Fest Brasília apresenta “Mandado”, que garante invasão de lares na favela, “Afeminadas” e os curtas “São Marino” e “Escasso”
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília
O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro apresentou, no quarto dia de suas mostras competitivas — a Brasileira e o Candangão — dois longas-metragens que defendem direitos sociais-sexuais e zelam pelas liberdades individuais.
O longa documental “Mandado”, de João Paulo Reys e Brenda Melo Moraes, do Rio de Janeiro, defende a população do Complexo da Maré do arbítrio judicial-militar.
Já o longa candango “Afeminadas”, de Wesley Gondin, concorrente da Mostra Brasília, acompanha cinco corpos transsexuais em suas relações familiares e territórios de origem (no subúrbio da Pavuna, em Belém do Pará, na noite paulistana etc.).
Os dois documentários tiveram boa recepção por parte do público, que não lotou o Cine Brasília como nas noites de “Mato Seco em Chamas” e no Candangão do feriado de 15 de Novembro (com “Capitão Astúcia” e dois curtas brasilienses).
Também alcançaram boa recepção os curtas “Escassa”, de Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles, e “São Marino”, de Leide Jacob. Protagonizado por Anastácia, também roteirista e alma do filme, “Escassa” é, na definição de suas realizadoras, “um mockumentary (pseudodocumentário paródico) de tom político e decolonial”.
No centro da narrativa está Rose (Clara Anastácia), uma passeadora profissional de pets, que recebe, em “sua casa”, equipe de documentaristas. Cabe a esta equipe registrar a satisfação da moça com seu novo lar. Na verdade — saberemos — ela não é a proprietária da casa. Ocupou-a, como inquilina-posseira, enquanto sua verdadeira proprietária está distante. Com humor desabrido e crítico, Rose vai apresentando os cômodos e a decoração da residência. E demonstrando pela “casa própria” (ou apropriada) um imenso carinho. Ela gosta de tudo que a verdadeira proprietária colocou no seu lar (das pequenas estátuas, como a de São Jorge ou Ogum, aos figurinos que recheiam o guarda-roupa, que usa sem cerimônia. E da cozinha, claro. De tudo, enfim.
O filme, que venceu o Indie Lisboa, arrancou sonoras gargalhadas do público. No debate, Anastácia e Gaia (que formam o coletivo Encruza) seguiram instigando o público com respostas vivas e provocadoras. Anastácia contou que nasceu na Favela da Pedreira, na Pavuna carioca, e que não concluiu os cursos universitários que iniciou. É leitora de Lea Gonzales, Beatriz Nascimento e Angela Davis, e criou Rose para que ela protagonizasse um filme que rompesse com as amarras do sistema (e cinema) colonial.
“Há quem pense que ‘Escassa’ é fruto de improviso” — comentou. “Não é, pois tudo ali, naquele jogo performático, foi pensado. E pensado para gerar desconforto”. Como o filme tem passado por vários festivais (Fórum Doc-BH, Mix Brasil, Brasília etc.), Anastácia ponderou que muitos perguntam por que ela, que escreveu o roteiro e o interpretou, não se autodirigiu.
Quem prestar atenção nos créditos, observará que a direção está creditada apenas a Gabriela Gaia Meirelles. A própria Gaia garantiu que este crédito vem sendo repensado, pois o filme é fruto do labor das duas realizadoras, unidas pelo duo Encruza. Duo que se propõe “a discutir o espaço de filmes feios e famintos, nascidos num país que exporta beleza”.
“São Marino” já chegou ao Festival de Brasília cercado pela polêmica. Afinal, defende, em seu roteiro, que Santa Marina, santificada pela Igreja Católica, era transexual. Para complicar a transgressão, a diretora Leide Jacob convocou o Padre Júlio Lancelotti para a função de narrador do filme. Ou seja, um sacerdote católico, narrando um curta-metragem que apresenta Santa Marina como “um monge transmasculine”.
A sinopse do filme nos mostra a que veio: “Marino foi um monge ‘transmasculine’ que viveu no século VI, no Líbano, e que, após seu falecimento, foi canonizado como Santa Marina, considerada, por setores progressistas da Igreja Católica, a protetora da identidade de gênero”.
Para interpretar Marino (ou Marina) foi escalado o ator Ariel Nobre, que soma suas aparições a reflexões e interações de Gabriel Lodi (companheiro da vereadora Érika Hilton), Léo Moreira de Sá, Daniel Veiga, Omo Afefe e Rosa Caldeira.
“Mandado”, o quarto longa da competição nacional, foi realizado ao longo dos últimos seis anos por João Paulo e Brenda Melo. Seu ponto de partida foi deflagrado por uma decisão judicial. Alguns meses antes da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil, um mandado de busca (assinado pelo juiz criminal Alberto Salomão Junior) autorizou a entrada de forças policiais em todas as residências de duas favelas cariocas (uma dela, a da Maré).
Para entender o direito coletivo de violação dos lares de milhares de famílias concedido por um juiz, João Paulo e Brenda entrevistaram juristas (como Nilo Batista), jornalistas e moradores do Complexo da Maré. E trouxeram trecho significativo de entrevista de Marielle Franco (1979-2018), realizada por Brenda e pelo diretor de fotografia Jefferson Vasconcelos, quando a jovem militante do PSOL estava em pré-campanha para disputar vaga na Câmara de Vereadores do Rio. Marielle, que seria assassinada por milicianos, no momento em que exercia o cargo para o qual fora eleita, aborda a invasão de lares como gravíssimo cerceamento ao direito — em especial das mulheres — de desfrutar, em sua residência, de espaço indevassável.
O documentário desenha, em enxutos 70 minutos, preocupante retrato da radicalização do sistema penal brasileiro e suas consequências na crise democrática que vivemos nesse exato momento. Com imagens captadas especialmente para o filme e entrevista do juiz Alberto Salomão Jr (só voz gravada), enriquecidas, ainda, com material de arquivo (inclusive trechos de documentário de Leon Hirszman, registro de miseráveis palafitas nas águas da Guanabara), “Mandado”, produzido pela Luba Filmes, será exibido, depois de percorrer o circuito de festivais, no canal a cabo CineBrasilTV, dirigido pela cineasta Thereza Trautman.