Werner Herzog registra trajetória de cineastas que “arrancaram imagens das garras do diabo”

Por Maria do Rosário Caetano

A Mostra Ecofalante de Cinema, que realiza sua décima-terceira edição em São Paulo, não poderia ter escolhido título mais arrebatador e adequado que o herzoguiano “O Fogo Interior: Um Réquiem para Katia e Maurice Krafft” como atração de sua noite inaugural (essa quarta-feira, 31 de julho, para convidados, na Reserva Cultural paulistana).

A partir dessa quinta-feira, primeiro de agosto, e até dia 14, o evento prossegue em 21 salas, com sessões gratuitas e abertas a todos os interessados. E promoverá reprises do septuagésimo-sétimo filme do incansável diretor bávaro.

E por que o documentário germano-francês “Um Réquiem para Katia e Maurice Krafft” se apresenta como perfeito abre-alas? Por que adequa-se tão bem a um festival que tem a Emergência Climática como sua força motivadora?

Seria muito simples dizer que o filme é excepcional, ousado e criativo. O que – em se tratando do alemão Werner Herzog, que fará 82 anos em setembro próximo – não constitui (com poucas exceções) nenhuma novidade. Ao “cinebiografar” os vulcanólogos franceses Katia e Maurice Krafft, o alemão está, na verdade, compondo um belíssimo (e trágico) retrato de si mesmo. Afinal, os franceses e o alemão viveram (Herzog vive!) para dedicar-se, em tempo integral, ao mundo das imagens, ao cinema.

O prolífico realizador, que já soma 77 filmes, sempre foi desde sempre um apaixonado por personagens de exceção. Como Aguirre, aquele que enfrentou a cólera dos deuses; FitzCarraldo, alucinado por Caruso a ponto de fazer um navio subir morro acima; o traficante de escravos Francisco Manoel da Silva, conhecido como “Cobra Verde”; o ator Klaus Kinski, seu “melhor inimigo”; o “Homem Urso” Thimothy Traedwell, que acreditou na amizade do animal e foi devorado por ele, o fanático militar japonês Hiroo Onoda (tema de um de seus livros) etc., etc.

Herzog também é um homem de extremos, capaz de andar a pé em caminhada sacrificial no gelo, na esperança de salvar a amiga Lotte Eisner (1896-1983). Ela vivia, em Paris, seus dias derradeiros. O bávaro dedicou a essa experiência o livro “Conquista do Inútil”. Comeu os próprios sapatos, ao perder uma aposta, e fez do inusitado “alimento” (homenagem ao vagabundo Carlitos, varado de fome e em “Em Busca do Ouro”) o tema do imperdível curta-metragem “Herzog Come seus Sapatos” (Les Blank, 1980). Enfrentou o furioso ator polonês-alemão Klaus Kinski em brigas homéricas. Com um outro de arma na mão.

Verdade ou mentira? Fábula ou realidade? Melhor acreditar que Werner Herzog é daqueles que contam um conto para aumentar um ponto. Mesmo assim, nos permite viagens únicas e reflexivas, mergulhos na tragédia humana vivida em um planeta cada dia mais devastado.

Em 2023, os cinéfilos e amantes de filmes sobre pessoas interessadas em viver experiências limítrofes assistiram ao filme “Vulcões – A Tragédia de Katia e Maurice Krafft”, de Sara Dosa. Um dos finalistas ao Oscar de longa documental.

Por que, depois de filme tão bem-sucedido, Werner Herzog se meteu na mesma história? Por que, em tempo histórico tão curto, realizar filme sobre a trajetória (e morte precoce) de dois colegas da Universidade de Estrasburgo, ela, Katia, geoquímica, nascida em 1941, ele, Maurice, geólogo, em 1946?

Os dois personagens (de Sara Dosa e de Herzog) uniram-se, inclusive matrimonialmente, para juntos visitar, estudar e filmar vulcões. E fazê-lo como experiência limítrofe, chegando o mais perto possível das lavas vermelhas (menos explosivas) ou das cinzas, as mais perigosas, pois formadas de lama, terra e detritos vulcânicos. Foi a explosão de um vulcão (Monte Unzen, no Japão, do qual foi expelida alucinante e incontrolável massa cinza) que ceifou a vida dos dois vulcanólogos e de mais 41 pessoas. Katia tinha 49 anos. Maurice, 44.

Werner Herzog realizou um filme ainda melhor (e mais profundo) que o de Sara. Mostrou que, mais que vulcanólogos, Katia e Maurice eram cineastas. E grandes cineastas. Que, no começo, estudavam os vulcões e realizavam experimentos até engraçados, tentando chamar atenção do público e de possíveis patrocinadores. À medida que foram mergulhando na experiência do cinema e, principalmente, nas tragédias das populações atingidas por erupções vulcânicas – dirá Herzog –, os franceses “transformaram-se em humanistas, em cineastas que usavam o cinema para denunciar o descaso com as vítimas das hecatombes provocadas por vulcões ”.

O realizador  germânico, que dirige e narra o filme, mostra que duas tragédias calaram fundo na alma de Katia e Maurice: a de El Chichón, na região de Chiapas, no México (1982), e a do vulcão Nevada del Ruiz, na Colômbia. Aquele matou duas mil pessoas e deixou 20 mil desabrigados. O povoado de Francisco León foi inteiramente coberto pelas cinzas. Já a tragédia colombiana deixou 23 mil mortos. E extinguiu uma cidade (Armero) plantada a mais de 40 km da boca do “inferno vulcânico”.

Além da narração subjetiva e precisa de Herzog, “O Fogo Interior” – que se explica como “Um Réquiem” – nos fornece, pela música de sua trilha sonora, densa camada e imanta nossos sentidos, nos arremessa naquele inferno de cor e destruição.

Ouviremos réquiens de Gabriel Fauré (“Agnus Dei”, “Introit et Kyrie”, “Pie Jesus”), de Giuseppe Verdi (“Recordare”, “Lux Aeterne”) e de Johan Sebastian Bach (“Christe Eleison”). Também uma criação de Wagner (“Isolde’s Liebestod”). Quando adentra o campo da música popular, o realizador germânico arrebata nossos ouvidos com o canto lancinante da mexicana Ana Gabriel. Os versos por ela cantados cobrem a terra devastada, os corpos de seres humanos e de animais calcinados pela lava vulcânica vinda de El Chichón (ou Chichonal).

Herzog evocará nomes que calam fundo na história do cinema. O impacto que Stromboli (a ilha vulcânica que uniu Ingrid Bergman e Rossellini) causou nos jovens Katia e Maurice, os anos em que o geólogo passou a vestir-se como o cineasta Jacques Cousteau (com gorro vermelho e cachimbo) e o cinema científico. Teremos que nos familiarizar com vocábulos como “lahars” (avalanche de lama e detritos vulcânicos) e fluxos piroclásticos (explosões que misturam gás, matéria vulcânica, fragmentos de rocha e cinza). Mas quem não estiver interessado nesses ensinamentos, que chegam para nos enriquecer, assistirá ao filme, de apenas 85 minutos, com imenso prazer. Herzog sabe seduzir o público.

Quando a trágica aventura de Katia e Maurice (saberemos da morte deles já no início do filme) estiver detalhada, ouviremos o diretor de “Fata Morgana” dizer: “Eles foram capazes de descer ao inferno e arrancar imagens das próprias garras do diabo. E foi por isso que eu quis fazer esse filme para eles”.

A dupla francesa buscou – e documentou – imagens capazes de evocar uma espécie de “apocalipse bíblico”. Filmaram o mais próximo que puderam lavas vermelhas que exalavam calor de mais de 500 graus. Até quando fugiam do perigo, Maurice segurava sua câmara e Katia seus equipamentos de som e sua câmara de fotos fixas. Ela deixou milhares de fotografias, parte delas impressa em livro. E as outras capazes de rechear muitas outras publicações.

Depois de vermos “Requiém para Katia e Maurice Krafft”, construído inteiro de imagens registradas pela dupla, damos razão total a Herzog, quando este afirma que “eles deixaram de ser vulcanólogos para se transformarem em cineastas”, para fazer “filmes humanistas”, que foram abandonando as explosões e as lavas vermelhas, por quererem priorizar a tragédia humana de quem teve como vizinho esse indomável cuspidor de fogos interiores.

 

13ª Mostra Ecofalante de Cinema
Data:
1º a 14 de agosto
Local: 21 salas paulistanas
Programação: além do “Fogo Interior” herzoguiano, “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto Carvalho, “Filhos do Katrina”, de Edward Buckles Jr, “Antártica: Continente Magnético“, de Luc “Marcha dos Pinguins” Jacquet, “Union”, de Brett Story e Stephen Maing (sobre vitória sindical de trabalhadores da poderosa Amazon), “Água e Vida”, de Will Parrinello (com participação do ator mexicano Diego Luna), “Samuel e a Luz”, de Vinícius Girnys (vencedor do Festival de Guadalajara); “Onde a Floresta Acaba”, de Otavio Cury, “Despovoado, ou Tudo que a Gente Podia Ser”, de Guilherme Xavier Ribeiro (com participação de Rolando Boldrin), “Memórias da Chuva”, de Wolney Oliveira, “A Sociedade do Espetáculo”, dos suecos Roxy Farhat e Goran Hugo (que discute o famoso livro de Guy Debord), entre muitos outros.
Atividades: debates, workshops e cursos
Entrada: gratuita nos cinemas e eventos complementares
Mais informações: www.ecofalante.org.br

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