Você Não Estava Aqui
Por Maria do Rosário Caetano
Ken Loach, realizador britânico de 83 anos, detentor de duas Palmas de Ouro em Cannes (com “Ventos da Liberdade” e “Eu, Daniel Blake”), transformou-se, ao longo das últimas cinco décadas, em uma das mais respeitadas vozes do realismo crítico no cinema. Autor de mais de 50 filmes (ficções e documentários), ele esteve mais uma vez em Cannes com “Você Não Estava Aqui”, estreia desta quinta-feira, 27 de fevereiro, em nosso circuito. Mais um de seus filmes voltados às agruras do proletariado.
Desta vez, porém, para melhor reconhecer os protagonistas de “Você Não Estava Aqui”, o ideal é lançar mão de vocábulo recorrente em tempos de profundas transformações laborais: o “precariado”. Ou seja, aqueles trabalhadores que sofrem processo de “uberização”, operando “sem patrões” e sem direitos sociais. Ao buscar trabalho como entregador de mercadorias, o protagonista, Ricky Turner (Kris Hitchen) ouve de seu novo chefe, na verdade o gerente responsável por serviço de entregas via aplicativo: “você não trabalha para nós, você trabalha conosco”. Afinal, será “seu próprio patrão”.
Ricky, para conseguir viabilizar a nova ocupação, necessita ter seu próprio meio de produção (ou melhor, sua condução), uma van. Necessita arrumar dinheiro para adquirir o veículo. O jeito é vender o carro da esposa, Abby (Debbie Honeywood). Só que o automóvel é vital para ela, cuidadora de idosos espalhados por diferentes bairros de Newcastle. Sem o veículo, a rotina de Abby tornar-se-á ainda mais desgastante. A de Ricky não ficará atrás: quanto mais trabalhar, já que é um empreendedor (“o próprio patrão”), mais ganhará. Ele trabalhará, então, 14 horas por dia (e entenderá por que um colega lhe recomendara que carregasse uma garrafa pet, cuja função seria a de recipiente de urina). Só trabalhando sem descanso, Ricky conseguirá pagar as prestações da van, a hipoteca da casa e as despesas com os filhos (o casal é pai de um adolescente problemático e de uma menina).
O cineasta britânico, em mais uma parceria com seu mais frequente colaborador, o roteirista Paul Laverty, sabe, como poucos, contar histórias realistas, em diálogo com o cinema documental no qual se formou (trabalhando na BBC de Londres) e sem grandes reviravoltas ou apelos sentimentais. Mesmo assim, muitos choram em seus filmes (na sessão de “Você Não Estava Aqui” no Resumo do Festival do Rio, no CineSesc, boa parte do público foi às lágrimas).
E por que isto acontece? Porque o olhar humanista de Loach e Laverty dá origem a personagens críveis, que parecem fazer parte de nossos círculos de convivência. Quem não conhece profissionais que se desdobram em trabalhos precários, com rotinas estafantes e que mal têm tempo para conviver com os filhos?
Abby e Ricky formam um casal amoroso, que adora sentar-se à mesa com os filhos, comer algo diferente, rememorar histórias familiares ou contar piadas. Mas a cada novo dia têm menos tempo para a convivência doméstica. O filho mais velho está afastando-se deles e só chegam reclamações e advertências da escola onde ele estuda. Para conviver com a filha, o pai resolve levá-la na van para mais um dia de entregas. A atitude lhe renderá dissabores.
A situação financeira, grave desde a crise de 2008, continua complicada, apesar de Ricky se desdobrar. Workaholic obsessivo (vide a poderosa sequência que encerra o filme), ele não se dá por vencido. E trabalha, trabalha, trabalha. Mas um grave contratempo o fará ver o lado perverso deste tipo trabalho “sem patrão” e “sem seguro social”.
A maquininha eletrônica que guia a peregrinação de Ricky pelas ruas de Newcastle (mesmo cenário de “Eu, Daniel Blake”) não é dona de poderes mágicos. A precarização do trabalho cobrará seu preço. Nos filmes de Loach, mesmo nas condições mais adversas, laços de fraternidade continuam a existir. Embora pareçam cada vez mais tênues. Mesmo assim, que ninguém pense que assistirá a um filme triste, escuro, desesperançado. Há fragmentos de humor em “Sorry We Missed You”. Claro que não na dosagem do delicioso “A Parte dos Anjos”.
Loach faz filmes como a vida, com tristezas e pequenas alegrias, cujos personagens, de carne e osso, nos levam à reflexão sobre estes tempos que – diziam os profetas – a máquina permitiria ao homem descansar. Só que estamos assistindo ao contrário: pessoas se esfalfando em jornadas de trabalho que parecem não ter fim.
Você Não Estava Aqui / Sorry We Missed You
Inglaterra, França, Bélgica, 101 minutos, 2019
Direção: Ken Loach
Roteiro: Paul Laverty
Elenco: Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Rys Stone, Katie Proctor
Distribuição: Vitrine Filmes
Além da competição oficial de Cannes, o filme participou de seis festivais, entre eles o de San Sebastián, na Espanha, no qual conquistou o Prêmio do Público (categoria melhor filme europeu)
FILMOGRAFIA SELECIONADA DE KEN LOACH (Inglaterra, 17-06-1936)
Doze destaques da prolífica obra de Loach, que soma de mais de 50 longas-metragens (documentais e ficcionais) feitos para TV ou cinema.
. 1995 – TERRA E LIBERDADE – Baseado nos livros “Homenagem à Catalunha”, de George Orwell, e “Barcelona Roja: Dietário de la Revolución – Julio de 1936 a Eneiro de 1939”, de Tomás Caballé Clos, o filme registra, em 109 minutos, a Guerra Civil Espanhola que antagonizou Republicanos (Governo constitucional) e Falangistas, comandados pelo general Francisco Franco (e apoiados pelos nazistas).
. 1969 – KES – Um dos primeiros e mais festejados longas-metragens ficcionais de Ken Loach, adaptação do conto “A Kestrel for a Knave”. Ocupa o sétimo lugar na lista de filmes recomendados, pelo BFI-British Film Institute, ao público adolescente. Seu protagonista, Billy Casper, é um pequeno desajustado. Tem problemas em casa, na escola, com a polícia. A paixão por falcões vai alterar sua existência precária.
. 2006 – VENTOS DA LIBERDADE – Primeira Palma de Ouro atribuída a um filme de Ken Loach. Poderia ter ganho a maior láurea em Cannes com “Terra e Liberdade”, este sim, seu filme mais vigoroso. “Ventos da Liberdade” se passa na Irlanda, em 1920. O país está em guerra contra a Inglaterra e, também, em guerra civil. Os irmãos Damien, que abandona a carreira de médico para lutar pela independência, e Teddy, um guerrilheiro convicto, são os protagonistas. À medida que o conflito vai ganhando contornos trágicos, os irmãos se desentendem e situam-se em campos opostos.
. 2016 – EU, DANIEL BLAKE – Segunda Palma de Ouro conquistada por um filme de Ken Loach. O longa acompanha a saga de Daniel, carpinteiro de 59 anos, que, ao sofrer um ataque cardíaco, necessita de benefícios do INSS britânico. A burocracia que ele será obrigado a enfrentar apresenta-se brutal. E, para ampliar o duro retrato da vida das classes populares na Inglaterra, Daniel conviverá com Kate, mãe solteira de dois filhos, que corre o risco de perdê-los para tutela do Estado.
. 1994 – LADYBIRD LADYBIRD – Neste drama baseado em história real, Loach conta a história de Maggie (a atriz Chrissy Rock, Urso de Prata em Berlim), molestada pelo pai e, mais tarde, abandonada pelo marido. Ela perderá a guarda dos quatro filhos para o Serviço Social, pois será considerada, por suas dificuldades financeiras e gênio explosivo, incapaz de cuidar deles. Ao conhecer um refugiado político paraguaio, Maggie encontrará o amor e o desejo de resgatar os filhos. Mas nada será fácil.
. 1993 – CHUVA DE PEDRAS – Drama social sobre homem religioso e devotado à família, desempregado e vivendo de pequenos bicos. Ele quer que sua filha faça a primeira comunhão com um belo vestido. O pároco católico recomenda um traje de segunda mão. Para conseguir o dinheiro, o pai adotará medidas desesperadas, que colocarão sua família em risco.
. 1998 – MEU NOME É JOE – Joe Kavanagh, interpretado por Peter Mullam (Palma de Ouro em Cannes por seu desempenho) é um ex-alcoólatra, apaixonado por futebol (e pela Seleção Brasileira de 1970). Torna-se treinador do time dos Alcoólicos Anônimos, apaixona-se por uma assistente social e acaba envolvendo-se com traficantes de drogas.
. 2000 – PÃO E ROSAS – Drama social baseado em greve de trabalhadores da limpeza, terceirizados por firmas de Los Angeles, nos EUA (fato real ocorrido na década de 1990). Em pauta, a precarização dos direitos trabalhistas de imigrantes vindos, em maioria, de países da América Latina (México e nações caribenhas à frente). No elenco, Benício del Toro, Elpídia Carrillo, Adrian Brody e Tim Roth.
. 2009 – À PROCURA DE ERIC – Um carteiro (Steve Evets) é alucinado pelo jogador francês Eric Cantona, ídolo do poderoso Manchester United. Ao fumar maconha, muita maconha (surrupiada dos enteados encapetados), ele “alucina” e “encontra” Eric Cantona, com quem mantém animada conversa (e queima mais erva).
. 2012 – A PARTE DOS ANJOS – Deliciosa comédia social loachiana. Robbie é um jovem escocês de passado delinquente. Está para ser pai e entra em programa de recuperação. Por isto, deve prestar serviços comunitários. Em visita a uma destilaria de uísque, descobre que tem olfato privilegiado. Acabará envolvido por amigos em plano que consiste no furto de uísque raríssimo, levado a leilão por preço exorbitante.
. 2013 – O ESPÍRITO DE 45 – Documentário sobre a devastação do Estado de Bem-Estar Social erguido, no pós-Guerra, pela Grã-Bretanha. Os neoliberais, comandados por Margareth Tatcher, começaram o desmonte, privatizando muitos dos serviços que, desde 1945, davam amplo atendimento às classes populares inglesas.
. 2016 – JIMMY’S HALL – Lançado no Brasil com seu nome original, o filme poderia chamar-se “O Salão de Baile de Jimmy”. A narrativa desenvolve-se, afinal, em casa de dança mantida pelo militante comunista Jimmy Gralton. Só que proprietários de terra e o velho sacerdote católico (a história se passa na Irlanda) temem as ideias progressistas de Jimmy, de volta à cidade natal depois de longo período nos EUA.
DOCUMENTÁRIOS SOBRE KEAN LOACH:
. “Great Directors – Ken Loach”, de Angela Ismailos, 2009 (90 minutos)
. “Versus: A Vida e os Filmes de Ken Loach”, de Louise Osmond, 2016 (93 minutos)
. “Une Journée Particuliére”, de Samuel Faure e Gilles Jacob (53 minutos – Ken Loach é um dos 34 habitués de Cannes acompanhados pelo filme).
LIVROS:
. “Ken Loach: Um Observador Solidário”, de Iciar Bollain, atriz (de “Terra e Liberdade”), diretora (de “A Oliveira”) e mulher do roteirista Paul Laverty (Edição espanhola, 1996).
. “Art and Resistence”, por Ken Loach (Inglaterra, 2015)
. “The Cinema of Ken Loach”, de Grahan Fuller (Editora Faber and Faber, 1999)
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Um dos melhores filmes que já vi.