Festival voltou ao debate político e premiou o cinema autoral de Tata Amaral

O Festival, que se firmou com filmes e debates de teor político, continua com o mesmo foco, premiando “Hoje”, com tema na ditadura brasileira, como melhor filme, e elevando o tom dos debates

O tradicional Festival de Cinema de Brasília, ocorrido entre 26 de setembro e 6 de outubro, o mais antigo do país, andava sem rumo desde que o Festival de Paulínia e a Première Brasil do Festival do Rio lhe tomaram o posto de mais disputada festa cinematográfica do país. Houve mudança no comando do festival, com a aposentadoria de Fernando Adolfo e a entrada de Nilson Rodrigues, ex-diretor da Ancine e gestor cultural que já esteve à frente do festival entre 1995 e 1998. Rodrigues mudou a data de novembro para setembro, aboliu o ineditismo para atrair filmes de mais qualidade e retomou os debates políticos como era a tradição do festival, por estar próximo do poder em Brasília. O vencedor entre os sete concorrentes foi o filme inédito de Tata Amaral, “Hoje”, que arrebatou cinco prêmios, incluindo o de melhor filme, roteiro, atriz, fotografia e direção de arte. O segundo filme mais premiado foi “Meu País”, de André Ristum, que ficou com o prêmio de melhor direção, ator (Rodrigo Santoro), montagem e trilha sonora.

Ao abrir mão do ineditismo, metade dos filmes exibidos na competição pelo prêmio de R$ 250 mil para o melhor filme, “Trabalhar Cansa”, “As Hiper Mulheres” e “Meu País”, já haviam concorrido em outros festivais. Duas mulheres conquistaram os principais prêmios do festival: Tata Amaral, com “Hoje”, longa-metragem político e intimista, e Thais Fujinaga, com o curta “L”, delicado e tocante. Para ampliar ainda mais sua força feminina, o evento consagrou o magistral trabalho da atriz Denise Fraga, arrebatadora em papel essencialmente dramático: o de uma ex-presa política, que compra apartamento com o dinheiro recebido a título de indenização do governo. Ao tomar posse do imóvel, ela depara- se (delírio ou verdade?) com o ex-marido, um desaparecido político interpretado pelo uruguaio César Troncoso. O público descobrirá se o companheiro dela é real ou fantasmagórico quando o filme, escrito por Jean-Claude Bernardet e parceiros, chegar aos cinemas em 2012.

A volta dos seminários – Nas gestões passadas do Festival, os seminários apresentavam-se “devagar quase parando”. Não tinham nenhuma repercussão. Eram anunciados quatro ou cinco nomes para esta ou aquela mesa e poucos compareciam. Os temas eram burocráticos. Este ano o novo comando do Festival preparou seminários dos mais concorridos e polêmicos. Semelhantes ao que, em 1998, reuniu time que faria renascer o CBC (Congresso Brasileiro de Cinema), em Porto Alegre, 19 meses depois, em 2000. Por outro lado, o seminário deste ano só apostou em caciques que sempre disseram o mesmo discurso sobre o cinema brasileiro, ao invés de juntar novas e antigas lideranças para um debate necessário e fertilizador.

Três seminários movimentaram as manhãs e tardes do Festival. O primeiro se propôs a buscar “Novas Perspectivas para o Cinema Brasileiro”. Pela idade dos conferencistas, o cineasta Eduardo Sousa Lima provocou: “tudo indica que apresentarão Velhas Propostas para o Velho Cinema Brasileiro”. O segundo debateu o “Cinema Infantil”, tão desprezado por nossos cineastas, que teimam em só investir em filmes adultos. O último dos seminários debateu “Cinema e Memória”. Os textos apresentados pelos conferencistas foram reunidos num bem impresso “Caderno do Festival”.

Do material reflexivo apresentado, vale destacar o texto-proposta de Sílvio Da-Rin (ex-secretário do Audiovisual). Ele acredita ser chegada a hora de rever as funções e conformações dos dois órgãos que gerenciam a ação do Estado no fomento/fiscalização do cinema brasileiro: a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e a SAv (Secretaria do Audiovisual), ambos agregados ao MinC. No campo estético-ético do cinema propriamente dito, ou seja, dos filmes, a inteligência se fez presente na palestra do filósofo Vladimir Safatle, autor de provocadora comparação entre o cinema brasileiro e o argentino. A badaladíssima participação de Ziraldo no seminário infantil mostrou porque ele é tão amado pelo público (crianças e mães, em especial) e porque seus livros deram origem a longas-metragens (“Menino Maluquinho” 1 e 2 e “Uma Professora Muito Maluquinha”) e séries e desenhos animados nas TVs (Turma do Pererê etc). Merece destaque também a participação do uruguaio Manuel Martinez Carril (presidente de honra da Cinemateca Uruguaia) no seminário que discutiu  “Cinema e Memória” em tempos de novos suportes (tecnologias digitais).

Injustiças da premiação – “Hoje” e “L” mereceram, com louvor, os prêmios máximos do festival. A lamentar o desinteresse do júri pelo ótimo “Trabalhar Cansa”, de Rojas e Marco, que fez jus a mísero prêmio de atriz coadjuvante. Um “quase nada” para trabalho tão original e ousado em sua soma de tema social (o mundo do trabalho, uma das matérias-primas da Cia do Latão, com quem a Turma do Caixote dialoga) e cinema de gênero (terror/fantástico). Ainda não foi desta vez que os grandes atores Helena Albergaria e Marat Descartes tiveram seu trabalho reconhecido. Houve excesso de prêmios para “Meu País”, filme que nasceu com o título errado, pois não vemos o Brasil em suas imagens. André Ristum argumenta que buscou o “país interior” de cada um. O filme poderia chamar-se, então, “Meus Afetos”. O que mais incomoda no filme é sua assepsia: tudo é muito clean.

“Vou Rifar meu Coração”, documentário sobre a música brega (ou romântica) defendida por Wando e assemelhados, não ganhou nada no Festival de Brasília. O filme foi tema da discussão mais agitada do festival. A maior parte dos debatedores não engoliu a presença de Lindomar Castilho justificando, de forma oblíqua/melíflua, o assassinato da cantora Eliane de Grammont, por ele cometido, em 1981.

Desta vez, Brasília não consagrou um de seus cineastas mais festejados: o baiano Edgard Navarro. Ao controvertido “O Homem que Não Dormia” só coube um prêmio (ator coadjuvante). Navarro argumentou, no debate, que seu segundo longa é “um ‘Eu me Lembro’ das trevas, de vidas passadas”. E mais: “é meu filme de redenção. Ele se impôs a mim. Se não o tivesse feito, teria recorrido ao suicídio”. O filme ainda vai causar muita polêmica.

Curtas-metragens – Na mostra de animação destacaram-se “Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo”, já premiado em Gramado, e “Sambatown”, laureado em Cuba. Na categoria curta (doc ou fic), além de “L”, destaque para “De Lá pra Cá” (com o ótimo Horácio “Gigante” Camandule), e “Ser Tão Cinzento”. Nesse filme, o baiano Henrique Dantas, assim como Lúcia Murat (em “Uma Longa Viagem”) e Tata Amaral (“Hoje”), dialoga com o seminal “SuperBarroco”, da pernambucana Renata Pinheiro. Ou seja, lança mão, com inventividade e força expressiva, de projeções e transparências à moda da videoarte.

A seleção de curtas deixou a desejar. Mesmo caso dos curtas de ficção e documentário. Por erros da seleção, ficaram de fora todos os curtas pernambucanos inscritos. Quem leva o conceito de curadoria a sério sabe que têm vindo do Recife os mais instigantes filmes de curta duração do país.

As mudanças na organização e curadoria do festival causaram incômodos em alguns cineastas de Brasília, que se pronunciaram publicamente durante o evento. Os jovens cineastas não aceitaram ver a Mostra Brasília, que atribui via Legislativo do DF generosos prêmios aos melhores curta, média e longas candangos, transferida para o Museu da República.

O festival deixou de fora longa de agitadores belicosos da turma do Movimento Mídia Livre, de nome ultrapanfletário: “Sagrada Terra Especulada – A Luta Contra o Setor Sudoeste”. O filme foi excluído porque teria 68 minutos, e não os 72 exigidos pela Ancine. Mas entrou no grito dentro da programação e foi premiado pelo júri candango (segundo lugar). O primeiro ficou com “Cru”, de Jimi Figueiredo, que derrotou o favorito “Rock Brasília”. E se um entrou “na marra”, outro saiu por vontade própria: Adirley Queirós, autor do premiadíssimo “Rap, o Canto da Ceilândia”, colocou “A Cidade É uma Só?”, projeto premiado pela TV Brasil, no catálogo, mas impediu – em sinal de protesto – sua exibição. Se o novo comando do festival acertou em vários pontos, em especial na exibição simultânea nas cidades-satélites, errou ao acabar com o ineditismo. A mídia só tem interesse por filmes inéditos, isso é sabido em festivais do mundo inteiro. Brasília, em suma, ainda continua sendo o festival mais polêmico do país, dentro e fora de suas salas de exibição.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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