Fest Brasília exibe “Canção ao Longe” e lota Cine Brasília com “O Pastor e o Guerrilheiro”

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

A quinquagésima-quinta edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que termina nesse domingo com tributo ao Dia da Consciência Negra, assistiu, com o cinema superlotado, a mais um filme brasiliense — o drama histórico-político “O Pastor e o Guerrilheiro” (foto), de José Eduardo Belmonte.

As três sessões mais concorridas do festival tiveram produções candangas como atração principal. Tudo começou com “Mato Seco em Chamas”, de Adirley Queirós e Joana Pimenta, rodado integralmente em Ceilândia e inserido na competição nacional. Prosseguiu com “Capitão Astúcia”, de Filipe Gontijo, no feriado de 15 de novembro, e com “O Pastor e o Guerrilheiro”, ambos da Mostra Brasília (o Candangão).

O épico de Belmonte, produzido por Nilson Rodrigues, conta com muitas sequências filmadas na Universidade de Brasília (e outras tantas em território tocantinense, palco da Guerrilha do Araguaia). Além de recriar a invasão militar da UnB, em 1968, o filme registra, ficcionalmente, manifestação estudantil em defesa da criação de Cotas para estudantes afro-brasileiros. Tema, registre-se, elaborado com maior profundidade pelo longa documental “Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo, centrado na ação do coletivo EnegreSer, também selecionado para a competição nacional.

Depois da concorridíssima sessão de “O Pastor e o Guerrilheiro”, representado no telão do Cine Brasília por imagem das atrizes Cássia Kis e Júlia Dalavia (intérpretes de avó e neta) — e não pelos protagonistas Cesar Mello, o evangélico Zaqueu, e Johnny Massaro, o guerrilheiro Miguel —, a imensa trupe técnico-artística belmontiana participou de animado debate. Estiveram no palco (e na discussão do filme), dois consultores do roteiro, o ex-guerrilheiro José Genoíno, e o ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira (que militou do MR-8).

A ausência mais notada na noite do Pastor e do Guerrilheiro foi a de José Eduardo Belmonte. Por trabalhar mais que “remador de Ben-Hur”, o cineasta só pôde passar pelo festival para ministrar oficina de direção. Porém, não pôde permanecer em Brasília, onde cresceu e estudou (Cinema, na UnB), para mostrar seu novo longa-metragem, pois estava filmando no Paraná.

A sessão nobre da quinta noite da mostra competitiva do festival — composta com os curtas “Capuchinho”, de Victor Laert (PE), e “Nem o Mar Tem Tanta Água”, de Mayara Valentim (PB), e o longa mineiro “Canção ao Longe”, de Clarissa Campolina — foi prestigiada por significativa plateia. Registre-se que o Festival de Brasília é, mesmo, uma arrebatadora paixão candanga, com plateia sempre atenta, numerosa e politizada. O espaço de convivência do Cine Brasília (com quiosques que servem comidas e bebidas) vive, também, abarrotado.

Os três filmes da competição nacional foram bem recebidos. Mas sem a apoteose de obras politizadas como “Mato Seco em Chamas”, arrematado com rap incendiário, e “Rumo”, que cala fundo na alma dos estudantes afro-brasileiros e da UnB, primeira universidade federal a adotar o sistema de Cotas (em 2004).

O pernambucano Victor Laet conquistou a plateia com discurso que somou humor e engajamento político. Ao final da sessão, roda de críticos ironizou, em tom de brincadeira: “o discurso verbal do cineasta é melhor que o filme”.

“Capuchinho”, cujo título nada tem a ver com a ordem religiosa, mas sim com o mundo da internet, resume-se em sinopse enigmática: “a vida nos trópicos é um glitch”. Ou seja, “uma falha técnica no sistema”.

No mundo digital-cinematográfico de Victor Laet, nos deparamos com transgressão desconstrutiva do cinema digamos muito certinho e arrumadinho. No debate do filme, o jornalista brasiliense Lúcio Flávio rememorou o histórico elepê “Araçá Azul” (Phillips, 1973), de Caetano Veloso, que por suas transgressões sonoras, chegou a ser devolvido por alguns compradores. Estes entendiam que o disco fora vítima de graves falhas técnicas.

Bem-humorado, o realizador pernambucano contou que fôra rejeitado por comissões de seleção de alguns festivais brasileiros, que não entraram em sintonia com sua proposta de uso intencional do “glitch”. Já festivais internacionais (citou o de Riga, na Letônia) foram mais receptivos.

Mesmo assim, nos casos positivos, projecionistas estrangeiros lhe pediram que deixasse claro, na ficha de inscrição do filme, que as “imperfeições” presentes, em especial metade de “Capuchinho”, eram parte constitutiva da narrativa (e não falha técnica).

O debate de “Nem o Mar Tem Tanta Água” contou com a presença da diretora Mayara Valentim e de sua protagonista Laiz de Oyá. E também com o diretor de fotografia Marcelo Quixaba, uma das roteiristas, Letícia Alencar, e a diretora de arte Ana Moravi.

A trupe paraibana, que tem relações com o Coletivo Mangaba (de militância ecológico-ambiental), contou que seus integrantes passaram o período da pandemia vivendo coletivamente num casarão (com doze inquilinos). Destes, quatro se juntaram a Mayara para escrever o roteiro. Ou seja, a história de Babi, uma mulher que vive e se movimenta em sua cidade (a portuária Cabedelo) de forma muito livre (com ou sem a sua bicicleta). Ela realiza suas práticas amorosas em ambiente que não se sujeita à monogamia, nem a outras formas tracionais de relacionamento afetivo-sexual.

O roteiro escrito a muitas mãos captou o clima de coletividade reinante no casarão onde parte dos integrantes do filme viveu durante a pandemia. E motivou a sequência da narrativa mais comentada no debate: o banho de regador da protagonista, num quintal recheado de plantas, com a personagem seminua.

“Como éramos doze moradores no casarão” — contou a diretora cearense-paraibana — “muitas vezes tomávamos banho no quintal e com água de regador”. A atriz Laiz de Oyá, a Babi, em seu primeiro papel como protagonista, destacou o ótimo clima reinante nas filmagens, o olhar afetuoso e respeitoso da equipe (incluindo o diretor de fotografia Marcelo Quixaba) e os colegas de elenco. Destacou, também, o mesmo clima verificado na sequência do beijo homoafetivo de sua personagem, “filmado com poesia, sem nenhum tom apelativo”.

“Canção ao Longe” é o terceiro longa-metragem de Clarissa Campolina. Os dois primeiros foram feitos em parceria com Helvécio Marins (“Girimunho”) e Luiz Pretti (“Enquanto Estamos Aqui”). O novo roteiro nasceu de parceria com Caetano Gotardo e Sara Pinheiro. Para o elenco foram convocados profissionais vindos das Artes Plásticas (a protagonista Mônica Maria, que interpreta a jovem Jimena), da dança (Margô Assis) e da música (Ricardo Campos, entre outros). Matilde Biadi, por sua vez, regressou à carreira de atriz, depois de anos dedicada a outros ofícios. Carlos Francisco, um dos quatro protagonistas de “Marte Um”, presente em muitos curtas e longas da produtora Filmes de Plástico, brilha mais uma vez em elenco mineiro.

Vale lembrar, como fez o crítico belorizontino Paulo Henrique Silva, que a Anavilhana, produtora que agrupa Luana Melgaço, Marília Rocha e Clarissa Campolina, compõe, com a Filmes de Plástico, os dois núcleos mais importantes e férteis do novo cinema mineiro.

Como Thiago Macedo Correia, neste momento ocupado com a campanha de “Marte Um”, que busca vaga como finalista ao Oscar internacional, Luana Melgaço vem assinando importantes filmes produzidos em Minas Gerais. A Anavilhana soma mais de dez longas-metragens no currículo e tem três filmes inéditos para colocar no circuito de festivais e de exibição em 2023.

“Canção ao Longe”, que disputa troféus Candango em Brasília e participa simultaneamente do Festival de Marrakesh, no Magreb africano, nasceu de canção que uniu Caetano Veloso e Gal Costa — “Alguém Cantando”.  Aquela cujos versos dizem: “Alguém cantando longe daqui/ …/ a voz de um certo alguém/ que canta como que para ninguém/ A voz de alguém quando vem do coração/ de quem mantém toda a pureza/ da Natureza/ Onde não há pecado nem perdão”.

No centro da narrativa está Jimena, jovem que busca por sua identidade. Nessa busca, ela reescreve suas relações familiares e cria novos vínculos amorosos, de amizade e de trabalho. E busca o pai ausente.

Como em seus curtas e longas anteriores, Clarissa Campolina realiza um cinema de câmara, colado em seus personagens e em busca de atmosferas íntimas. Dessa vez, auxiliada pela bela fotografia de Ivo Lopes Araújo (oriundo do Coletivo Alumbramento, do Ceará) e pela montagem de Luiz Pretti (também vindo do Alumbramento), seu companheiro de vida e ofício. E o faz escorada em inserções musicais e sonoras de imensa importância para a narrativa.

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