Noite do cinema capixaba e homenagem a Suely Bispo agitam abertura do Festival de Vitória

Foto: “Presença”, de Erly Vieira Jr. © Luara Monteiro

Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória (ES)

O cinema capixaba foi a grande atração da noite inaugural do Festival de Vitória, que realiza sua trigésima-primeira edição no histórico Teatro Sesc Glória, no centro da capital do Espírito Santo.

Tudo começou com homenagem à atriz, poeta e historiadora Suely Bispo, capixaba adotiva, já que nascida na Bahia, onde viveu até a adolescência. E prosseguiu com quatro curtas e um longa-metragem, todos 100% made in Espírito Santo. O Cine-Teatro Glória estava lotado, tanto na sala principal, quanto nos balcões.

Todos os curtas foram aplaudidos de forma entusiástica. O primeiro — “O T-Rex e a Pedra Lascada”, do estreante Luã Ériclis — atraiu com sua trama fantástica. O segundo, a animação “Fala Vô”, do também estreante Felipe Risallah, chamou atenção pelo afeto de um neto (o próprio realizador), que evoca a memória do avô, vítima da epidemia de Covid-19.

O terceiro curta da noite, “Mulheres Maratimbas”, levou ao palco quatro senhoras pouco familiarizadas com o cinema. Elas são as protagonistas do documentário de Thaís Helena Leite, também presente na tela. No Espírito Santo, são chamadas maratimbas as pessoas roceiras, aquelas que vivem à beira dos rios. Dedicadas à pesca e aos roçados, as maratimbas (também gentílico dos que nascem em Marataízes) chamaram atenção em suas estreias cinematográficas. Mas a estrela da noite, o rouba-festa, foi o protagonista do curta “O Caboclo de Sapê”. Ele se chama Antônio Rodrigues, tem 42 anos, é quilombola, cantador, rapper e predisposto a dedicar-se a  qualquer estilo musical que o ajude em sua causa (a devolução de terras a quilombolas expropriados). De origem afro-indígena, cabelos encaracolados e pretos, arrematados em louro-oxigenado, Antônio causou sensação no palco e, mais ainda, na tela grande.

O discurso muito articulado e político do caboclo sapezeiro em defesa da devolução de terras aos quilombolas (depois de quase esterilizadas por imensas plantações de eucaliptos) mobilizou a galera. Se não bastasse o poder de sua retórica inflamada e impactante, Antônio Rodrigues ainda carrega o dom do canto. Arrasou no rap e na batalha de rimas. O filme foi ovacionado.

O primeiro longa-metragem da competição brasileira — “Presença”, do capixaba Erly Vieira Jr., também professor da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) — foi bem-recebido. O Teatro Glória já não estava lotado, pois a noite somara muitos discursos e “autodescrições”. Se não fosse a presença bem-humorada, inteligente e perspicaz da multiartista Valéria Barcellos, mestre-de-cerimônia junto com o ator Johnny Massaro, a noite teria resultado em atraso histórico.

Antônio Rodrigues, o Caboclo Sapezeiro, líder Sem-Terra, rapper e cantador © MRC

Que uma pessoa faça sua autodescrição numa cerimônia, digamos, politicamente correta, tudo bem. Agora, equipes com três, cinco, até dez integrantes, se autodescrevendo, resulta, óbvio, em cerimônias de longuíssima duração. E prejuízo à fruição dos próprios filmes, pois as plateias são tomadas pela impaciência e pelo cansaço.

Erly Vieira Jr. fez sua parte. “Presença” é um documentário sensorial, ensaístico e surpreendente, que dura apenas 71 minutos. Além de revelar aos olhos leigos o processo de criação de três artistas visuais-performáticas capixabas — Marcus Vinicius, Rubiane Maia e Castiel Vitorino Brasileiro —, o filme se constrói com perturbadora inquietação. E o faz com materiais de arquivo (registros de performances dos três artistas, realizadas por eles mesmos) e material produzido pelo diretor de “Presença” e sua equipe, com destaque para sua diretora de fotografia e produtora executiva Ursula Dart.

Apesar da noite exaustiva, metade dos espectadores permaneceu na sala e aplaudiu a estreia (no longa) do professor capixaba, autor de dez curtas (entre eles, “Grinalda”, “Saudosa”, “Pour Elise” e “Macabéia”). O filme mostrou que a produção audiovisual do Espírito Santo cresce e se afirma, em quantidade e qualidade.

Ano passado, o curta capixaba  “Remendo”, de Roger Ghil,  a Gegê (aliás, colaboradora nos créditos artísticos de “Presença”), venceu os festivais de Tiradentes, Gramado e Vitória e conquistou o Candango de melhor direção no Festival de Brasília. Constituiria este filme, tão reconhecido, uma exceção na trajetória do cinema realizado no Espírito Santo?

A julgar pela Noite Capixaba da edição de número 31 do Festival de Vitória, “Remendo” não constitui uma exceção. Ou um acaso. Os cinco filmes exibidos têm qualidades e despertaram interesse nos espectadores locais e convidados.

Durante o debate dos curtas e do longa da noite inaugural, comandado pela roteirista e curadora Viviane Pistache, o cineasta Erly Vieira Jr. garantiu que, graças a recursos da Lei Paulo Gustavo, “2025 será um ano marcado por significativo número de novos filmes capixabas”.

O amadurecimento das produções realizadas no Espírito Santo tem em “Presença” um de seus paradigmas. Tudo foi realizado com paixão e arte. Erly escolheu três personagens desconhecidos do homem comum da capital e interiores capixabas, mas que são símbolos das mais avançadas transgressões artísticas do país. São, como ele os define, “artistas afro-brasileiros, com carreiras reconhecidas internacionalmente”. Um deles, Marcus Vinícius, que morreu, aos 27 anos (em 2012), em Istambul, na Turquia, era amigo pessoal de Erly. Este acompanhou de perto muitas das criações visuais e performances do conterrâneo.

Como professor universitário, ensaísta e pesquisador apaixonado por Artes Visuais, Erly acompanha, também, as trajetórias de Rubiane Maia, da mesma geração de Marcus Vinícius, e de Castiel, mais nova que os outros dois. No filme, o que mais nos impressiona são as ações de Marcus Vinícius, pelo corpo a corpo que o artista estabeleceu com a arte, com a vida e com a morte. O veremos, em Estocolmo, na Suécia, em performance com robusto maço de velas acesas, que pingam dezenas de “lágrimas de cera quente” em seu rosto. Noutro momento, numa zona rural argentina, ele, corpo nu, enfrenta bois, que não sabemos como reagirão. Em Vitória, o artista anda pelas ruas com o corpo integralmente coberto por fitas adesivas, nas quais lemos: frágil, frágil, frágil”.

Com a morte inesperada de Vinícius, quando ele voltava da Mongólia e descansava em Istambul, Erika, sua irmã mostrou-se disposta a doar o acervo deixado pelo artista à UFES. Nas muitas conversas mantidas com ela, Erly soube, por exemplo, que o próprio pai de Marcus Vinícius adquirira, na Ilha da Pólvora, o material (pólvora) utilizado pelo filho em outra de suas performances. Com o corpo coberto pelo material explosivo — e aceso o fogo — ele regressaria para casa com cabelo, rosto, braços e outros membros “totalmente chamuscados”.

Um artista que quis viver, intencional e perigosamente, sua relação com a arte. E que partiu muito cedo, antes de chegar aos 30 anos. Sua memória está registrada no projeto Imensidão Íntima (www.acervomv.com).

Rubiane Maia, artista visual e psicóloga institucional, vive entre Folkestone, no Reino Unido, e Vitória, no Espírito Santo. Seu processo artístico soma a performance, o vídeo, a instalação e a escrita. Em “Presença”, ela é vista durante processo de criação no projeto Preparação para Exercício Aéreo, o Deserto e a Montanha. Tal processo a leva a viajar por paisagens (e altitudes desafiadoras), seja no Salar do Uyuni (deserto de sal, na Bolívia), no Pico da Bandeira (ES-MG), Monte Roraima, no Norte do Brasil, ou Santa Helena de Uyarén (na Venezuela).

Entre os trabalhos da afro-brasileira Rubiane estão, além dos desafios corporais, ações desenvolvidas em busca de respostas a experiências que envolvem racismo e misoginia.

Castiel é a caçula da trinca de personagens de “Presença”. Aos 28 anos, a artista, escritora e psicóloga formada pela Universidade Federal do Espírito Santo, faz mestrado no programa de Psicologia Clínica da PUC-SP.

No filme, nada discursivo, já que aposta na força sensorial das criações de seus artistas-personagens, cabe a Castiel protagonizar a sequência mais longa. Ela performa para a família. Sobre canteiro de terra, ela dança ao som do atabaque tocado pelo pai. Outros familiares (mãe, irmãos) a assistem. Ela, que fizera sua transição de gênero, se movimenta até impor ao corpo o supremo esforço. Ao final, é abraçada pelos familiares.

Erly Vieira Jr. é um cineasta gay. Marcus Vinícius era queer (Erly prefere o aportuguesamento do termo — “cuir”). Castiel é trans. Rubiane mantém seu sexo de origem (feminina). “Presença” é um filme homoafetivo. Mas sem discurso, sem explicitar bandeiras. Está tudo impresso nas imagens e contido em suas camadas reflexivas.

No debate, o cineasta capixaba deixou claro que nada tem contra os filmes que explicitam sua proposta “cuir”. Eles são necessários. Mas, em “Presença”, tal identidade se faz visível sem proselitismo.

O realizador quis, e fez, com síntese e criatividade, um documentário revelador, que questiona, pela criação artística de seus personagens, os limites que são impostos aos nossos corpos. O filme chega aos cinemas no próximo dia primeiro de agosto, com lançamento da distribuidora Livre.

No debate dos curtas, Luã Ériclis, que é biólogo profissional, revelou que a gigantesca raiz de gameleira formatada como se fosse um dinossauro — o T-Rex que aparece no nome do filme — não sofreu nenhuma intervenção por parte de sua equipe. “O único acréscimo que fizemos foi a colocação, o acréscimo, de um olho, criado com uma pedra orgânica”. A sugestão veio da diretora de fotografia, Ana Resende. “Como nosso filme aposta no fantástico e na magia” — lembrou o realizador —, “deu tudo muito certo”.

“T-Rex e a Pedra Lascada”, uma produção do Instituto Marlin Azul, se passa no Condado da Lua, onde corre lenda antiga sobre espírito guardião, adormecido na raiz de imensa árvore, à beira do rio. Três crianças (Ganga, Tule e Dara) descobrem forma de despertar o dinossauro.

Ricardo Sá, diretor de “O Caboclo do Sapê”, falou de seu desejo de transformar seu curta-metragem em documentário de longa duração. Mas que não o fez, ainda, por dificuldade junto a editais de fomento. “Como sou um realizador branco, que aborda temática afro-brasileira (a luta dos quilombolas pela posse da terra) tenho tido dificuldades de obter recursos”, explicou. “Fizemos o curta, de 17 minutos, por nossa conta. Só conseguimos recursos para sua finalização”.

Antônio Rodrigues, o caboclo do sapê, garantiu que o destaque do curta, que integra a mostra Foco Capixaba, e de novos projetos artísticos, seja no cinema ou no campo musical, não o deixarão deslumbrado, nem o afastarão do quilombo na zona rural do município de São Mateus. Ele, que já foi preso por sua atuação política (acusado de “demarcação rebelde de terras”) e necessitou de vaquinha coletiva para pagar fiança e ser solto, garante que suas atividades como cantador-rapper (e agora no cinema) existem para potencializar sua luta e a de seus companheiros. Não para afastá-lo de sua militância política.

Thaís Helena Leite reafirma, com “As Mulheres Maratimbas”, seu desejo de dar cada vez mais protagonismo às mulheres. Tanto as que aparecem na tela, quanto as que integram as equipes técnicas. Seu filme se passa em Porto Grande, no município de Guarapari. Senhoras idosas relembram a formação de vila de pescadores artesanais, na qual estão inseridas. Elas vivem entre o mar e a Lagoa Maembá, a segunda maior do estado.

“Mulheres Maratimbas” sofre desvio de seu foco principal para lembrar que, durante o regime militar, houve intensa exploração de areias monazíticas na praia de Porto Grande. E que os materiais delas retirados (caso do tório) eram vendidos para outros países ocupados com a indústria nuclear (fabricação de bombas atômicas).

O animador Felipe Risallah, diretor de “Fala, Vô”, contou que, durante a pandemia, foi obrigado a fechar-se em casa, sem poder visitar o avô, integrante do principal grupo de risco (os idosos). Os contatos se davam apenas pelo telefone, quando avô e neto falavam de assuntos diversos, e do Fluminense, o Flusão. O avô morreu em 2020. Angustiado com a perda e com o isolamento, o jovem realizou, praticamente sozinho, de fevereiro de 2022 a agosto de 2023, sua narrativa em computação gráfica 3D.

Suely Bispo, a homenageada deste ano do festival

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A homenageada da noite inaugural do Festival de Vitória, Suely Bispo, vive, há quase 30 anos, na capital capixaba. Ela se formou em História, na UFES, fez carreira no teatro, em espetáculos como “Fausto”, “Shakespearianas”, “Oxum”, “A Flor de Nanã”, “Negra Poesia”, “Momento Solano Trindade” e “Corpus em Vidas: Memória Decolonial”. No cinema, participou de dezenas de curtas e de alguns longas (“Destino das Sombras”, “Os Incontestáveis”, “Margeado”). Na Globo, atuou na telenovela “Velho Chico”, de Benedito Ruy Barbosa.

Ao receber, no palco do Cine-Teatro Glória, o Troféu Vitória, o Caderno do Homenageado (longa reportagem, fartamente ilustrada, sobre sua trajetória) e joia criada por Carla Buaiz, Suely Bispo agradeceu emocionada e foi aplaudida de pé. Ela relembrou parceiras de vida, como Verônica Gomes, que a levou para o teatro (na montagem de “A Gang do Beijo”, de José Louzeiro), o pai, baiano, que radicou-se em Vitória e a trouxe para sua cidade-adotiva, os professores da UFES, a querida madrasta, que a aplaudia na primeira fila do Teatro Glória, e os colegas de palco e cinema.

Como formou-se em História, Suely dedica-se, também, à pesquisa sobre a história dos afro-brasileiros. Ela é autora de livros de poesia, uma de suas grandes paixões, e dos estudos “A Cultura Negra no Brasil: Resistência ou Afirmação – Simbologia, Tradição e Mitos Afro-Brasileiros”, “Nós e o Teatro Experimental do Negro”, “Solano Trindade: Negritude e Identidade na Literatura Brasileira” e “Resistência Negra na Grande Vitória: Dos Quilombos ao Movimento Negro”, este em parceria com Edileuza Penha de Souza.

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