro
63. Theodorico, o Imperador do Sertão, Eduardo Coutinho
64. Os Dias com Ele, Maria Clara Escobar
65. Um Passaporte Húngaro, Sandra Kogut
66. Mataram meu Irmão, Cristiano Burlan
67. Juízo, Maria Luiza Ramos
68. Pacific, Marcelo Pedroso
69. Branco Sai, Preto Fica, Adirley Queirós
70. Maranhão 66, Glauber Rocha
71. No Paiz das Amazonas, Silvino Santos
72. Cássia Eller, Paulo Henrique Fontenelle
73. Linha de Montagem, Renato Tapajós
74. Nélson Cavaquinho, Leon Hirszman
75. O Porto de Santos, Aloysio Raulino
76. O Mercado de Notícias, Jorge Furtado
77. Vinícius, Miguel Faria Jr
78. Orestes, Rodrigo Siqueira
79. Glauber, o Filme – Labirinto do Brasil, Sílvio Tendler
80. Moscou, Eduardo Coutinho
81. Andarilho, Cao Guimarães
82. O Céu sobre os Ombros, Sérgio Borges
83. 33, Kiko Goifman
84. As Canções, Eduardo Coutinho
85. Os Doces Bárbaros, Jom Tob Azulay
86. Já Visto Jamais Visto, Andrea Tonacci
87. Esta Não É a sua Vida, Jorge Furtado
88. Raul – O Início, o Fim e o Meio, Walter Carvalho
89. Subterrâneos do Futebol, Maurice Capovilla
90. Wilsinho Galileia, João Batista de Andrade
91. O Tigre e a Gazela, Aloysio Raulino
92. A Alma do Osso, Cao Guimarães
93. Hércules 56, Silvio Da-Rin
94. Mr. Sganzerla – Os Signos da Luz, Joel Pizzini
95. Homem Comum, Carlos Náder
96. As Hiper Mulheres, Carlos Fausto, Takumã Kuikuro, Leonardo Sette
97. Lacrimosa, Aloysio Raulino
98. Imagens do Estado Novo 1937-1945, Eduardo Escorel
99. Nem Tudo É Verdade, Rogério Sganzerla
100. Bethânia Bem de Perto, Júlio Bressane e Eduardo Escorel
Pingback: Cen documentais brasileiros que marcaron historia | Letra en Obras
Pingback: Cen documentais brasileiros que marcaron historia – Libraría Aira das Letras
Também não consta nenhum documentário realizado por indígena, apesar das dezenas de títulos ligada ao projeto Vídeo nas Aldeias. Para citar apenas um, o excelente “Já me transformei em imagem” de Zezinho Yube.
Segue-se vendo o mundo pela perspectiva do olhar do macho branco. Somos machistas e racistas. Precisamos desconstruir juntos.
O melhor é mais visto é o 1964: o Brasil entre armas e livros do Brasil Paralelo.